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Parte
1: O cinema brasileiro e o público em 2002
Eu queria começar aliás num ponto que acho interessante: como a gente sabe que os filmes levam muitas vezes de quatro a cinco anos para ficarem prontos, será que a gente deve atribuir a safra desse ano a um feliz acaso desses filmes acabarem ficando prontos mais ou menos numa mesma época para o lançamento, ou há alguma lógica? Ruy Gardnier - Eu acho que naturalmente você não tem movimento nenhum, os realizadores não vêm de uma mesma base, não têm semelhanças de criação ou de objetivos estéticos. Agora, 2002, acima de tudo, vai ficar para a História como um ano de namoro do cinema brasileiro com o público, de debate, quando no fundo eu não sei se é isso. Se você vê nos jornais, se abriu muito mais espaço do que se abria antes: o filme do Eryk Rocha rendendo não só artigos, como ele escrevendo no jornal, sendo rebatido por outro cineasta; ou o Cidade de Deus não tendo só as notícias de prêmios disso ou daquilo, mas com os jornalistas indo à Cidade de Deus, etc. Do ponto de vista da discussão pública daquilo que a gente chama de formadores de opinião, o cinema brasileiro circulou muito bem em 2002, mas pela lista de bilheterias que a Filme B nos forneceu a gente vê que tem uma lacuna enorme entre Cidade de Deus e Xuxa e os Duendes e todo o resto, não é? Eduardo - Eu acho que o que os números mostram de mais interessante é que o filme médio está morto. Filme médio, digamos, um filme de 500 mil a 1 milhão de espectadores, que simplesmente não existe na tabela, e onde uma série de filmes deveria atuar. Temos aí o Cidade de Deus e o Xuxa num patamar bizarro, acima de 2 milhões, o que é sempre um fenômeno, como fenômenos há no cinema americano, onde só alguns filmes mesmo batem as marcas deste tipo, mas falta o sucesso médio. Porque esse ano não houve, porque disso pulamos para alguns filmes na casa dos 400 mil espectadores, mas pelos títulos eu acho que todos podemos ver que eles esperariam ter feito mais espectadores do que isso, e aí a gente passa para aquela outra faixa em torno dos 100, 150 mil, e ai descendo a ladeira. Ruy - Mas o que eu acho curioso são os filmes de baixo orçamento e de lançamento pequeno ou médio (como Madame Satã ou Edifício Master) que conseguiram um público excepcional para aquilo que eles se propunham, atingindo o nicho de mercado que eles pretendiam. Eu acho que esse é um tipo de coisa que tem acontecido desde o início da retomada, com a Tata Amaral, por exemplo. Mas o que você não tem são filmes como o Avassaladoras ou talvez o novo do Murilo Salles agora, que se pretendem tentar mais do que isso, ou seja, ser um fenômeno de público que escape somente da Zona Sul (caso do Rio) e os circuitos de arte. Esses realmente você não tem, exceção ao Avassaladoras e ao Abril Despedaçado, mas mesmo assim com um público muito menor. Eduardo - E o que me chocou particularmente é a Riofilme comprovando sua vocação para enterrar os filmes. Se você olha entre os 35 filmes ela lançou, no Rio, em torno de 13 deles. Quase na totalidade são os 13 últimos da lista de bilheteria, claro que com pequenas exceções. Na nossa lista atualizada em 20/1, os filmes da Riofilme de qualquer relevância com o público são o Edifício Master, chegando aos 50 mil, que é uma marca ótima para um documentário, mas que esse ano fica bem atrás por exemplo do Janela da Alma com quase 140 mil espectadores, e o filme do Domingos Oliveira, que estreando agora em janeiro está se aproximando dos 50 mil também. Mas o resto está muito abaixo disso, e com isso os filmes de sucesso médio foram os não lançados pela Riofilme, como O Invasor, que chegou perto dos 100 mil, lançado pela Pandora, o Bellini e a Esfinge, que aliás certamente fez menos do que a Copacabana Filmes esperava, com 60 mil, ainda assim acima dos da Riofilme, o Madame Satã lançado pela Lumière, o Janela da Alma já citado, também da Copacabana, quer dizer, todos os filmes que fugiram do patamar de 15 a 20 mil espectadores não eram os filmes da Riofilme. Ruy - Mas aí é uma coisa para você discutir que é o fato de que os filmes já chegam na Riofilme enterrados. Eduardo - Sim, por isso que eu acho que tem que ser discutido mesmo. Gilberto Silva Jr. - O que eu penso é o seguinte: o Master mesmo teve um lançamento covarde. Ele saiu com uma cópia só aqui no Rio, e no Espaço Unibanco 3, o que eu acho uma covardia pelo espaço que ele estava ocupando na mídia com prêmios, etc. Ruy - Mas, na primeira semana você não tem como saber o que vai acontecer na mídia, e o Master teve a sorte de ter na primeira semana duas páginas na revista Programa... Daniel Caetano - Não é só sorte não, esse trabalho foi da Videofilmes que fez um belo trabalho de distribuição em festivais, de divulgação nos jornais, e que distribuiu uma série de ingressos gratuitos. Tanto o pessoal da Videofilmes quanto o Coutinho tinham a idéia de que era mais importante o filme existir do que exatamente ser pago. Então os números do Master tem que levar em conta esse trabalho, que independe da Riofilme inclusive. Você passava na praia e tinha pessoas dando ingressos (ou vale-ingressos), isso aconteceu e é algo que não acontece com filme brasileiro nenhum. Como o filme brasileiro estréia pago, como a gente bem sabe, acho que era uma questão ideológica para eles que o filme fosse visto. Eduardo - Mas o dado da Riofilme que me preocupa mesmo, ou melhor, que eu acho que deve ser discutido, é que ela tem um formato de lançamento que é absolutamente escrito em pedra, onde ela não parece trabalhar nenhum filme diferenciadamente, e trabalha os filmes de forma igual tanto em termos de mídia (sempre tem aquele tijolinho no jornal, que custa uma grana, aliás, e é de pouco efeito se você não sabe que filme é aquele), quanto em termos de tamanho de espaço (sempre lançando no Espaço 3, tentando o UCI com fracasso...). Se pensamos que Eu Não Conhecia Tururu, por exemplo, tinha tijolinho no Rio Show e na Programa e fez menos de 1000 espectadores, a gente vê que não é exatamente isso que garante o público. Então, o que eu acho é que ela cai nesse formato já muito confortável e não trabalha os filmes. Há filmes como por exemplo o Latitude Zero ou o filme do Bressane, e ninguém aqui está querendo que esses filmes façam 100 mil espectadores, mas o fato é que este filme é tratado igualzinho a um Lara ou Timor Lorosae, sem respeitar nenhuma diferença que haja entre os filmes. Daniel - Há que se dizer também que a Riofilme praticamente arrenda um cinema, bancado, que é o Espaço Unibanco 3, e coloca os filmes lá, que está confortável num sistema para a Zona Sul carioca. Eduardo - O que eu acho é o seguinte: para citar três filmes que nem foram sucessos, para não dizer que vamos tratar dos fenômenos, Rocha que Voa, Uma Onda no Ar e O Príncipe, que foram três filmes "menores" não lançados pela Riofilme, onde provavelmente teriam esse lançamento em formato, tiveram lançamentos diferenciados, até porque eram os que as distribuidoras estavam lançando naquele momento, então se dedicaram a trabalhar como materiais diferenciados. Podem não ter conseguido um enorme sucesso, mas arriscaram, assim como Bellini e a Esfinge. E, nesse ponto, eu acho que o grande lançador, seja por estar com a cartela correta ou por ter conseguido achar a estratégia correta, foi a Lumière, disparado. Independente de ter feito três milhões e tal com o Cidade de Deus, ela fez a terceira bilheteria com o Abril Despedaçado, e ainda o Surf Adventures e o Madame Satã, todos acima de 150 mil, e o único fracasso que eles tiveram foi o As Três Marias. Daniel - É, mas tem a ligação deles com a Videofilmes... Eduardo - Tem a Videofilmes, mas é bom pensar nisso porque a gente pode comparar talvez não esses filmes com os da Riofilme, mas podemos pensar por exemplo em relação à Columbia com o filme do Furtado, que é um filme de lançamento completamente equivocado. Mesmo no Rio, onde ele está agora dando mais público por cópia, ele só estreou agora por insistência do Estação e da Casa de Cinema porque achavam que o filme devia ser lançado no verão, foi mal trabalhado como a Columbia já fez com tantos filmes brasileiros... Daniel - Mas isso desde os anos 50, né... Eduardo - Mas eu acho interessante a gente comparar o trabalho da Lumière com o produto dela em relação a esses lançamentos: você pensa no Madame Satã, por exemplo. É um filme que você pode dizer que tinha uma presença na mídia... Daniel - O Ônibus 174 teve muito mais presença... Eduardo - Teve, mas o que eu acho legal é pensar o cinema brasileiro dentro das distribuidoras. A Warner e a Fox é mais difícil de ver porque a primeira esse ano só lançou o filme da Xuxa e a segunda, o Avassaladoras. E tem a Playarte com o lançamento do Jacobina... Mas, o que me preocupa mesmo é esse conforto da Riofilme, porque ele indicaria um estar satisfeito, por não se mexer na estratégia de lançamento. E a gente vê os últimos seis filmes da lista, por exemplo, todos da Riofilme, têm entre 800 e 3500 espectadores. Ruy - A gente já falou mais de uma vez em Cinema Falado que a Riofilme não "nasceu" pra isso, ela recebeu essa pecha de distribuidora nacional porque não tinha quem fizesse isso. Agora, tratava-se de uma estratégia quase terrorista de desova de filmes, e ainda hoje é o que parece. Dos filmes que não têm outra opção, e torna-se um cemitério de fato dos filmes. Eduardo - Então eu acho que o importante de trazer para o debate é o seguinte: desova de filmes interessa a alguém? De que adianta Eu Não Conhecia Tururu ter sido lançado comercialmente para 800 pessoas, ao invés de ficar restrito ao circuito dos festivais onde pode ter sido visto, sei lá, por 3 mil pessoas? Ser lançado fez alguma diferença para ele? A quem serve então esse lançamento comercial com o qual se gasta uma senhora grana? Daniel - Mas a Riofilme, segundo sua administração e a administração municipal, deve dar um dividendo político-cultural... Eduardo - É, mas isso lá para o prefeito. Mas, eu preciso perguntar do nosso lado: a quem serve o lançamento desses filmes desta forma, no cinema brasileiro? Daniel - Tem agora o discurso cultural cotidiano do prefeito de que isso é para "criar uma Broadway carioca", mas a gente sabe que não é assim... Mas eu acho que isso é complicado, e mais importante talvez do que falarmos de política de lançamento é ver o que surgiu muito rápido esse ano, que foram os filmes de baixo orçamento. Afinal, um Coutinho ou um Walter Salles, são carreiras já constantes, enquanto o Meirelles me parece um caso meio excepcional. Mas o impressionante é ver a coisa, por exemplo, do Madame Satã ou do Invasor, do Baixo Orçamento, desse concurso que deu um gás na produção e que se mostrou um projeto importantíssimo. O Satã é um projeto de mais de 5 anos, mas os filmes aconteceram mesmo, em termos de filmagem e exibição, de acontecimento cultural, muito rápido nesse ano. Eduardo - Com o detalhe que o Satã não foi um filme do concurso, e sim de levantamento inicial de fundos externos. Daniel - Assim como foi o caso do filme da Lais Bodansky, que acho que se encaixa... Mas, o que eu quero dizer é que, por exemplo, no ano passado teve o Xangô que levou sei lá quantos anos pra fazer, custou 6 milhões, o que é normal, assim como o Carandiru, o filme do Cacá, o cara faz uma senhora produção, mexe com um monte de pessoas, cria uma quizumba, se acertar, maravilha. Mas o impressionante do baixo orçamento é que ele permite que apareçam novos valores, que os filmes aconteçam rápido, criando uma discussão e um acontecimento cultural. Essa possibilidade de agilidade de produção é uma das marcas desse ano. Eduardo - Se não há movimento estético montado, e não há mesmo, eu quis levantar no início aquela bola do acaso, porque eu acho que não é mesmo por acaso. Tem aí a questão do baixo orçamento, que surge de uma fonte dupla, primeiro esse concurso, mas também a simples crise do sistema de captação mesmo. Passou o momento em que se conseguia captar, como no final dos anos 90, para fazer se fazer filmes de 5 ou 6 milhões a torto e a direito. Então, eu acho que se viu aí um nicho, prova disso é o Sérgio Rezende que fez seus filmes de baixo orçamento nesses anos, e que é um cara que diz que quando está favorável para fazer superproduções, ele faz, quando está para filmes de baixo orçamento, ele faz. Tornou-se um momento necessário de fazer esses filmes. Mas eu acho legal atrelar isso não somente ao concurso ou a uma crise, mas também na questão do surgimento de novos diretores. Se já se falava de uma onda de diretores estreantes que surgiu no fim dos anos 90, esse ano é exemplar. Quase todos os filmes de destaque que falamos são de diretores de primeiros filmes, com possível exceção de Coutinho, Domingos e Giorgetti. Agora temos aí Eryk Rocha, Karim Aïnouz, o próprio Furtado, Beto Brant é um diretor de terceiro filme assim como o Meirelles, o próprio Andrucha, são diretores jovens... Daniel - Nem tão jovens... são uma geração engasgada. Mas continuamos tendo as grandes produções, ainda que num número bem menor, que estão nas mãos daqueles que têm currículo para chegar na empresa e pedir 6, 7 milhões... Ruy - Agora o que acho que se deve observar é a demora do projeto. Se o Karim Aïnouz leva cinco anos pra filmar, outros tantos até lançar o filme, e vai demorar outros tantos para fazer o próximo, a Tata Amaral tem aí quase 6 anos do primeiro filme, fez um segundo, mas sabe-se lá quando vem o próximo. Ou seja, você tem uma carreira que é vacilante sempre. Então, o BO, a longo prazo, vai dar incentivo a novos realizadores, mas não vai garantir que os cineastas consigam filmar com frequência. Outro risco do BO é a presença de diretores que podem empedrar esse fluxo, como o Paulo Thiago que é um cara acostumado a fazer suas produções de milhões de reais, e aí aparece com um documentário sobre o Drummond, baratinho, de conteúdo cultural-histórico. Então eu acho que o BO corre o risco de ser empedrado por esse pessoal que estava fazendo os filmes caros e aí resolvem migrar para onde está o concurso, enquanto ele devia dar vazão a novos realizadores. Eduardo - Mas é importante que se diga que o concurso, pelo menos oficialmente, não assume essa função. Tanto é que no segundo edital, que não sabemos se será o último, aliás, já que isso é incerto dentro de um mesmo governo e ainda mais com a troca, neste segundo tivemos entre os premiados Andrea Tonacci e Maurice Capovilla. Que não são, afinal, nem um pouco jovens, mas tem toda a importância do edital vir dar a chance pra quem não conseguia filmar há 20, 30 anos de retomar a produção. Daniel - O BO, como sempre acontece, junta tudo no mesmo saco. É a mesma coisa com as leis de incentivo, que surgem pela lógica do filme cultural, ou seja, do que precisa estrear já estando totalmente pago, e aí foi financiar filmes de interesse absolutamente comercial. O BO coloca no mesmo saco do filme barato tanto os estreantes como os mais coroas que estavam parados, como também pessoas que estão apenas querendo produzir seus filmes baratos para ver no que dá. Quer dizer, eu acho que precisava explicitar esse tipo de critério, mas para isso é claro que precisava funcionar o tal fundo cinematográfico para ter vários tipos de concurso, como acontece na França, etc. Eduardo - Eu queria aproveitar o BO para trazer à tona um outro tema, embora mais uma vez ele não tenha essa função explicitamente. É daquela coisa que discutíamos tanto aqui no fim dos anos 90, em termos temático, da falta de relação dos filmes com o Brasil de hoje, com os temas urgentes. E eu acho que se a produção de 2002 provou alguma coisa foi que os baixos orçamentos permitem um número muito maior de filmes que lidem com isso, e em segundo lugar o que não pode estar desatrelado é a resposta da mídia. Se ela volta a falar do cinema brasileiro, isso se deu porque o cinema brasileiro voltou a falar do Brasil que interessa a ela, que é o Brasil de hoje. Se você olha o Cidade de Deus, O Príncipe, O Invasor, Edifício Master, Ônibus 174, Madame Satã... Daniel - O Satã é um filme histórico... Eduardo - Ele é um filme passado num período histórico, mas tanto o discurso do seu realizador sobre ele quanto o filme em si mostram que ele ambiciona falar muito mais do Brasil de hoje do que de um momento histórico. Aí a gente vê que o BO, seja como concurso ou como momento de captação que leva a essa produção, levou a uma série de filmes que ao fazer o que tanto pedíamos e falar do Brasil de hoje, voltou a ter a atenção da mídia. Se tornou vital. Daniel - E os filmes passaram a ser muito mais incômodos, também. Quando um filme desagrada, ele desagrada muito. Antes você podia reclamar que um filme histórico não tinha interesse e tal, mas agora você sai do cinema revoltado com as opções do filme... como nos festivais e em estréias. E isso é fundamental, porque você se posiciona não só de acordo com o interesse que a coisa desperta, mas por aquilo que ele diz do seu cotidiano, da sua vida. Cléber Eduardo - Eu queria falar duas coisinhas sobre isso do BO e da tal onda do Brasil na tela. Eu acho que independente de falar disso que é o Brasil de hoje, eu acho que essa política de baixo orçamento devia ser um projeto de cinema no Brasil. O novo Governo assume agora contendo gastos em todos os setores e seria um absurdo o cinema ser poupado disso. Acho mais saudável você ter mais filmes com o mesmo valor que se gasta hoje, criando de repente um teto de captação. Como é dinheiro público, acho essa uma questão bem grave. Você olha esses números da bilheteria, e eu acho uma coisa vexatória mesmo. O que significa em termos de sociedade brasileira o Ônibus 174 ter 18 mil espectadores, por exemplo. Estamos falando de um guetinho que é a elite da elite, o cara que vai ao Espaço Unibanco... O próprio Cidade de Deus, que é um fenômeno, é um fenômeno muito relativo dentro do que é a sociedade brasileira. 3 milhões de espectadores mesmo dentro do segmento do que seja a classe média alta no Brasil, não é nada. Ruy - Mas o filme ultrapassou isso, porque não foi só o extrato de classe média alta que o assistiu, não. Cléber - Mas a partir do momento em que você não tem um circuito de exibição, eu acho um absurdo você gastar uma fortuna para fazer os filmes. Daniel - Mas esse filme depois vai passar na televisão, e isso vai criar um fato... Eduardo - Exatamente. E aí é que eu acho que tem que se contextualizar o que é o cinema no Brasil. O próprio Coutinho naquela entrevista que a gente fez com ele, falou isso. O filme pode atingir (e no caso foi antes do lançamento do Master, então ele não tinha esses novos números ainda) 25 mil espectadores, mas depois ele passa na televisão, e uma exibição que seja na TVE com traço de audiência atinge, sei lá, 800% a mais de pessoas. Mas, acima de tudo, o cinema gera um fato que é muito maior do que simplesmente as pessoas terem visto os filmes. Quando um filme como o Ônibus 174 passa a centralizar os debates, seja nos cadernos culturais, seja em programas de TV (por exemplo, o Starte da Globonews, para ficarmos num programa de audiência limitada), a discussão do filem atinge um público mil vezes maior que o filme vai chegar a ter. Então, o filme se torna sim um fato social e ultrapassa o fato de uma pessoa se sentar na cadeira de cinema e ver ou não o filme. Então a gente parar no número de bilheteria como um número final, que dá um veredicto sobre a função social ou não de um filme, eu acho perigoso. Porque este discurso abre espaço inclusive para dizer que o cinema brasileiro é inútil e não precisa ser feito. Porque, de fato, se o melhor resultado da produção atinge apenas 3 milhões de espectadores com um dinheiro que podia estar sendo usado para dar comida a quem tem fome... se você se permite cair nesse discurso, acaba que nada se justifica. O que pode até ser uma posição a ser defendida, mas eu acho uma coisa perigosa, porque enxerga o cinema apenas pelo número de pessoas sentadas na cadeira pagando ingresso. Quando a gente sabe, por exemplo, que só o circuito de festivais atingem quase um milhão de espectadores, a grande maioria sem cobrar ingresso, e esses números não são computados. Tem as exibições em praça pública, praias, organizadas por prefeituras, Cine BR, etc. Então não são esses números de bilheteria que definem a permanência social de um filme, embora sejam um indicador interessante de outras coisas. Em primeiro lugar, eu acho importante sempre contextualizar isso em relação aos números do cinema americano para ver qual a comparação com o mercado de cinema hoje, porque aí os 3 milhões de Cidade de Deus parecem muito, se vemos que o Homem-Aranha fez 6 milhões e é o fenômeno do ano... Cléber - Mas, para mim, eu quero colocar isso dentro do contexto do uso do dinheiro público. Quer dizer, o Homem-Aranha não pega recursos do Ministério da Cultura... Eduardo - Mas aí você pode dizer então que o cinema como um todo no Brasil não tem função cultural, e tem! Cléber - Claro que tem, mas eu só estou vinculando ao fato que de acho que deve-se ter uma política de que tem que fazer cinema barato no Brasil. Daniel - Eu acho que o problema não são esses 3 milhões, eu acho que nós estamos fugindo do problema que é que cinema se vê na televisão, no Brasil. Então, o cinema brasileiro tem que estar na TV. O Ônibus 174 tem 20 mil espectadores, mas mesmo que tivesse 500 mil não seria o suficiente. Ele é um filme para passar na televisão, e mesmo o Cidade de Deus quando passar na TV vai ser um megasucesso. Então, nosso problema chega em como ele vai ser exibido, e a questão é que a TV brasileira não exibe o nosso cinema. Eduardo - A prova de que o Cidade de Deus é um fenômeno social muito maior do que os 3 milhões de espectadores é a própria Globo exibir uma série a partir do filme, porque ela sabe que só de estar ligada ao nome atrai 60 milhões de espectadores para a série Cidade dos Homens. Como é que esses 60 milhões se interessam por algo que não viram no cinema? É porque é um fato social muito maior. Eu concordo plenamente com sua posição sobre os orçamentos baixos, mas eu só acho complicado e que não devemos fazer conexão dessa forma entre função social e números de espectadores pagantes no cinema. Porque a relação de uma obra cultural com um cenário nacional é muito maior que essa relação de números. João Mors Cabral - Tudo bem, agora, Tururu não vai passar na televisão nunca... Daniel - Deveria, João, deveria... Ruy - Passa no Canal Brasil às 23:30hs... Daniel - Mas deveria ter a obrigação de passar na TVE porque gastou dinheiro público. Deveria passar na TVE de graça porque já foi pago, o dinheiro público já pagou a produção, então a TV Educativa devia ter o direito de exibir. E o fato da Lei não dizer que por esse fato a Rede Brasil tem esse direito, daqui a não sei quanto tempo que seja, é um absurdo. Porque o filme é feito com o dinheiro que mantém a TVE, e não importa quem ache Tururu uma merda. Aliás, a gente fala mal desse filme porque ele queria ser comercial, porque se fosse um filme experimental do Bressane ou do Sganzerla a gente defendia que tinha que ser feito não importa que tenha 800 espectadores. Como é um filme que era para ser comercial, a gente reclama, mas me parece que o problema não é esse, e sim a exibição. Gilberto - Eu acho que na relação com o público tem a questão da televisão, mas também o fato da grande maioria do público não ter acesso ao cinema. O esgotamento dos cinemas de rua, de subúrbio... O próprio Cidade de Deus teria sido um sucesso muito maior se nos subúrbios ainda existisse uma rede de cinemas... Daniel - Mas aí é nostalgia, Gilberto, porque não tem mais. A televisão tem, taí, e precisamos conquistar isso, mas esse circuito simplesmente não tem mais. As pessoas continuam vendo cinema, só que na TV. Tanto que o SBT tinha uma sessão que o nome era maravilhoso, "Cinema de Graça", muito sincero. As pessoas já pagam pelos impostos dos filmes... Ruy - Mas não é tão nostálgico não porque, pelo menos ao que me parece, e eu não sou nenhum especialista de mercado, mas me parece que a grande estratégia das redes aumentarem seu número de salas agora, como Cinemark e tal, é construir salas nos subúrbios. Gilberto - E o público do Cidade de Deus nesses cinemas que ainda existem foi muito bom. Me surpreendeu o público no Iguatemi (Tijuca - Zona Norte carioca), onde o cinema brasileiro mingua ou vai logo na segunda semana para uma sala pequenininha... O filme segurou o público uns bons meses. Ruy - No dia 2 de novembro, que além de Finados, curiosamente, é o dia do cinema brasileiro na rede Cinemark, quando ela exibe só filmes brasileiros a R$1, eu estava em São Paulo e fui assistir dois filmes no shopping Metrô Santa Cruz que eu não tinha visto e todo mundo estava lá para ver majoritariamente Cidade de Deus, que às 14hs já tinha esgotado todas as sessões do dia. E não era o público de classe média alta que estamos acostumados a ver no cinema, não. Eduardo - O problema do filme é que ele é um caso muito rico pra discutir, mas ao mesmo tempo ele é um fato tão excepcional que é difícil balizar muita coisa por ele. Eu, por exemplo, fui no Cinemark Botafogo, que é essencialmente um cinema de classe média média mesmo aqui do Rio (não como o UCI, que é mais elitizado), e fui um mês depois do filme em cartaz, estavam estreando filmes americanos naquela semana e o Cidade estava esgotado na sala maior. Ele é um fenômeno rico, mas completamente bizarro... Parte 2: Políticas de cinema: Ancine, distribuição, exibição |
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