Névoas, sombras e estranhamento - as phantasmagorias sob a óptica do romantismo

Parte VII
Mas, e Castro Alves?


Mas, afinal de contas, e Castro Alves? Terá ele visto uma destas exibições de fantasmas? As chances disto ter ocorrido são grandes, muito embora as evidências que até agora dispomos não façam juz a esta ordem de grandeza. O poema "Anjos da Meia-Noite" por si só não prova que o poeta estivesse sugestionado por outras imagens que não as provindas do seu fértil imaginário, bebido na herança romântica européia, entornado na musicalidade de versos que se transformariam em odes, cânticos e sonetos magistrais. A poesia romântica é um postulado rebelde à realidade, ela aproxima-se mais dos sonhos, da imaginação indomada, portanto, qualquer tentativa de estabelecer vínculos e associações que a decalque na realidade, pode acabar transformando-se em desventurada empresa. Com relação aos outros românticos, temos depoimentos indiscutíveis de que muitos deles viram uma fantasmagoria ótica: Hoffman, Baudelaire, Hugo, enfim, mas a ligação entre o espanto real, com a sua descrição literária, esta relação imponderável depende de uma química também muito afeita à imaginação.

Sabemos, através de sua correspondência, que Castro Alves freqüentava laboratórios fotográficos, deixando para posteridade muitos daguerreótipos com sua figura de um magnetismo e melancolia peculiares. Em carta a ele endereçada a 13 de fevereiro de 1870 , Augusto de Guimarães, seu fiel amigo, assim lhe escreve:

" Estive hoje na oficina fotográfico do Henshel. Vi lá uns sujeitos que me apontaram como "i promessi esposi" das "duas pombas de esperanças" no teu "Mar de escolhos"; mau gosto tiveram as meninas! São uns lagartos que se vão colocar nos tais lixos dos vales orientais. Dou-te os sinceros pesames, ou parabéns, porque deve ser uma consolação para os desprezados verem os seus "anjos de luzes" desposados com ruins marmanjos."

Mas nas cartas não encontraremos nem sombra das fantasmagorias, muito embora, o poeta estivesse interessado em fantasmas, possivelmente influenciado também por Hugo, que ao final da vida entregou-se ao espiritismo e a suas constantes experiências com psicografistas, que, dispostos ao redor de mesas, usufruíam da linguagem dos mortos:

" Cada celebridade trabalha em duas obras: na obra que realiza enquanto vivo e na obra fantasma...o ser vivo se consagra a primeira. À noite, porém, no silêncio profundo, desperta- Oh, terror! - nesse ser vivo o criador fantasma .- Como?- Grita a criatura. - Isso não é tudo?- Não- responde o fantasma-, acorda e levanta-te; a tempestade anda `a solta; uiva os cães e as raposas; há trevas por toda a parte, a natureza estremece, se confrange sob o açoite de Deus...-O criador fantasma vê as idéias fantasmas. As palavras se eriçam, a frase se arrepia... A vidraça torna-se opaca, o medo toma conta da lâmpada... Toma cuidado, ó, vidente, toma cuidado, ó, homem de um século, tu, vassalo de um pensamento terrestre. Pois isto aqui é demência, isto aqui é o túmulo, isto aqui é o infinito, isto aqui é uma idéia-fantasma!"

Sabe-se que Castro Alves, talvez por sentir próxima a morte com o agravamento de seu estado de saúde, começou a interessar-se pelo espiritismo, solicitando por carta ao seu amigo Augusto de Guimarães, um exemplar dos "Livros dos Espíritos" de Allan Kardec, que, ingenuamente o poeta denomina "Poética do Espiritismo". Augusto de Guimarães tenta, mas, como era de se esperar, não consegue encontrar nenhum livro do autor espírita com esse nome e completa, solícito "Foi-me facultada a consulta em uma Biblioteca Espírita e verei o que te poderá servir. Mandar-te-ei pelo Gregório, que é portador seguro." Se chegou ou não às mãos do poeta a encomenda, de nada influenciará nas conclusões aqui tiradas, que muito revela das predisposições do autor em seus últimos dias, mas não se as fantasmagorias foram vislumbradas por ele.

Excluindo o capítulo de sua vida em que viveu em Salvador e em Recife, a possibilidade de tal vislumbre ter ocorrido evidencia-se no período em que o poeta esteve no Rio de Janeiro, no curto espaço de um mês, entre 12 de fevereiro e 11 de março de 1868. Segundo minuciosa pesquisa efetuada por Gilberto Guimarães, o poeta ficou instalado no Aux Frères Provenceaux, hotel localizado na Rua do Ouvidor número 126-B. Sabemos que nesta mesma rua, no número 123, ou seja, praticamente defronte ao hotel onde o poeta, Eugênia Câmara e a filha ficaram hospedados, funcionava o cosmorama e a fantasmagoria do misterioso espanhol citado por Morales de los Rios no seu livro: Rio de Janeiro Imperial, muito embora a data que o memorialista dê, seja um tanto confusa. Mas, ainda que na época em que o poeta estivesse naquele trecho da rua do Ouvidor as fantasmagorias ali não fossem mais exibidas, possivelmente em algum lugar da sua extensão ele as encontraria, sendo atraído muito também por estar com uma criança, filha de sua namorada, a quem tais projeções distrairia com bastante eficácia.

Em sua passagem por São Paulo, muito pouco pode ser dito, ou quase nada. O que sabemos das exibições das fantasmagorias são fatos isolados nos quais não podemos fiar-nos, nem precisar as datas para um possível confronto com a estada do poeta na faculdade do Largo da Sé. Ainda que ricos depoimentos sobre a vida desregrada, marginal e herética dos estudantes possam ser encontradas, com referência a orgias, conciliábulos e muita literatura, não há nenhuma menção direta às fantasmagorias óticas. "Na verdade, será através deste grupo, que ansiava por novidades excusas ou não, é que teremos a vinda ou pelo menos a entrada em nossos hábitos do bilhar, jogo de bola ou boliche e circo de cavalinhos. Na época a rua, ou melhor, a trilha que unia a faculdade de direito ao Largo da Sé era conhecida como a Rua do Jogo de Bola, hoje Benjamim Constant, tal era o números de bilhares, boliches e afins naquele trecho." , observa Máximo Barro.
Se lermos toda a obra poética de Castro Alves, a situação também não é das mais estimulantes: não encontraremos nenhuma menção direta às fantasmagorias. Esta palavra, fantasmagoria, aparece somente através de sua forma significante, o que causa uma confusão quanto a sua origem como visões propiciadas pelo ópio, ou como projeções de fantascópios, ou sonhos, ou mesmo como referência direta ao imaginário romântico. Entretanto, existe uma única fonte em que o poeta refere-se textualmente a elas, e esta não se encontra em suas missivas ou em sua poética, mas em uma atípica crônica, cuja data não podemos precisar. Chama-se "Crônica Jornalística".

É meia-noite. Um senhor da redação chega-se a mim com ar carregado:
- A crônica?
- A sabatina é que tu chamas crônica? É verdade...a sabatina é a moléstia crônica do estudante.
- Não; quero ler a crônica do Futuro que deve sair amanhã. Dá-ma.
- Ah! Meu Deus... Ainda não a fiz.
- Deixa de haver jornal, é o resultado... Compromisso e mais compromisso...

O jornalista, desesperado por ainda nada haver escrito para o jornal do dia seguinte, sem inspiração, passa a noite em claro até que, antes dos primeiros raios da manhã. uma figura sinistra aparece na redação. É uma mulher. Ela toma-o pelo braço e o leva por ruas tortuosas e escuras. Passam por um deserto:

- Indubitavelmente me levas a algum sabbat de feiticeiras; que areal é este? Estamos no Saara?
- Se te levo a feiticeiras, não sei; isto é o caminho da Academia, o inóspito campo do Hospício.
Calei-me e segui-a.
Adiante, num edifício com semelhança de convento, feio e tosco, havia uma grande multidão de pessoas. Conversava-se sobre política, fim de ano, etc., etc. em tudo quanto é objeto de prosa, pensava-se em geral nos gerais.

O jornalista, enquanto transpõe o espaço-tempo com grande desenvoltura, chegando inclusive a ir até a Bahia, vai, inconscientemente, elaborando sua crônica para o periódico O Futuro, levado pela estranha mulher que, ao final da viagem, o deixa de volta na redação abraçando-o na despedida com tal força que quase o sufoca. Nesta estalo de juntas, ele acorda, sacudido por seu companheiro de quarto que o chama para a aula.

Esfreguei os olhos, incrédulo, uma e muitas vezes.
Quê! Tudo isto foi sonho! E a figura do bedel? E a minha Urânia? Este passeio a Bahia? Tudo isto foi
fantasmagoria?

Além de citá-las textualmente, Castro Alves ainda deixa-nos extremamente atentos quando, logo no início de sua viagem astral, é levado até um "edifício com semelhança de convento, feio e tosco", na frente do qual uma multidão se aglomera. Como sabemos, Robertson exibia suas projeções dentro de um convento antigo, para causar um impacto maior no público. Tal feito não deve ter ficado alheio aos brasileiros, pois as sessões, como já foi dito anteriormente, foram um sucesso estrondoso na França, a vitrine do mundo Ocidental no século XIX. Mas estas relações podem não passar de miragens, o que dá ao presente estudo uma igual atmosfera fantasmagórica, e a estas palavras incertas a tonalidade esmaecida de uma paisagem que se esfuma, perdendo-se de vista quanto mais os olhos atentam, esquecidas antes mesmo de formuladas na memória.

Guilherme Sarmiento

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1. Calmon, Pedro. "A Vida e Amores de Castro Alves". Ed. A Noite AS. RJ/1935. p 200

2.BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire, Um Lírico no Auge do Capitalismo. Obras Escolhidas III 2 ed. São Paulo: Brasiliense. 1991, p59.
3. GUIMARÀES, Gilberto. Castro Alves nas Ruas do Rio. RJ, Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1979, p23.
4. Paulo Antônio do Valle , estudante de direito , relatando a época"Eram diversos os pontos que nos reuníamos: ora nos ingleses, ora em algum outro arrabalde da cidade. Uma vez, estivemos encerrados quinze dias, em companhia de perdidas, cometendo ao clarão de candeeiros, por isso que todas as janelas eram perfeitamente fechadas desde que entrávamos até sair, toda a sorte de desvarios que se pode conceber."