Parte 5: Madame Satã, o documentário brasileiro, Edifício Master


Ruy - Passando adiante, acho importante tratarmos do Madame Satã. Para mim, acima de tudo, acho que no momento em que ele existe, e na entrevista que fizemos com o Karim Aïnouz isso está claro, ele é o máximo possível de resistência no cinema brasileiro. Um personagem que não é assumido nem pelo esquema Fernando Henrique, nem pelo Lula, nem por qualquer ordem vigente, que é o máximo de resistência que o cinema brasileiro pôde fazer nos últimos 20, 30 anos. Que é um personagem que simplesmente não encontra seu lugar, porque não encontra. Existe uma velocidade dentro dele que é muito superior a qualquer esquema de sociedade, e ao mesmo tempo é um personagem que, como a própria direção do filme dá vazão a ele, não consegue encontrar seu lugar, destrói qualquer sociologia, qualquer explicação que se possa dar a ele. Esse é que é o lugar dele.

Felipe - O lugar da resistência, é um filme sobre resistência. É o filme brasileiro que mais se articula com novas concepções de formas de resistência sociais, culturais que hoje em dia se discute. É a melhor expressão desse pensamento de resistência contemporâneo em cinema. É a idéia do espaço dele não como uma resistência contrária, e sim uma dessintonia com aquilo, ele tem uma sintomia dele. Não é uma falta de espírito, ele tem um espírito outro, que não se articula diretamente com aquele ambiente.

Cléber - Eu vejo o filme como uma total defesa do confronto, da não concessão, para você encontrar o seu lugar. Eu acho que ele encontra o lugar no final, mas eu acho que o barato do filme é que ele encontra sem conceder em nenhum momento. Ele parte para o confronto. E na entrevista o Karim até nos disse que, com a eleição do Lula, sem confronto o filme se esvaziava do ponto de vista histórico. Ele assume no discurso o que está na tela: é um elogio do confronto mesmo. É ir para a não concessão de maneira nenhuma. Eu acho que é o filme que, em muitos anos de cinema brasileiro, que tem um projeto de país. Que defende um projeto de país, defende um projeto estético.

Eduardo - E essa questão de projeto eu acho importante porque, por mais que eu goste de partir dos filmes, me agrada muito pensar que tem alguém com um projeto de trabalho, como cineasta ou artista, e que conseguiu fazer o filme que se propôs ir fazer quando saiu de casa para a realização. O que a gente mais vê são cineastas que não fizeram os filmes que gostariam, outros que fizeram filmes melhores do que eles pensavam que seriam. O filme do Beto Brant, por exemplo, é excepcional como filme, mas eu não acho que ele vai conseguir criar dali um projeto maior do que o daquele filme. Já o Karim não queria só fazer esse filme. Ele é a ponta de um iceberg do que ele enxerga como arte. E acho especialmente interessante que essa iniciativa, que era marginal no seu nascedouro, tenha sido abraçada pela Videofilmes sem perder sua característica, depois pela Lumière sem perder também, depois pela mídia, e fez 150 mil espectadores. Porque é um trajeto interessante de um projeto que era tão marginal quanto seu personagem lá no início, e que no final conseguiu fazer com que isso saísse de uma marginalidade de recepção, que sumisse num abismo de 1500 espectadores.

Daniel - Eu concordo com isso tudo, mas eu acredito que o ano de 2002 foi excepcional, e o Madame Satã encontrou o seu viés para ser compreendido, mas a gente já tinha tanto um filme com projeto de país quanto com visão de mundo em 2000. O Estorvo tinha uma visão de mundo muito desenvolvida, e um projeto de país no Amélia. Filmes que não encontraram o seu viés porque tinham uma série de diferenças estruturais, mas que nunca deram um passo atrás.

Ruy - Já eu acho dois filmes caducos de cineastas que já não encontram mais lugar. Amélia talvez não no ponto de vista da visão de mundo, mas de realização algo aquém do que podia ser. Estorvo eu acho uma visão de mundo caduca. Madame Satã ao contrário. Estamos aqui em 2003, ninguém sabe o que acontecerá daqui a quatro anos, se o Governo do Lula vai ser a salvação na Terra (o que poucos acreditam que vá ser), onde todos os excluídos vão encontrar seu lugar, o que eu não acho que nem em oito anos com uma reeleição poderia ser, agora o fato do Lula ter sido eleito inclui um questionamento do que é ser de esquerda hoje. E quando estamos defronte de um Governo de esquerda, o que é ser de esquerda, a esquerda da esquerda? O que é fazer resistência?

Daniel - E sob esse aspecto o Madame Satã também caduca. Eu não consigo ver nada de caduco no Estorvo.

Ruy - A esse respeito o filme do João Moreira Salles, e claro que aqui a gente está especulando já que o filme nem existe ainda (Nota do "Transcritor": fala sobre o documentário que Salles faz sobre o processo da eleição de Lula), ele tem toda a chance de ser um filme do Partido porque, por todos os artigos que ele escreveu, ele foi o cara que se admirou, ficou iluminado com a figura do Lula. Enquanto o Madame Satã é um filme que não existe isso, porque não existe atualização para esse tipo de resistência. É um filme sobre resistência em qualquer medida, sobre um personagem que não pode encontrar lugar porque não tem lugar para ele.

Felipe - E que o lugar dele não é tirar o lugar do outro. É um confronto para a criação da vida dele colocada no espaço da própria vida dele. O personagem dá um giro sobre ele mesmo para chegar no lugar dele, a construção daquele espaço. Que é uma coisa extremamente rica nesse momento mesmo que estamos vivendo, que é como fazer resistência ao governo de esquerda. Pensar a resistência num lugar onde você não necessariamente está contra.

Daniel - Só que é muito ruim qualificar filmes como caducos...

Ruy - Estorvo é um filme confuso, e eu acho caduco mesmo, porque os paradigmas dele não são mais os do mundo de hoje. É um filme que olha o mundo do ponto de vista de um paradigma pregresso, que olha o mundo de hoje e não consegue encontrar pontos de apoio, enquanto Satã é exatamente o contrário: tem uma completa visão de mundo que não consegue encontrar lugar num mundo atualizado.

Daniel - Não são coisas que são opostas em si, são diversas. Agora, a postura confusa de perceber que os seus pressupostos diante do mundo que aparece não funcionam mais, isso não é ser caduco, nunca vai ser. Não há um pressuposto sendo defendido no filme, não há um mundo sendo defendido, ele simplesmente não tem um mundo anterior, o mundo novo não é compreensível.

Ruy - Quando Estorvo cai no absurdo ele acaba com tudo. Quando o cabelo dele vira macarrão, acaba tudo.

Gilberto - O que eu acho é que não compete ao Cinema Falado de 2002 discutir o Estorvo... (risos)

Cléber - Mas eu queria deixar registrado que eu acho Estorvo um filme sobre a falta de apoio no mundo, você não saber onde se apóia. Eu vi assim, e aí é uma visão do Ruy Guerra. Você não precisa necessariamente concordar com ela...

Felipe - É um movimento de pensamento estético-ideológico anterior, não é positivo, não está querendo criar nada. O filme se inclui nessa bolha, ele não está indo para lugar nenhum, mas o filme é sobre isso...

Eduardo - Bom, antes que voltemos de vez para 2000, acho melhor passarmos adiante, e só para deixar o Felipe feliz, vamos falar dos documentários, como um grande grupo... (risos) Antes da gente partir para cada filme, o que eu acho é que tem dois dados interessantes: primeiro a Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro ter dado um prêmio para a produção documental brasileira em 2002, que demonstrou uma qualidade, uma relevância, uma presença fenomenal. E, segundo, porque a gente teve uma discussão muito interessante sobre o documentário no cinema brasileiro de 2001 no Cinema Falado do ano passado. Então, acho que é legal a gente partir deles como um grupo para tentar ver e atualizar alguma dessas posições. E aí eu queria só ler para todo mundo quais são os títulos de documentários do ano, para a gente ver o que é o "documentário brasileiro em 2002" quando se fala no coletivo: Surf Adventures, Nem Gravata Nem Honra, Onde a Terra Acaba, Viva São João!, Timor Lorosae, Janela da Alma, Rocha que Voa, Ônibus 174, Zico (que é um filme de duplo registro, e mais até docudrama), Poeta de Sete Faces, Edifício Master, Eldorado. Então, a primeira questão primordial, como coletivo representam alguma coisa?

Daniel - Mas, peraí, os filmes de ficção no coletivo representam alguma coisa?

Eduardo - Não, mas não falaram neles assim. Você mesmo ano passado discutiu um suposto renascimento do "documentário brasileiro", e esse ano foi dado um prêmio coletivo por uma Associação. Isso que eu quero discutir.

Daniel - Eu não falei isso não...

Eduardo - Falou que havia uma escola de documentário brasileiro, e que ele estava especialmente rico...

(confusão geral, ininteligível...)

Ruy - Peraí... Eu acredito que esse ano tenham 4 filmes dos quais a gente deva falar especificamente: Edifício Master, Viva São João, Ônibus 174 e Rocha que Voa pairam acima dos outros.

Gilberto - Você tem esses, de uma forma da qualidade contaminando um volume de 12 títulos que ele leu, que se você for ver na totalidade nem é tão boa assim. Mas se você for ver, tem alguns tão bons que acabaram influenciando a percepção.

Eduardo - E mesmo esse "alguns" são altamente discutíveis, porque com exceção da defesa do Ruy do Viva São João, ou a do Cléber de maneira mais veemente com o Rocha, eu por exemplo só vejo o Ônibus e o Master. Os meus alguns, por exemplo, são só dois.

Gilberto - São dois que geraram uma discussão maior, e um outro que ocupou um espaço, que eu também não gosto, que é o Janela da Alma.

Felipe - A questão do gênero do documentário é que ela não se estabelece dentro dos filmes. O que se criou no Brasil é uma estrutura de distribuição de documentários que é bastante eficiente na TV a cabo (GNT, etc), e funciona assim. Na verdade o gênero documentário que se dá, esse movimento, é por aí.

Cléber - Eu fiz uma pesquisa de muitos anos atrás, e nunca houve tantos documentários como nesse ano. Agora, se é pela TV a cabo ou não...

Eduardo - Mas isso reverte em algo? Porque a minha questão é que a gente sabe que não existia a facilidade de kinescopar material para película nos anos 80 e a Riofilme não estava aí para colocar os filmes em cartaz sem nenhum critério de lucro. E a Associação de Críticos não dá prêmio pelo número, e sim pela qualidade, e isso que eu quero discutir, porque o Edifício Master e o Ônibus 174 já tinham entrado nominalmente na lista de melhores do ano. Aí, minha pergunta é: há motivos no resto da produção para um prêmio coletivo desses?

Gilberto - Acaba caindo no fato que eu falei: você tem dois tão bons, e dois tomando espaço na mídia, que acaba você tomando isso como a qualidade da produção que, se for ver caso a caso, nem é tão boa assim.

Felipe - E tem uma horda de documentaristas que, por fazer um documentário, se sentem de alguma forma filiados, diretamente filiados até, a um filme como o Edifício Master. O filme pode ser o mais porcaria, mas esse tipo de coisa cria uma filiação.

João - Tem gente que acha Edifício Master uma maravilha da natureza...

Eduardo - Inclusive muita gente nessa sala...

João - Mas eu não acho, eu não acho... Essa coisa do Eduardo Coutinho... Eu acho Edifício Master uma grande porcaria. É um zoológico. Para quem anda na rua, anda de ônibus, conversa com as pessoas, não precisa de um filme desses para mostrar como são as pessoas. Ele não fez um filme sobre os prédios, sobre um prédio, e sim sobre as pessoas, sobre a curiosidade. "Meu público não é esse tipo de gente, então eu vou mostrar pra eles como existem essas pessoas ".

Felipe - Mas esse tipo de cinema vem já num contexto muito ligado a televisão e ao telejornalismo. O que faz o Coutinho, basicamente, nesses filmes, é que são filmes sobre como as pessoas falam e se portam diante de uma câmera. A questão é essa.

João - Ele não assume isso nunca, você acha isso. Isso nunca está claro.

Cléber - Eu acho que os filmes do Coutinho são sobre o encontro daqueles personagens com o Coutinho. Ele abre a possibilidade daqueles personagens constituírem um personagem para si próprios, se auto-narrarem. Não acho que o Coutinho vise uma síntese de país, de ambiente, nem de Edifício Master, nem de nada. Quando você fala "vou pegar sobre pessoas que não são meu público", mas há uma diversidade absurda dentro daquele edifício. Ele não está tirando uma média do que seja o habitante daquele edifício, e nem de Copacabana ou da Zona Sul carioca. Ali cada ser humano é um ser humano. E esse é o grande lance do cinema dele, seja na favela ou num edifício: cada ser humano é um ser humano e você não consegue criar uma média.

João - O meu comentário é feito exatamente para esse tipo de sociedade onde a gente está vivendo, e onde as pessoas têm medo de conhecer pessoas fora do seu contexto social próprio, sabe?

Felipe - Mas é um filme que trabalha exatamente a maneira de percepção do outro a partir dessa mediação da câmera. O filme é sobre essa articulação daquela figura com a câmera. O que eu acho estranho no Coutinho é que, segundo o tabuleiro de regras monásticas que ele criou, em alguns momentos o filme escapole a isso, e ele mesmo assume isso, porque de vez em quando as pessoas começam a agir "como deveriam agir", e ele perde o filme, porque ele não quer que a pessoa aja como deveria ser interessante, e sim como é.

João - Eu acho que no Santo Forte tem isso, mas ele acaba com qualquer resquício disso no Edifício Master.

Ruy - Deixa eu acrescentar, porque eu acho que ainda tem uma voz sobre o Coutinho que não apareceu até agora, que é a do Coutinho como realizador do Cinema Novo. De todos esses, o Edifício Master é o mais Cinema Novo da carreira dele pós-Cabra Marcado para Morrer. Uma coisa que eu não deixei de ficar impressionado é a extrema diversidade, e como o povo brasileiro num mesmo edifício consegue ser poliglota, viajar o mundo todo e ser artista ao mesmo tempo. Por mais que ele tenha feito inúmeras entrevistas, e escolhido através de produção um determinado número de personagens interessantes para a tela, o recorte que ele mostra é de um edifício que é ao mesmo tempo um único e globalizado, vai no mundo inteiro, e é artista também. Falando contra o filme um pouco, eu vejo um certo desgaste da metodologia, o Coutinho vem empedrando uma certa forma de ter um projeto e filmar. O filme não é sobre um edifício e sobre a vida nele, e nesse sentido tem um título um pouco errôneo. Mas, ao mesmo tempo, ele toca muito forte sobre a solidão urbana, sobretudo quando a menina conhece só de ouvido a menina de cima, mas nunca viu... Eu acho que o Coutinho é, de todos os cineastas brasileiros, o que menos sabe fazer zoológico e isso transparece no filme quando ao mesmo tempo ele consegue colocar vozes divergentes como o síndico que sabe fazer Piaget e Pinochet ao mesmo tempo, a Maria Pia que acha que brasileiro não sabe trabalhar e ao mesmo tempo como todos os brasileiros que estão lá e tentam trabalhar e conseguem bem, conseguem mal, ou simplesmente não conseguem. Acho que é acima de tudo um filme sobre a não-síntese do cinema brasileiro.

Cléber - Eu acho que essa questão do zoológico está no olhar do espectador. Aquelas pessoas estão representando daquela maneira porque elas querem se representar daquela maneira. O Coutinho não está induzindo ninguém a se mostrar daquela maneira, tá permitindo que as pessoas construam o seu personagem.

Ruy - A questão é que o filme, e disso a gente tem que tratar, foi tratado como zoológico. As sessões de público que a gente viu foram levadas pro riso patético e exploratório de certos personagens, e disso se deve dar conta.

Eduardo - E é especialmente sintomático, e deve ser citada, a desde já clássica recepção da revista Programa, onde cada crítico dava sua nota de estrelinhas para cada personagem, com um espaço em branco para o espectador dar sua nota depois de ver o filme. Mas, se eu reconheço as questões do Joãozinho como válidas, ainda que muito em parte, eu acho que muito mais preocupante que o filme do Coutinho é o olhar das pessoas, sintomatizando a partir dessa revista Programa.

Felipe - A gente falou sobre isso em torno do Babilônia 2000, é uma possibilidade do cinema do Coutinho, por essa contenção que ele faz de elementos cinematográficos expressivos, onde ele tenta articular tudo apenas na montagem, na sequência, e deixa muito aberto para interpretações. Então, ele cai nessa possibilidade da gargalhada, dessa coisa patética de ser só um monte de gente engraçada junto, e isso é uma fragilidade do cinema dele. Mas é uma coisa que é inviável ir para outro caminho.

Daniel - Mas, peraí: o Coutinho não tem que controlar o espectador.

João - Mas é cinema, não é? Você vai induzir o espectador, quer passar o seu ponto de vista.

Eduardo - Mas o ponto de vista dele está lá!

Daniel - Ele foi lá ouvir todos com curiosidade e sem pré-julgar ninguém, agora, se alguém vai lá para gargalhar das pessoas, achar que elas são ridículas, a pessoa foi com um pressuposto que ele não tinha.

Ruy - O Coutinho tem a generosidade de ir pedir do seu entrevistado que dê só o que ele possa dar. Ele não pede para ninguém dar espetáculo, para ninguém chorar. Agora, que o espectador vá lá e possa tirar uma conclusão esdrúxula não é responsabilidade dele.

João - Mas ele pode manipular da alguma maneira para fazer com que isso não aconteça...

Daniel - Mas a idéia é não manipular! A ética é não querer manipular.

Cléber - O que você propõe é uma visão pré-determinada do entrevistado, onde o entrevistado se encaixe na visão dele para a visão dele fechar. A partir do momento em que o cinema dele é o cinema do encontro, ele não tem controle sobre o que vai acontecer.

João - Eu acho que ele pode dar parâmetros para o público não agir dessa maneira quando vê o filme dele.

Cléber - Mas o cinema está no olhar de cada um.

Eduardo - Ao fazer isso, você não está ensinando nada ao público, você está só manipulando ele.

João - Mas, o autor dentro de toda essa impossibilidade, ser autor é conseguir impôr o que ele está tentando dizer.

Daniel - Autor bom é autor morto, Joãozinho!

Felipe - Mas o que ele está querendo impor é essa contenção...

(N do T: a todos os argumentos, depois de um certo momento, se segue sempre uma confusão sonora, discussões sobre o que deve ou não ser papel de cineasta, ou do público, tornando a conversa cada vez menos compreensível)

Parte 6: Ônibus 174 e outros documentários do ano