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Parte
2: Políticas de cinema: Ancine, distribuição, exibição
Daniel - Assim como todo mundo é petista agora... Cléber - O meu receio é que essa coisa do "Brasil na tela" vire uma fórmula e que as pessoas, porque está na onda agora falar do Brasil, comecem a fazer algumas coisas bisonhas e a preocupação que eu tenho permanente é que essa temática social proteja os filmes de serem discutidos, analisados, e se tão retratando isso de maneira x ou y, de que maneira estética. Tem sempre o risco de que esse "conteúdo" crie uma armadura contra qualquer tipo de contestação. Aí você começa a falar da realidade, e as críticas passam a falar do Brasil, mas não dos filmes. Boa parte das críticas que eu li, por exemplo, do Cidade de Deus ou do Ônibus 174 falavam do Brasil, mas não dos filmes. Os filmes vestiram um escudo protetor. No caso do Cidade de Deus, inclusive, houve uma intolerância que eu acho gravíssima, com quem não defendeu o filme. As críticas mais elogiosas começavam sempre detonando quem havia feito críticas negativas ao filme. João - Mas o filme está sendo avaliado como um discurso sobre o Brasil, tem agora o MV Bill se posicionando, e eu acho que não passa por isso... Daniel - Eu acho que só passa por isso. O filme tem o nome de um bairro que existe, usa analogias com pessoas que existiram. O filme não é só isso, mas ele também é isso. A gente não pode dizer que o filme é só um filme de divertimento que chupa Tarantino pra mostrar a favela do Rio. Tem a vida das pessoas nessa favela, e o filme influencia isso, e acho que isso precisa ser discutido. Não adianta discutir o filme só pelo lado do Brasil, mas tem que discutir o filme com a vida também. A relação do filme com o espectador, e não o olhar do espectador sobre o filme, tipo "ah, o espectador vendo esse filme ele vai pensar isso e usar o senso comum...", o que é um engodo porque cada espectador vê o filme de um jeito. Mas não adianta pensar que se vai descobrir qual é o Brasil falando de um filme, você nunca vai ver um filme e vai ver o Brasil, vai ver a vida, de alguma forma isso vai ser um recorte, vai ser uma opção, vai ser um retrato. Então, essa crítica sempre vai existir. Eduardo - O que eu acho ruim e bom sobre isso é o seguinte: os filmes não podem fugir de serem objetos, mas por outro lado a crítica cinematográfica, em sentido mais estrito, tem um público ou uma capacidade de abrangência muito menor do que quando o filme permite um escape para outras questões. Então, eu acho que deve se contrabalançar esses dois pontos. Porque os filmes só se tornaram vitais quando escaparam dessa discussão no meio cinematográfico, por outro lado, tem o risco de você sair disso, fugir do cinema e nunca mais voltar a ele. Felipe Bragança - Caindo no discurso sociológico, que é o que acontece muito com o discurso psicanalítico. Podemos entrar nessa onda e começar a discutir sociologia, esquecendo do cinema enquanto discurso. Ruy - Eu acho que antes de cairmos nos filmes em si, acho que tem mais um assunto para discutirmos: com a entrada da Ancine, a gente está vendo o prenúncio da divisão dos filmes a serem produzidos em dois. Um, os filmes que a Ancine trabalharia, com uma expectativa comercial de público, de grandes lançamentos, e um que não se sabe hoje se vai pro MinC ou pra outros tipos de edital da Ancine, que são os filmes de interesse cultural. E resta saber se o que a Ancine quer fazer é um filme de 3 milhões como o CDD, um filme de 350 mil como Abril Despedaçado ou um filme de 20, 30 mil pessoas. Daniel - A Ancine não tem que decidir nada disso, ela tem que fomentar todo tipo de atividade. A partir do momento em que ela decidir um viés de preferência ela estará agindo de forma anti-ética sob o aspecto civil. Agora, a questão é a seguinte: qual tipo de ajuda. Um filme caro tem que ter um tipo de ajuda, e um filme barato, outro tipo. É óbvio que um filme que tenha 7, 8, 9 milhões de reais de orçamento tem que ter uma atenção na distribuição externa, na atenção aos festivais, de colocar os filmes em exibição em outros países que é muito maior que um filme de 100 mil. Agora, o filme de 9 milhões não pode estrear todo pago, e o filme de 900 mil você pode discutir isso. Eduardo - Agora o que tem que ser levantado é que hoje, 26 de janeiro, quando realizamos esse encontro, nem o Gustavo Dahl nem o Orlando Senna, nem ninguém sabe ainda o que é que a Ancine vai fazer. Ainda não se decidiu qual o papel da Ancine exatamente nessa organização desse novo Governo. Isso que o Ruy colocou foi uma idéia discutida na criação mesmo da Ancine, mas que o Orlando Senna renegou agora ao assumir a SAV. Então, ninguém sabe. É uma discussão que está ao mesmo tempo bizarramente atrasada e antecipada do seu tempo, primeiro porque ela já devia ter acontecido há muito tempo, mas depois porque ela está se antecipando aos fatos. Já chegou a se discutir inclusive que a Ancine passe a ser, como é o caso da Anatel, da ANEEL, como é o caso das outras agências fomentadoras, um órgão muito mais de controle e de implementação de uma política não no sentido prático de pegar e destinar dinheiro para isso ou aquilo, mas de dizer "ah, precisamos de um plano nacional estratégico de energia elétrica e aí vamos ver como as empresas estão se adequando e cumprindo ou não esse plano". Então, ainda está tudo no ar. Daniel - Verdade seja dita, isso não é responsabilidade do Governo atual, mas o Governo anterior não conseguiu deixar claro e fazer funcionar de fato o modelo, tanto que não chegou a transferir a Ancine de um Ministério para o outro. Eduardo - O que eu acho uma idéia mais do que velha, mas que não perde a validade, é que onde se devia diferenciar cinema comercial do cinema "de interesse cultural" não é no apoio e sim nos tetos e de entrada do Governo nisso. O que não se pode mais, assim como eu acho que nunca devia ter podido, é colocar 3 milhões de reais de dinheiro público, como renúncia fiscal ou investimento direto, num filme da Xuxa. Isso não faz o menor sentido. Agora, eu também acho que não existe entregar o cinema comercial às suas próprias forças e dizer: "ah, se você quer fazer um filme comercial de 3 milhões, vai lá e faz, se der lucro ótimo, se não der, azar". O mercado não permite que haja lucro. Daniel - Mas essa é a diferença entre financiamento e patrocínio. No patrocínio você só dá a grana e quer apenas o filme. No financiamento, você quer o dinheiro de volta. Eduardo - E o que eu acho essencial, Daniel, foi aquilo mesmo que você já disse. Seja com a televisão, seja com algum outro tipo de discussão, o Governo não pode ser omisso em cobrar que esse dinheiro tenha um retorno. E esse retorno nem precisa ser financeiro, é social mesmo. Temos que deixar de financiar o cinema brasileiro com dinheiro público, fazendo esse contraponto puro de dinheiro gasto e retornado? Não, porque cinema é cultura, e cultura não se mede dessa forma para ver se fez sentido aquele investimento público de dinheiro. O que tem é que garantir algum retorno para a sociedade previsto. O que não faz sentido é colocar todo o dinheiro, e todo lucro que vier disso fica para o produtor. Daniel - Eu fico imaginando o Roberto Marinho ou o Silvio Santos colocando dinheiro num produto que é filmado e depois eles não têm direito de exibir. Coloque-se uma janela de cinco anos para o cara exibir, gerar lucro, OK, mas que daqui a cinco, dez anos, o filme tem que estar na tevê para quem quiser assistir. Ruy - O que eu estava falando da Ancine é que ela entrou quando se pensava "big", em cinema brasileiro atingindo seu público, em redes de distribuição e fomento, mas o que eu quero saber é se queremos construir cinema brasileiro popular com filmes que têm uma certa dimensão de público, você até pode discutir se eles são bons ou ruins mas possuem chance com o público, como CDD ou Avassaladoras ou se você quer fazer cinema popular com Deus é Brasileiro ou O Tronco. Daniel - Você já viu Deus é Brasileiro? Ruy - Eu sei que ele tem um certo limite de atenção. O Antonio Fagundes não é um galã que vai chamar como o Murilo Benício, ou melhor, que vá chamar a juventude, que é quem assiste filmes hoje em dia, e tem o seu perfil de público reduzido que certamente impede que ele faça os 3 milhões... Cléber - Mas eu não tenho certeza que ele não vá fazer tanto público quanto Avassaladoras, acho que fica no mesmo tamanho. Acho que ele tem apelo popular sim. Eduardo - Eu acho que foi um mau exemplo, porque eu realmente acredito que seja um belo exemplar de cinema comercial brasileiro em 2003 sim. Luis Carlos Oliveira Junior - Essa questão do cinema comercial eu acho importante: o que é o cinema comercial? Há uma indefinição com relação aos projetos. Se vamos falar de cinema comercial, temos que falar do cinema americano: ele até encontra problemas hoje, porque cada filmeco custa 20 milhões de dólares, entram dez filmes por semana, cada um tinha que fazer vinte milhões, e eles encontram problemas lá do eixo deles, hollywoodiano. Mas, o projeto do filme já tem uma ambição comercial e ele vai se estruturar para atingir esse objetivo. Mesmo um filme médio, que não ambicione ser o Titanic, no mínimo ele traz o seu "feel good" que faz com que o público vá ao filme sem medo, assista e isso permite que o filme preencha suas premissas. Aqui no Brasil, o que seriam esses filmes? Qual seria o projeto de cinema comercial brasileiro? O que seriam os filmes médios que estrearam em 2002? Eduardo - Eu acho essas categorizações muito complicadas... Depois que você sabe que os filmes existem é muito fácil fazer essas diferenciações, mas como é que você sabe ao ler um roteiro se Deus é Brasileiro é um filme comercial ou se Cidade de Deus era um filme comercial? Porque Carandiru é um filme comercial, exatamente? Porque alguém resolveu colocar 5 milhões e a Columbia vai lançar dessa forma. Porque o tema, o elenco, não indicaria... Então é complicado você partir de filmes prontos e querer criar um critério, porque só com o filme pronto é que você pode chegar e olhar para O Tronco e dizer: "Pô, esse filme não vai dar dinheiro mesmo". Mas o cara precisa terminar o filme para eu ter essa sensação. Agora, não dá para pegar um roteiro e dizer "pô, esse filme tem cara de que vai dar uns... 200 mil espectadores". Daniel - O critério tem que ser o número: o filme custa até 1 milhão, é um filme barato; custou entre 1 e 3 milhões, é médio; custou mais que 3 milhões, é um filme caro. Não interessa o que está no roteiro, porque o Governo não tem o direito de julgar isso aí. Ele tem que dizer: "Bom, o cara chegou aqui com um projeto de 6 milhões. Vou fazer o quê? Vou ajudar a conseguir distribuição internacional, tentar ajudar a conseguir distribuição aqui, vou fazer um financiamento e querer o dinheiro de volta". Aí o cara chega com um orçamento de 800 mil, você dá o dinheiro se for o caso, e depois exige direito de exibir. Não tem que julgar estética. Porque se é o Bressane ou se é o Galante querendo fazer uma pornochanchada, daqui a 30 anos podem preferir o filme do Galante. Eduardo - Até porque se você utiliza o critério estético no projeto você estrangula uma série de possibilidades. Você não pode aceitar, por exemplo, a existência de um Sinais ou de um Planeta dos Macacos porque não há ali a possibilidade do "feel good" ou da fruição estética comercial de um grande filme americano. É claro que a grande questão nos EUA não é essa, e sim a distribuição. Então, não importa se o Sinais de fato não é aquilo que ele vende ser, porque ele vende tão bem que é aquilo que as pessoas vão ver, e ele vai dar 300 milhões de dólares independente do fato dele não ser aquilo que parecia. O próprio Cidade de Deus: duvido que alguém no mundo, mesmo o Fernando Meirelles, achasse que o filme fosse dar 3 milhões de espectadores. E aí você vai impedir que isso aconteça, pegando o projeto no início e dizendo: "não, esse aqui não é um filme comercial, claramente é uma proposta social de cinema, um filme menor, vamos lançar para um público menor..." Ruy - Do ponto de vista institucional isso nem seria possível porque o filme só pegou dinheiro estatal para lançar e terminar, não no começo. Daniel - Segundo ele, usou apenas 20% de incentivo fiscal, o resto foi grana dele direta ou de investidores sem o incentivo da lei. Cléber - Mas nessa questão do cinema comercial, o americano tem essa cultura e essa ciência, porque quando a Fox vai investir num roteiro e diz que aquele roteiro custa 50 milhões, claro que se eles decidem isso é porque eles acham, na ciência deles, que aquela soma vai ser lançada com tantas cópias nos EUA, vai circular em tantos países do mundo e eles vão ter uma bilheteria X. Isso eles fazem aqui no Brasil: quando o Almodóvar estréia, que nem é uma superprodução, a Fox tem ali projetado quanto que o filme vai ter de público, para decidir o número de cópias e a divulgação. Eles não estão arriscando no Almodóvar. Então tem uma ciência. Daniel - E o cinema americano independente não custa vinte milhões. O cinema americano nova-iorquino custa entre 1 e 5 milhões de dólares. Eles têm a ciência de que não podem colocar vinte milhões, tem esse cinema médio. Só que mesmo o filme independente pode ainda ser comprado e lançado por uma boa distribuidora. Eduardo - Mas o dado principal que a gente está esquecendo nessa discussão é que nos EUA, nos grandes estúdios, quando um cara passa a olhar um filme sob o critério do que vai dar em termos de bilheteria, o cara que vai colocar o dinheiro é o mesmo que vai distribuir depois. Se for para aquilo ficar bom, é ele quem vai colocar o dinheiro dele para dar certo. No Brasil é bizarro você querer segurar o dinheiro da produção por critérios comerciais se você não pode garantir em esferas governamentais a forma como aquele filme vai chegar no público depois. Cada filme fica na mão do produtor: se quiser você negocia com a Columbia ou com a Lumière, quer dizer, não há controle do fato que faz o filme chegar ao público. Como você pode planejar antes quanto público um filme vai dar se você não tem nenhuma ingerência sobre o processo de lançamento dele? Trata-se de uma dualidade. Cléber - Mas esse é o problema do incentivo fiscal: o dinheiro não é de ninguém, ninguém se responsabiliza por ele. Não é da iniciativa privada e o Governo também finge que também não é com ele. Eduardo - Mas o Governo, enquanto não trabalhar a distribuição, e ninguém sabe se ele vai fazer isso ou não, mesmo que, como alguns desejam (e não deixa de ser interessante), parte dessa renúncia fiscal seja revertida em investimento direto, não importa de quem seja o dinheiro, não se pode saber quanto público um filme vai dar. Afinal, quem vai fazer o lançamento? Quando a Fox resolve colocar 60 milhões num filme, ela já sabe quanto a mais vai gastar com o lançamento, já está pensando a campanha de distribuição ao começar a produzir o filme. Daniel - A gente recebeu outro dia a lista com os lançamentos previstos para esse ano, e tem coisa programada para 16 de fevereiro de 2004. Os caras não dormem de touca. Eduardo - Por isso eu acho perigoso sempre que se fala em cinema comercial brasileiro porque não tem a estrutura física nem a tradição para discutir a sério o que seja o tal comércio do cinema brasileiro. Em segundo lugar, não tem uma mesma cabeça controlando as duas fases: a da produção e a da chegada ao público. Então, é estranho este comércio onde quem bota o dinheiro não é quem recebe no final, aonde ninguém sabe nem tem planejamento algum... O filme do Babenco, por exemplo, vai ser lançado em abril. Vai ser lançado em abril porque é quando ele vai ficar pronto, não porque a Columbia decidiu há um ano e meio que seria a melhor época de lançá-lo. Até porque se começa o filme sem ter captado o dinheiro pra terminar, então como vai se exigir algum planejamento? Por isso que eu não acredito nessa noção de "cinema comercial" no Brasil. Tem o cinema que por acaso deu público e o cinema que por acaso não deu. Com exceção da Globo Filmes, diga-se de passagem. Daniel - Mas também tem a questão do talento e da sensibilidade. Fazer o Tarantino na Cidade de Deus é um exemplo do tipo. Que não passa por regras, é verdade... Eduardo - E mesmo a Globo Filmes é diferente. Porque ela só investe pesado nos produtos da casa, como Os Normais - o Filme ou Casseta e Planeta Rumo ao Oscar. CDD e Central do Brasil, por exemplo, são filmes onde a Globo Filmes entra quando ela já sente que ali vai dar dinheiro, quando já está lançado e premiado em Berlim, etc. Parte 3: O fenômeno do ano: Cidade de Deus, Cidade dos Homens |
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