Glória ou decadência do cinema de autor?


O sucesso do Festival do Rio BR e a glória sempre crescente da Mostra Internacional de São Paulo poderiam nos levar a uma constatação muito fácil: o cinema de autor vai muito bem. Sem números expressivos no box office mas garantindo vários debates na imprensa ao longo do ano, em setembro e outubro ele assume a ponta do interesse dos cinéfilos em geral (seja do "cinemão" ou do "circuitinho") e da imprensa, que de uma hora para a outra se descobre interessada por filmes que outrora jamais teria tomado conhecimento da existência. Isso dá vazão a cenas hilárias, onde filmes hollywoodianos exibidos nas cabines de festivais suscitaram críticas insuspeitas de "falta de arte" (Space Cowboys, ridiculamente, no ano passado; The Score, esse ano).

Essa anedota revela um indesejado mal-estar sobre o estado do cinema de autor. Ele virou uma fórmula, algo de que já se espera alguma coisa, uma política dos resultados, como uma espécie de cinema "à parte" do cinema oficial, que deve cumprir tais e quais funções, diferentes do cinema oficial, mas mesmo assim funções. De fato, é nessa espécie de fórmula que se baseia o circuito "cult" de salas de exibição, em filmes que envolvem em sua receita doses de humanismo (ou humanitarianismo), bela fotografia, interioridade psicológica, atenção às relações humanas entre os personagens, um roteiro preferencialmente moderninho, etc. Aquilo que um dia já foi item de exceção, instável e sulfuroso, hoje é morno, assimilado e óbvio, tarefa não mais de um exercício inaudito e excitante do cérebro e dos sentidos, mas recognição de um formato predeterminado, igrejinha do "arte e ensaio". O cinema de autor atinge a sua maturidade como cinema de entretenimento, acha seu nicho de mercado. Mas isso é maturidade ou caduquice?

Falamos disso porque há certas coisas na atual recepção do cinema de autor que nos surpreende. Os dois maiores filmes-fenômeno de público e crítica "cults", Magnólia e Amores Brutos, não impressionaram nossos redatores (perguntaríamos, como Arnaldo Baptista, "Não gosto do Alice Cooper, onde é que está meu rock'n'roll"?). Assim como Réquiem para um Sonho, candidato a queridinho do presente Festival, ou Enfermeira Betty, no momento em cartaz, também não nos impressionam de forma alguma. Esnobes? Antes partidários de uma forte convicção: há um novo cinema que se apropria de códigos do cinema de autor - digamos, de Scorsese a Tarantino, de Antonioni à nouvelle vague - para transformá-los em simples produção em série, repetir esses códigos pelo simples prazer em inserir-se num clube (logo, o cinema de citação de um Brian de Palma estaria muito longe desse novo cinema da derivação). O cinema de autor deixa de ser um saco de gatos que abriga muitas estéticas diferentes e torna-se, como bem quer o marketing cultural necessário em nossa cultura, uma griffe.

Passamos hoje a um outro estágio do cinema de autor. Não vivemos mais num período como o de 1959, em que um grupo de críticos-cineastas lutava para impor o cinema de autor contra um cinema acadêmico e sem vida. Também não estamos nos '60s, num período de consolidação, onde Bergman e Fellini ganhavam Oscar de melhor filme estrangeiro, ou nos '70s, quando a cinefilia passava a ser pela primeira vez assumida como linguagem nos filmes. O cinema de autor, através dos cinemas-bistrôs e em grande parte a partir do crescimento da Miramax como produtora, passa a ter uma linguagem, um molde. Ele, inicialmente nascido contra a Academia, torna-se acadêmico. E o próprio ritual de ir ao cinema, de praticar a cinefilia, mudou. Uma sessão de cinema é hoje um programa. E isso acaba transformando o amor pelo cinema numa cinefilia de programa.

Não é o caso de nos debruçarmos especificamente sobre cada filme (o que ainda será feito em edições futuras), mas apenas de revelarmos algumas caracerísticas principais, à guisa de contribuição à reflexão dos filmes a serem exibidos num festival de cinema. Mas é esquisito que um filme hoje seja elogiado simplesmente por apresentar um roteiro de quebra-cabeças, mesmo que não fique claro para qualquer espectador o motivo real de tal estrutura. Fazer um filme de retornos e avanços cronológicos, desde Pulp Fiction, virou valor em si. Criar um intrincado painel de personagens e acompanhá-los com intrépidos movimentos de câmera, emulando Altman e Scorsese, passa a ser uma qualidade por si só, independente daquilo que é filmado. Brincar de Antonioni fazendo um cinema de decoração de interiores e chicletes soprando com cabelos ao vento virou modelo de cinema. O que há de comum entre esses exemplos? O desgaste de uma linguagem que em algum momento já representou uma diferença, a diluição de um cinema que nasceu para contrapor-se à diluição.

Transformar linguagem em fórmula não vem sem prejuízos para o cinema. Arrisca-se a acreditar que uma miríade de personagens cria necessariamente uma polifonia quando na verdade cria tão-somente um paralelismo simplificador (Magnólia). Corre-se o grande perigo de fazer crer que uma pesquisa psicológica sobre a hybris humana não passa de moralismo de classe média (Magnólia, Amores Brutos, Réquiem). Ou que é de fato uma narrativa cheia de mudanças cronológicas e reviravoltas que criará um filme moderno, renovador de linguagem (Amores Brutos, Memento, relativamente). E o que dizer da revoltante postura de certos independentes americanos, que se crêem enfants terribles por retratarem com desprezo a miséria existencial da sociedade americana (Neil Labute, Todd Solondz)? Ou do maneirismo disfarçado de autoralidade de um Paul Thomas Anderson ou de um Alejandro Iñarrítu? Preocupante.

Essa especial predileção pelo cinema "cult" de hoje ainda nos impede de ver uma faixa do cinema contemporâneo que é avessa ao molde autoral mauricinho. Afora cineastas que exploram até o limite os pressupostos da imagem cinematográfica (Jean-Marie Straub, Hou Hsiao-hsien, João César Monteiro), esse sinistro esquema de "filmes bonitinhos" ainda exclui das telas dos cinemas de arte diretores como Abel Ferrara, Tsui Hark, Spike Lee (à exceção de seus últimos dois filmes, exibidos comercialmente) ou Claire Denis, que se adequam muito pouco à imagem benfazeja do circuito "cult".

Um festival não é só o espaço para reavaliar os rumos do cinema através da estética dos filmes apresentados, mas também o momento de se atualizar com aquilo que dificilmente será exibido posteriormente. Hou, Tsai, Denis, Ferrara, entre outros, terão seus filmes exibidos no festival. Prova de que o Festival do Rio BR ainda é um espaço dedicado a todos os tipos de cinefilia, desde a soft e domesticada representada por amantes de Tornatore e Ken Loach até a mais contestadora e heavy, com Troma Pictures ou Éric Rohmer. Mas, entre outras, uma informação é de deixar apreensivo: o fim das "permanentes", credenciais compradas que davam acesso a todas as sessões do festival. Documento nš1 do freqüentador assíduo do Festival, será que o fim da permanente representa simbolicamente o gradual abandono da cinefilia em prol da cosmética mercadológica do cinema-bistrô, com telas cheias de criacinhas choronas e dramas pitorescos para senhoras que vêem filmes para complementar a degustação de seu chá das 5? Apesar da tendência reinante, alguns poucos filmes rebeldes nos dizem que não, que há ainda um desejo forte de cinema a ser explorado (mesmo comercialmente) e que, por mais que a imprensa e certo público seja formatado para um cinema cult-pop-light, ainda haverá espaço (com trocadilho) para os cinemas de exceção. A confirmar...

Ruy Gardnier