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Parte
6: Ônibus 174 e outros documentários do ano
Daniel - Eu só quero dar um argumento que é simples: as cartas de leitores do Globo. É ridículo, mas de uma certa forma é um retrato do nosso cotidiano. E eu li em 1/1 ou algo assim, onde uma pessoa dizia sobre um menor que cheirava cola e teria atirado em alguém: "para que esse menor está no mundo? Ele não tem mais cura!" Quer dizer, aí está o grande valor do Ônibus 174, sobretudo, e aí você pode dizer: "Mas você nunca soube disso?" Tudo bem, eu soube, mas eu vivo num país onde eu sinto que as pessoas nem sempre percebem isso. E eu percebo que a maior parte das pessoas do meu cotidiano satanizou o criminoso que entrou no ônibus e sequestrou as pessoas. A partir do momento em que ele fez isso, para elas ele deixou de ser humano, nada justificou e ele passou a ser o grande monstro que precisava ser exterminado, não por uma razão pragmática de proteger a vida dos outros, mas porque ele é um perigo social constante que não pode ser compreendido. Qual o grande valor que eu vejo no filme, com todos os defeitos que se possa ver nele? É que ele teve a coragem de tentar descobrir quem era o ser humano que representava essa figura. Felipe - A forma de ele procurar esse ser humano é extremamente limitada a um modelo, mediado por especialistas, o formato como ele tenta isso é extremamente limitado. Mas o filme assume isso, e ele é interessante na medida em que assume isso. É uma apreensão muito limitada... Daniel - Mas é mais aberta do que a das pessoas que viram aquilo na TV. Por isso que ela abre um panorama. "Todo mundo sabe que existem meninos de rua. Todo mundo sabe que existem adolescentes de classe média que tacam pedras em mendigos de madrugada." Sim, mas tem gente que acha isso normal. Tudo bem, o filme foi "realizado" pelo Cesar Maia, e ele pode ter feito para tentar atingir o Garotinho, tudo bem, isso não é problema meu. O filme é o filme, e o Cesar Maia é o Cesar Maia. O Cesar Maia é o cara que disse que ia tacar creolina na rua para tirar mendigo. Então o patrocinador do filme está muito mais ligado aos garotos que tacam pedra em menino de rua do que ao filme que exibe que isso é uma barbárie. Sobretudo o que realmente me impressionou no filme foi que eu vi um personagem que é um ser humano que viveu e, por mais que um filme jamais vá dar conta do que a vida de alguém, lá eu vi um homem perder uma razão e agir de forma monstruosa, mas ainda sendo um homem, Sandro do Nascimento. Então a partir do momento em que o filme tem essa coragem... Agora, o filme passa a ser ridículo quando é visto por 20 mil pessoas, esse é o problema central. Porque o filme tem que ser visto na TV e tem que ser visto por muitas pessoas. Porque o público que viu ele no cinema sabe que os meninos de rua existem, que temos um problema social, etc. Agora, ele é o seu discurso. Mesmo que você diga que feito de uma forma primária, ele é feito para ser visto por pessoas que pensam de uma forma primária e vêem filmes de uma forma primária. Felipe - E mesmo esteticamente bem limitado a alguns modelos descritivos e analíticos, ele tem uma riqueza muito interessante ao acontecimento audiovisual que é a idéia de reunir as imagens e transformá-las em objeto de memória. O que é raro nesse ambiente televisivo, onde as coisas passam. Então ele consegue construir um artefato de memória interessante sobre algo que marcou a vida das pessoas. Ruy - Eu fiquei muito incomodado, principalmente socialmente, pelo filme. Mas acho que tem dois acertos que devem ser louvados. Antes de tudo, tratar o caso como um caso social e não o de um maluco que entrou num ônibus e fez loucuras. Como algo que pode ser reproduzido socialmente caso sejam dadas as mesmas condições, ou seja, existem outros Sandros. É o Álbum de Família do Rio de Janeiro, poderia ter acontecido com qualquer outra pessoa, calhou de ser aquilo, calhou de ocasionar um espetáculo público ao vivo, o que é importante, porque se não tivesse sido passado ao vivo na TV teria sido diferente. E, ao mesmo tempo, me agrada muito o trajeto do ônibus percorrido de helicóptero pela câmera para baixo, que tenta dar uma visão de conjunto do que é irreconciliável na cidade, que é o topo do morro e o embaixo do asfalto. Felipe - O filme é reducionista, ele tenta resumir e explicar as coisas, mas ele assume isso. Ele é um ensaio audiovisual sociológico. (certa confusão de vozes...) Daniel - Eu não gosto do Luís Eduardo Soares explicando aquilo... isso não me interessa. Ruy - Ele surfando conceitualmente sobre o caso é o mais deplorável do filme... Cléber - Luís Eduardo com um sorriso no rosto o tempo inteiro... Ruy - Ele surfa com um prazer sádico pelos conceitos... Eduardo - Mas eu acho que tem uma coisa que não está sendo dita sobre o filme em termos de qualidades, que eu acho que é o principal: ele pegou um caso e, jornalisticamente ou em termos investigativos, ele buscou evidências e colocou na tela uma série de depoimentos e fatos que ninguém tinha visto ainda. O que é, afinal, uma das dezessete mil novecentos e quatorze funções que um documentário pode ter. Ele foi e buscou fatos que ninguém sabia ainda. Daniel - Que o cara foi preso na Febem, o depoimento das pessoas... Para a imensa parte da população brasileira, isso é justificar o ato de uma figura satanizada. Eduardo - Mas o que acho interessante, onde eu acho que ele falha, mas eu acho que é acima de tudo uma falha de tempo de concepção, e diga-se que eu li que o filme passou em Sundance numa versão com 20 minutos a menos e os produtores acham ela muito melhor que a que vimos, e eu tenho certeza que é. Porque a grande falha do filme é que ele parte do fato, dá toda essa interpretação e, por um motivo de pura falta de articulação, ele volta ao fato com uma importância que ele já não tem mais depois que você entendeu tudo que está acima daquela pequena tragédia num ônibus. Então, analisar certos nuances do fato que aconteceu o filme já tornou menor, não faz sentido ele voltar e gastar meia hora no desenlace daquela situação. Não o final mesmo, que eu acho a frase mais importante, porque é verdade que a conclusão de que era uma situação social comum que se repete sempre, etc, também é algo que se ouve volta e meia nas mesas do Baixo Gávea, se você for lá. Mas a frase final que eleva o filme é quando ele não culpa a polícia, ao contrário de como se faz no Baixo Gávea. Ele vai e mostra que a polícia faz o que faz porque ela cumpre o papel que a sociedade espera dela, a contrata para fazer. Então não reclamem da polícia. Porque num certo momento do filme eu achei que ele cairia nesse erro, a meu ver crasso, de culpar a polícia. Vira uma coisa engraçada, meio Keystone Cops: "pô, eles não tem equipamento, não conseguem fechar uma rua, correm de um lado para o outro, é uma zona, somos uns incompetentes..." Tem um fator forte aí do brasileiro gostar de se ver incompetente, "pôxa, nem a nossa polícia, nós realmente nunca vamos conseguir...". E a questão é muito maior, e ele diz isso no final, e isso sim diferencia o filme de qualquer conversa de domingo à noite no Baixo Gávea, porque ele não chega nessa conclusão oposta de "ah, não matemos mesmo os meninos de rua, mas matemos os policiais que são uns calhordas". Essa é a grande qualidade do filme. Agora, acho que ele tem problemas graves, seja estruturais, seja de conclusões que têm uns argumentos questionáveis. Mas eu gosto do filme como filme e como fato. Felipe - É um ensaio, mas um ensaio muito interessante. Você descobre muita coisa, questiona alguns pontos, mas acho que o filme se assume como tal. Daniel - É um ensaio misturado com reportagem, e a parte de reportagem é especialmente boa. Cléber - Acho que tem uma questão do filme que é pouco comentada e que eu acho o mais interessante no filme, que é a carga de representação que tem naquele episódio, onde estão todos agindo para a câmera: a polícia, o Sandro, os reféns. Todo mundo é um personagem, você cria uma simulação de um assassinato que não acontece, de uma falsa morta. E o filme faz um discurso sociológico de um cara que não teve imagem e que num determinado tem direito a sua imagem. Uma coisa pouco comentada que cabe na dramaturgia do filme é o papel que aquele policial tem no desfecho. Eu vejo o policial que dá o tiro como a versão fardada do Sandro: ele também quer a sua imagem, quer ser o herói do ano. É mais um cara interpretando para a TV. Essa questão da interpretação do que está acontecendo ali é o que tem de mais interessante. Agora, ele faz algo de muito estranho, que é uma crítica de como a mídia interferiu no processo de negociação, que poderia ter acabado de uma outra maneira se não houvesse aquele circo, mas ele reproduz isso o tempo inteiro. Quer dizer, a crítica à espetacularização daquilo ele está reproduzindo o tempo inteiro para o espectador. Aquilo vira um espetáculo, aquilo é um thriller. Daniel – Mas quem assiste vê mais do que isso. Cléber - Mas isso não está fora do filme, então não podemos deixar de discutir. A visão sociológica do filme, para mim, é óbvia. Eu não precisava do filme para chegar àquelas conclusões. Agora, se isso tem importância para um espectador cego sobre o país é outra coisa. Então vamos ver o filme pelo olhar que as 20 mil pessoas tiveram sobre o filme. Mas isso é um dado que acabamos de esvaziar no Edifício Master. Eu estava analisando o filme, e o João falou da brecha para o olhar do espectador, e todos nós valorizamos o filme sobre o olhar do espectador, porque cada olhar é um olhar. Então o Ônibus tem que ser analisado como o filme que é, e não pelo efeito que tem sobre o olhar do espectador, porque eu não sei que espectador é esse, eu não conversei com cada um que viu o filme. Daniel - Aí estamos confundindo algo complicado. O Edifício Master tem um pressuposto sobre o olhar, ele não tem é o controle. O Ônibus também não tem controle, mas também tem um pressuposto. Ele não se pressupõe a ser visto pelo público de 20 mil pessoas ou do Baixo Gávea. Mas isso não quer dizer que nem um filme nem o outro não tenham pressupostos sobre o olhar do espectador, ele tem uma intenção. O Coutinho tem um olhar generoso de tentar ouvir cada pessoa, o Ônibus tem o olhar generoso de tentar entender o que aquele homem que cometeu um ato monstruoso pode ter passado para agir daquela maneira. Se o espectador vai entender ou não, isso está sempre fora da possibilidade do documentário definir. Eu só acho que o Ônibus não se destina ao público que o viu, e sim a um público maior. Ele se destina a todo mundo que passou o dia e aquela noite na frente da TV. Existiam milhões de pessoas que viram, e uma série de pessoas que disseram que não iam ver o filme porque isso era o espetáculo do grotesco, e aquele homem é um monstro e estão justificando um ato inaceitável. E a coragem suprema do filme é dizer "não, nada disso". Não sei como são os seus parentes mas os meus são sinistros. Eu sei que 90% das pessoas da minha família, se entrasse a polícia na favela atirando e matando as pessoas como no Carandiru, ia dizer graças a Deus. Eduardo - Eu só tenho a impressão, Daniel, que esse filme visto pelos seus parentes não ia causar a revolução que você imagina. A visão deles parte de um pressuposto de querer ver a coisa de um jeito, e nada que você argumente parecerá lógico, e, pelo contrário, parecerá parcial e uma tentativa de distorcer o que é o verdadeiro problema que é o fato dessas tais pessoas monstruosas estarem entre nós. Felipe - Ah, não vamos caminhar pelo que as pessoas vão pensar... Eduardo - Exato, mas se não pode fazer isso pela negação, também não pode para louvar o filme. Não há como ter a certeza que o Daniel alega que, se o filme for visto, ele cumprirá essa tal função de esclarecimento... (confusão de vozes) Felipe - Mas há uma função social que não passa pelo desvelamento desse personagem. (...) Eu não penso no acontecimento mesmo, e sim no acontecimento audiovisual que a gente compartilhou. Eu acho que o filme consegue criar um objeto de análise, de observação e diálogo muito rico, por ele conseguir reunir imagens, depoimentos que na época se deram, se falou na televisão, mas ele reúne isso tudo. Eduardo - Eu sei, eu gosto do filme também. Eu só vou contra a idéia do Daniel de que o ponto positivo do filme seria a criação desse desvelamento sobre uma questão social aos olhos do público, porque isso não pode ser garantido nem se as pessoas vissem o filme. Felipe - Já o que eu gosto é que acontecimentos audiovisuais, no Brasil, estão sempre relacionados à televisão. E a televisão quase não tem revisão, só no Videoshow... Daniel - E a Retrospectiva do final de ano... Eduardo - Bom, acho que a gente já pode passar pra outros filmes então. Ficando no documentário, vamos começar pelo Rocha que voa... Cléber - Eu queria desconstruir na verdade a tendência a se ver o filme do Eryck Rocha, assim como o do Bressane, de uma forma excessivamente racional e confessar que eu me emocionei profundamente com os dois, de uma forma absolutamente subjetiva mesmo, o que interferiu numa tentativa de entendê-los... O que eu gosto muito do Rocha que voa é que, assim como o Madame Satã, eu acho que o filme tem um projeto. Ele consegue enxergar alguma coisa para a frente, e sem abrir mão de olhar para trás e aproveitar o que de bom foi feito de um ponto de vista exclusivamente cinematográfico, mas vinculado a uma postura política que uma determinada geração dos anos 60 tinha, de não descasar o cinema de um projeto político. Isso antes da eleição do Lula, que ameaça, no sentido positivo, se tornar um líder latino-americano e não só um presidente brasileiro. Mas o filme foi feito num momento em que o conceito de América Latina encontrava-se completamente esfacelado, essa utopia enquanto projeto não existia. E ele acredita nisso, pega o Glauber como metáfora, ícone, e aposta numa necessidade da América Latina existir. Isso me falou muito alto, para além de detalhes de linguagem. Ruy - O filme me toca pela força e contundência de um retrato de um cineasta tentando fazer seu um território que nunca foi, o da América Latina, um território a construir que não existe como conceito, ou se existe só existe como conceito e não como prática. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que o filme está atrelado demais ao que o conceito de América Latina foi nessa época sem tentar ver o que restou disso hoje. Fica um filme utópico, com todo o significado negativo que a palavra pode trazer: o de querer criar uma coisa da sua cabeça e que ela exista sem correlato no mundo real. Então eu acho o filme também, apesar de ser uma palavra que volta mais uma vez pela minha boca com alguma discussão, caduco. Mas, acima de tudo, um filme que me incomoda do ponto de vista do visual porque é um filme que tem um material de áudio muito forte, mas a que nunca faz jus, ou que sempre faz jus através um charme visual relativo ou fraco, que vem daquelas construções das imagens em vídeo ou das cores da videografia ou por um tal "cinema underground". De repente seria um trabalho melhor feito se fosse uma instalação ou um projeto só de áudio com algumas outras imagens que não necessariamente as do filme, não sei... Cléber - O que me agrada é que o filme não tem aquela ambição de ser uma obra que visa a uma competência ou algo redondo enquanto obra, porque faz parte do conceito do filme (ou pelo menos eu entendo assim) tatear e, nesse tatear, estar sujeito a "erros", tropeços, excessos. Mas acho que o filme parte desse princípio, defende isso, inclusive através do que ele mostra. De uma aventura cinematográfica, não se prender a caminhos pré-determinados, a convicções, não só no sentido estético como político. Eu acho que ele realmente está dando um salto ali, sem saber para onde está indo exatamente. Ele não consegue enxergar o que é para a frente, ele sabe o que teve atrás. Agora, eu sinto que tem uma falta de clareza de proposta no filme, mas eu acho que ele assimila isso como discurso da sua existência. Não dá para enxergar para a frente, embora ele acredite que tem que se tentar fazer alguma coisa que fuja do que se espera dele. O erro é um dado positivo do filme, ele quase abre-se ao elogio do erro. O que casa muito com o discurso do Eryck no texto do Globo... Eduardo - Acho legal se falar nesse texto porque eu fiquei surpreso ao ver os dados de que o filme teve 6 mil espectadores. Porque ele cumpriu uma relevância muito maior do que esse número. E, não sei se é positivo ou negativo, mas isso independente das pessoas terem ou não visto o filme. Eu acho isso prejudicial, mas por outro lado pode ser interessante. Porque assim como na opinião pública muitas vezes o cinema brasileiro tem uma má fama que o precede sem ser visto, é interessante que ele também ocupe um espaço maior do que o fato de ser visto. E falando de documentário e de espectadores, eu acho que a gente não pode deixar de falar do Janela da Alma, que é sem dúvida um fenômeno. Um filme que ficou em sétimo lugar entre os mais vistos do ano, na frente por exemplo do Invasor, do Bellini e a Esfinge. Um documentário que chegou perto de 150 mil espectadores e eu não consigo entender bem o motivo disso. Aliás são duas coisas que eu não entendi esse ano no cinema brasileiro: sobre o que é As Três Marias e como o Janela fez 150 mil espectadores... Gilberto - Porque, diga-se de passagem, é um documentário sobre porra nenhuma... (risos) Felipe - Acho que os convidados são a explicação. Eu acho o filme medíocre, sem nenhum interesse, mas ele consegue ter uma escalação fenomenal. Eu fico pensando que um congresso, um seminário, sobre olhar ou visão, com aquelas pessoas, e seria interessantíssimo. O cara faz um pout-pourri sobre o que seria um bom seminário... Ruy - Mas o Oliver Sacks e o Wim Wenders estão entre os piores depoimentos que eu já vi na minha vida. Mesmo o Antonio Cícero... Gilberto - Mas era o Oliver Sacks ou era o Robin Williams interpretando o Oliver Sacks? Ruy - Eu acho os depoimentos nulos, sobretudo sobre cinema, estão todos charlatando sobre o olhar. E mesmo o Walter Carvalho... Se ele considera desfocar a câmera um pouquinho para filmar as coisas borradas seja, em algum nível, uma observação sobre o olhar... Junior - E na hora em que o Hermeto Pascoal fala que o olho dele uma hora vai pra cá outra pra lá, ele fica brincando com a câmera... Eduardo - Em matéria de desfocar, vamos todos concordar que o Walter Carvalho nunca o fez tão bem quanto no Madame Satã, né?... Ruy - Eu prefiro que a gente passe do Janela da Alma, que é um filme nitidamente menor, para um filme que eu acho importante que é o Viva São João. Eduardo - OK, mas eu proponho que a gente o faça a partir de um pressuposto que eu acho interessante: Viva São João e Surf Adventures são dois documentários que, bizarramente, são lançados por majors. Claro que por causa da Conspiração... Daniel - Eu acho que são dois filmes muito bem acabados, que têm muita coisa a dizer, são bacanas, e duas curtições. Agora, o Surf Adventures eu acho que vai ter ainda uma carreira cult. Junior - Para quem já viu Endless Summer eu acho ele bem dispensável... Daniel - Que dispensável o quê... Tem uma cena genial que o cara pega um tubo imenso, a onda cobre ele, e aí a câmera acompanha ele até sair da onda, ele aparece olhando pra câmera sem acreditar, olha pra trás, aponta e a gente vê que o camarada dele está pegando uma mais bonita ainda!... Isso é bonito demais... Eduardo - Esta é a revelação do Cinema Falado desse ano: Daniel Caetano, o surfista! Quer dizer que o crítico de cinema é, antes de tudo, um surfista frustrado. Cléber - E o filme mostrou com seu público que no Brasil tem, pelo menos, 200 mil surfistas... Bom, para mim de todos os documentários foi o mais revelador, foi o que me revelou de fato uma realidade. Para mim, entrei num mundo que eu não conheço. Junior - O filme é inegavelmente competente em trabalhar nesse universo, mas como o Endless Summer já tinha sido... Eduardo - Mas o filme é da década de 60! Se você parte do pressuposto de que todo mundo que viu o Endless Summer não precisa ver este filme, o diretor está certíssimo porque todo mundo que foi ao filme não tinha visto. As pessoas, afinal, só têm 16 anos uma vez na vida... Endless Summer II é de quê, 1993? O jovem de 2002 não viu ele no cinema. Eu acho o filme melhor do que os dois Endless Summer, aliás... Daniel - Bem melhor... Pra começar porque os caras lá são americanos, esses são brasileiros... Ruy - Eu gosto sobretudo da trilha do filme, que conjuga aquilo de rock e de música brasileira que foi feito desde as coisas que o pessoal de surfe está acostumado de ouvir de fora, como hardcore e punk, colocando os similares brasileiros como Raimundos, a fazer conjugação com os Novos Baianos... Já do Viva São João eu gosto acima de tudo do espírito de aventura do filme... Eduardo - Northeast Adventures? Ruy - Eu acho que o filme é mais do que isso. Porque, assim como o Cidade de Deus, ele se admite como estrangeiro e precisando de um apresentador que compartilhe aquele mundo, no caso o Gilberto Gil, que ao mesmo tempo é uma estrela, o que o torna um apresentador por excelência. Consegue resolver muito bem como documentário essa relação entre o fora e o dentro, e consegue criar situações absolutamente cinematográficas, como a batalha com os fogos de artifício... Eduardo - Que aliás se chama buscapé, o que é ótimo para sua tese... Ruy - E, acima de tudo, o momento intimista do Gil em que ele tenta fazer um sumário e síntese do Nordeste sozinho, num final de noite e a câmera faz um giro de 360 graus, larga o Gil e parte para a paisagem do Nordeste, depois volta pra ele, que silencia... Eu acho especialmente tocante porque o Gil não sabe se faz o papel de ex-criança do Nordeste, do sertão, ou de Gil de hoje, e o filme deixa aquilo existir e eu acho uma das cenas mais bonitas do ano. Gilberto - E o filme pegar a figura do Luiz Gonzaga como ponte com esse universo... Ruy - O que muitos consideram um erro, e eu não. Gilberto - Eu também não, porque eu sou um espectador do Rio de Janeiro vendo um filme sobre o Nordeste, e se não houvesse a figura dele... Daniel - Mas eu acho este o problema: sob um certo aspecto o filme tenta sintetizar a cultura nordestina como: a origem em Luiz Gonzaga, e aqui o que nós temos hoje, Dominguinhos, a irmã do Gonzaga e o Gil. E nisso se perde uma série de trocas muito ricas que sempre aconteceram. O Nordeste só explodiu no Rio de Janeiro. A cultura nordestina que existia lá só se organizou como "cultura nordestina" no Rio. A cultura pernambucana com a cultura baiana só dialogaram no Rio, isso acontece mesmo. Ruy - Mas o filme dá conta disso. Porque o São João só explode a partir do momento em que o Luiz Gonzaga existe no Sudeste. Daniel - Mas não é só o Luiz Gonzaga, ele foi o ponto de partida. O Gil comenta Jackson do Pandeiro, etc, e o filme foge, ele só se interessa pelo Gonzaga porque ele se fascina por ele. Se fosse um filme sobre a turnê do Gil e, a partir daí, o Nordeste... Mas ele se fascina pelo Luiz Gonzaga, porque ele virou moda no Rio de Janeiro, no sul do país, e vira um quase-documentário sobre o Luiz Gonzaga, que lembra que é sobre a turnê do Gil, que lembra que é sobre o Nordeste. Mas, se ele nem deve se pretender a dar contra da música nordestina, a mostrar toda a cultura que surge daí, a ponte feita pelo Luiz Gonzaga me parece falha, porque não é só ele... Mitifica-se o cara como um deus, como o grande criador de tudo, como a fonte central e agora os filhotes dele que estão aí, quando a coisa é muito mais complexa do que isso. O Gil não é só Luiz Gonzaga, e muitas outras coisas da cultura nordestina que vêm de lá e que se encontram no Rio, que não aparecem no filme, não vêm de Luiz Gonzaga. Eu gosto do filme, me parece bonito, eu gosto da parte da turnê, da discussão do Gil sobre cultura nordestina, mas quando ele tenta ver o Gonzaga como a fonte de tudo me parece precário, estereotipado. Ruy - Mas o Gonzaga é só o ponto de partida do filme, tanto que só existe Luiz Gonzaga nos primeiros vinte minutos. Felipe - O filme faz esse movimento, ele parte dessa idéia de que vai falar do Nordeste, do Gonzaga, e aos poucos ele vai deixando se levar... Gilberto - E o filme vai crescendo... Daniel - Eu acho que ele era melhor ele esquecer o Gonzaga, isso tudo, ou então ser mais do que ele, fazer uma coisa megalômana: a música nordestina. Agora, só o Gonzaga me parece um mito, o mito que se vende no sul. Parte 7: Dias de Nietzsche, Uma Vida em Segredo, cinema de gênero |
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