Miramax or die?

A câmera é "ágil", a fotografia é carregada de uma textura de tijolo, a narrativa é fragmentada temporalmente e em torno de três histórias que pouco têm em comum além de seus protagonistas serem donos de cachorros. Trata-se de um filme muito particular: ao mesmo tempo ele tem um quê de "cor local", uma apropriação exótica do calor mexicano transfigurado em um clima agressivo, contrastado, ao qual a opção da plástica fotográfica por um "design arrojado" de imagem adiciona o que poderíamos chamar de enjoyability, uma espécie de excedente da imagem que realiza uma interface amigável e homogeneizante entre o filme e o espectador. O filme é Amores Brutos, primeira obra do cinema periférico (e com cinema periférico consideramos todos os cinemas do mundo ocidental excetuado obviamente o americano) a saber mesclar as influências de um cinema americano pós-Pulp Fiction – ou seja, um certo cinismo da narrativa, uma tipologia dos personagens e uma narrativa picotada de forma a dar mais dinamismo e falta de inocência ao relato – com um formato estético próprio a ser vendido como produto ao mesmo tempo mexicano e "universal".

Pouco importa discutir aqui os méritos ou desméritos do filme. Mesmo porque a defesa que geralmente foi feita do filme no meio artístico não deriva diretamente de suas qualidades enquanto obra, mas como posição sui generis de mercado: trata-se de uma chance de colocar-se e vender-se internacionalmente, realizando um cinema globalizado sem perder algo das qualidades locais, que serviriam, além de tudo, como foco de interesse original para os circuitos "de arte" de outros países (sejamos sinceros e práticos, exceto algumas bizarrices historicamente explicáveis – filmes franceses nos top ten de Taiwan, por exemplo – o nicho de mercado para filmes estrangeiros é o dos circuitos de arte), com a idéia de que oferecendo a cor local do país oferece-se algo que os americanos, por motivos óbvios, não podem dar. O que parece decisivo aqui é notar a que ponto criou-se em torno do filme um eixo feitura-distribuição-publicidade-recepção que hoje faz a festa dos cinemas de arte, transformados naquilo que há algum tempo Contracampo vem chamando de cinema-bistrô: um circuito de consumo de cinema "artístico" que não passa mais por padrões que pautavam a idéia de cineclube e de transmissão da história do cinema, mas de um circuito elegante (porventura com a placidez que notabiliza certos padrões de elegância), de veleidades minimamente intelectuais (mas não necessariamente inteligentes) mas acima de tudo fetichista (o cinéfilo como subjetividade "cult").

Não há confusão de temas: se associamos necessariamente filmes como Amores Brutos ao novo circuito cinéfilo que vem se fazendo (da mesma forma como nos 80/90 o cinema de Woody Allen – por mais que ele possa ter sido muito mais do que isso – foi defendido como "entretenimento de qualidade"), é porque não é possível explicar um acontecimento sem o outro. E porque, acima de tudo, é impossível não constatar uma semelhança entre o discurso estético do filme (que perpassa a história a ser contada, o discurso narrativo) e as expectativas que tem o novo público que recheia festivais: o contraditório desejo por um cinema que se fecha em si mas que não seja puro escapismo (como Hollywood, diriam), repertório estético associado às formas "jovens" de produção audiovisual (videoclips, sitcoms) e brincadeiras referenciais (com o cinema ou com os objetos do mundo pop).

No ano passado, a propósito do Festival do Rio, abríamos nossa cobertura com "Glória ou Decadência do Cinema de Autor?", que tem preocupações muito semelhantes com as preocupações atuais (uma reprise?, diriam os detratores). Mas parece que algo definitivamente mudou. Se Amores Brutos era de alguma forma coadjuvante no processo, hoje ele é protagonista. Acima de tudo porque no passar do ano foram lançados dois filmes decisivos que, apropriando-se direta ou indiretamente do filme, traçaram o mesmo circuito dele: O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e Cidade de Deus, os dois com sucesso incrível explorando um universo mitológico do próprio país, mas com uma linguagem pop-cult e uma roupagem "universal", como costumam dizer, que deram ou darão aos filmes uma circulação bastante satisfatória no circuito mundial (em termos de circuito de arte, decididamente).

Sobre os dois criou-se, em seus respectivos países de origem, uma polêmica acerca da operação ética que se fazia. O debate na França, encabeçado por Serge Kaganski, titular de cinema do semanário pop Les Inrockuptibles, circulava em torno da estética, de como as escolhas expressivas operadas pelo diretor Jean-Pierre Jeunet mostravam uma certa nostalgia de uma Montmartre pré-imigrantes, pré-contemporânea, retornada a um espírito de comunidade que não existe mais. A operação político-estética do filme seria um retorno da França a seu estado de natureza mítico da boemia da primeira metade do século, transformado num imaginário mitológico de erudição e joie de vivre. Com um repertório pra lá de desgastado, a polêmica em torno de Cidade de Deus descambou para o lado ético, tomando os dados narrativos e geográficos (ou, como se costumava falar antes, dados conteudísticos) para contrastá-los aos dados da realidade (crítica legítima à medida que o filme leva o nome de um verdadeiro bairro, narra acontecimentos baseados em fatos reais, mas que aparentemente fica à margem de uma compreensão suficiente da operação estética realizada pelo filme).

(Breve digressão sobre Cidade de Deus – Parece-nos que uma discussão estética acerca de Cidade de Deus e sobre a operação expressiva que realiza em cima das opções estéticas disponíveis teria que centrar-se no embate entre a primeira pessoa do filme (o personagem Buscapé, que introduz o espectador no universo do filme) e a fotografia de textura decididamente em terceira pessoa, que a cada fotograma significa "você não está aqui, você não está aqui", à medida que Buscapé tenta fazer o contrário: "eu sou um artista e vivo aqui, veja como é possível, não sou ladrão, sou como você". Na impossibilidade absoluta de decidir-se definitivamente por um ou por outro, Fernando Meirelles realizou um filme tão longe das quatro estrelas quanto das bolas pretas atribuídas pelos jornais, mas mesmo assim uma obra admirável, de um vigor ímpar que, mesmo mascarando certos aspectos que deveriam ser muito mais chocantes se filmados ao natural (sem trabalho fotográfico estilizado), consegue se afrontar fortemente com o tema tratado. Se o filme permite uma conclusão problemática – há nesse balbucio entre a primeira e a terceira pessoas a idéia bastante ao gosto do senso comum de que as favelas e a pobreza são responsabilidade de todos, mas nem tanto –, as críticas feitas ao filme, a maior parte de natureza assistencialista ou ancorada numa conceituação velha e ela mesma já problemática na época do cinema novo, são talvez mais perniciosas ainda.)

Mas o que importa quando levantamos a questão da polêmica não é nem a natureza da polêmica, mas a polêmica em si: a crônica cinematográfica e os intelectuais perceberam, cada um em seu país, que os dois filmes estabelecem com seus objetos geográficos de interesse – um bairro pregnante no imaginário francês, uma comunidade favelizada de forte recorrência nas páginas policiais – uma estranha relação de apropriação estética, de uma roupagem e um ritmo próprios que eram estranhos ao ritmo e aos costumes das pessoas que habitam essa geografia. Estranhos ao universo filmado, mas certamente muito familiares ao ritmo e aos costumes audiovisuais dos espectadores desses filmes, geralmente muito bem informados e atualizados quanto ao universo pop.

Que há nisso de novo e preocupante? De novo e antigo, a idéia que nossa particularidade pode ser considerada como exotismo e ser usada como moeda de troca para consumo interno (nossa classe média vive torturada pela idéia de ser estrangeira no próprio país) e externo, mas colocada agora sob uma nova égide, a égide de um consumo pop, com uma estética que diz muito mais respeito ao ritmo de quem vê do que ao ritmo das coisas e dos acontecimentos do filme e de seus personagens. De preocupante, obviamente, o risco dessa cultura poder vir a alçar-se como a única forma de sensibilidade que uma nova geração possa ter com a alteridade (será que os espectadores de Cidade de Deus admirariam os filmes de Eduardo Coutinho ou diriam que faltaria a eles agilidade?). Alguns filmes recentes de ficção conseguem incorporar um ritmo verdadeiro de seus protagonistas ao filme sem com isso abrir mão de um vigor estético forte e altamente conceitual – entre outros O Pântano de Lucrecia Martel, Millenium Mambo e Adeus ao Sul de Hou Hsiao-hsien, os filmes de Claire Denis, no Brasil Tata Amaral... –, mas definitivamente eles estão longe de terem a acolhida da geração pop, que prefere eleger como favoritos filmes como Alta Fidelidade, Réquiem Para um Sonho ou os filmes supracitados, onde o pop é centro temático ou cosmético. Se chamamos blaxploitation à cultura dos anos 70 destinada a tornar a cultura negra palatável a um público geral de brancos e negros, podemos dizer que o cinema contemporâneo periférico começa a viver, via Miramax, sob a égide do cinema de popXploitation, onde qualquer tema pode ser narrado, mas em detrimento de seu ritmo próprio, de sua particularidade, em prol da fruição de um público globalizado, cult, informado mas pouco tolerante, como vem se mostrando, à alteridade tomada sem filtros. Que o popXploitation seja um gênero como outros é eticamente questionável, mas esteticamente interessante. Que venha a se confirmar em regra geral, é extremamente preocupante. Que o futuro nos desdiga.

Ruy Gardnier