Névoas, sombras e estranhamento - as phantasmagorias sob a óptica do romantismo

Parte VI
Jornais


Segundo Alice Gonzaga, na época do Império "As diversões populares existiam, mas eram raras. Extenuando-se o carnaval, único momento de real congraçamento entre os diversos estamentos sociais da cidade, embora no início a mulher dele estivesse excluída, as demais oportunidades apareciam de tempos em tempos, sem se fixarem em definitivo como os circos e as touradas. Na área dos precursores do cinema, isto é, da dos divertimentos ópticos, a ausência era quase total. De acordo com Ademar Gonzaga e Vicente de Paula Araújo, os cosmoramas foram os mais difundidos. Além deles, parece que as fantasmagorias também tiveram certa repercussão entre nós."

Esta "ausência quase total" que a autora observa é mais uma constatação da falta de referência substanciosa da passagem da fantasmagoria através dos meios de comunicação da época, jornais, memórias e revistas, motivada pelo preconceito e por fatores já esboçados anteriormente, do que à realidade. Sua divulgação no Brasil Império, certamente, deverá levar em conta o grau de rejeição das elites ao invento e a seu aparato na mão de prestidigitadores, pois, como detentoras dos meios formadores de opinião, serão responsáveis pela seleção do que é ou não agradável de se ver, de se comentar, sobretudo. Claro que estes objetos, pelo seu preço, impediam a compra irrestrita, a ponto de incomodar até Baudelaire, que reclamava da sua inacessibilidadeaos menos favorecidos mas, se João do Rio, no início do século XX, em um prosaico passeio pela cidade do Rio de Janeiro, pôde encontrá-la com naturalidade em uma praça, não é de se estranhar se, cinqüenta anos antes, esta cena ter sido comum, possivelmente até mais comum.

Outra fator que prejudica um pouco a análise do alcance das fantasmagorias óticas no território brasileiro é o grau de desenvolvimento social que se encontrava o país na época em que estes aparelhos começaram a surgir, quando a vida social era restrita aos salões, tendo muito pouco a oferecer de entretenimento fora deles além de teatro, e mau teatro. Em São Paulo, inclusive, havia sérias resistências para implantação de teatros na cidade, que só passaria a existir em meados do século dezenove graças ao empenho dos estudantes de direito contemporâneos de Castro Alves, cuja peça "Gonzaga" abriria os trabalhos que se sucederiam na precária construção- o teatro São José. Os percalços que aqueles que queriam realizar um espetáculo nas ruas teriam de enfrentar, então, eram duros. Tinham de pagar taxas altas para o governo, o que favorecia o enclausuramento das diversões no espaço das salas de estar, quando muito, nos oitões das casas coloniais, o que só vem a prejudicar um levantamento confiável das exibições das fantasmagorias na cidade de São Paulo. No Rio de Janeiro, a situação era um pouco melhor, mas ainda assim os documentos são esparsos e contraditórios. Infelizmente, apesar de reconhecermos esta falta histórica, o estudo pouco acrescentará àqueles que procuram dados mais substanciais de sua passagem entre nós, pois tal empreendimento requereria um fôlego além do que dispomos. Isso não quer dizer que morreremos sufocados, absolutamente, pois desde o início a meta era modesta, não requerendo nem maior nem menor esforço que a especulação exige aos pulmões.

***

O introdutor da lanterna mágica no Brasil, conforme os últimos dados levantados, foi Benjamim Schalch, morador da Rua do Príncipe, em São Paulo. A sua exibição era privada, entretanto, mais tarde, Schalch a passaria a um prestidigitador cujo itinerário perdeu-se nas várias andanças anônimas que fez pelo interior do país. Aliás "este câmbio entre aparelhos, que desgastados pelo uso, eram vendidos para uso familiar, e outros como o de Schalch, com vários recursos, vendidos para uso profissional, deve ter sido prática comum na aldeia", revela Máximo Barro, destacando o "escambo" de tecnologia no Império onde "A utilização desta aparelhagem e outras antigas, renovadas ou recapadas de novos atributos era normal em certas regiões do Brasil." Desta forma, muitos aparelhos adquiriam uma rotatividade que ia do privado ao público, do público ao privado, conforme as necessidade dos donos provisórios do aparelho.

Em 1834, tem-se notícia de um senhor chamado João Jacques Vioget que pedia licença para abrir na cidade de São Paulo uma câmara óptica para divertimento público, ou "divertimentos de caixas ópticas", embora não esclarecendo se seriam exibidas em teatros ou salas privadas. Já antes, lia-se anúncios como o da Gazeta do Rio de 1815, pago por Guilherme Lennoux, para a divulgação de suas projeções fantasmagóricas.

A Gazeta de Notícias chegou a divulgar várias destas sessões fantasmagóricas no Rio de Janeiro, mas a sua divulgação aqui será de pouca valia, já que elas datam do final do século XIX e início do século XX ultrapassando o período a que nos propomos analisar. Entretanto, é curioso mostrá-las, até para se ter uma idéia da linguagem publicitária da época:


HOJE
O AGIOSCÓPIO DE KRUSS
Volta do mundo em uma hora. Paris, Londres,
Berlim, Viena, Roma, Madrid e New York.
Grandiosa coleção de vistas fotoscópias
E coloridoscópias
Força de projeção, 600 velas.
Quadros ffantasmagóricos dissolventes!! e
deslumbrantes! O mais perfeito do mundo!!
Ver para crer!
AGIOSCÓPIO
58-Rua Haddock Lobo-58
HOJE
Haverá um espetáculo às 8 horas da noite

No mesmo período, Raul Pompéia em uma de seus artigos publicados pela Revista Brasileira, descreve com requintes fantasmagóricos um entardecer na Serra do Mar:

"O nevoeiro do mau tempo tem uma grande diferença do nevoeiro seco das selvas. O primeiro sente-se-lhe a profundidade. Em falta dos recursos geométricos da ótica que naufraga na espessura lívida da fumarada, existe a perspectiva sonora..."

Mais adiante, arrebata o texto ao sabor das fantasmagorias românticas, tornando-se já fantasmas de si mesmas, às vésperas de um novo século que se apresenta aos olhos do sensível escritor:

"Não sei que penetrante analogia me impressiona no espetáculo das névoas flutuantes, que vão sem rumo e sem forma pelo ar(...)que vivem materialmente e sem nenhuma propriedade da matéria; silenciosas, impalpáveis, ilimitadas como sombras apenas, nem isso! Que seria demasiado concreto; como pura transparência, como deveriam avultar os espíritos, se tornassem corpo e se nos afigurassem com tudo na imagem indefinida da imaterialidade; como formas, se é possível dizer, de abstração, com um aspecto inexprimível da representação psicológica, a ponto de se não saber decididamente se existem de fato na natureza, ou se apenas sonhamos em nosso coração; espécie de cena moral da tristeza no mundo, tristeza difusa, sentimento disperso, ou antes matéria cósmica de sentimento sombrio que ainda há de existir, ou que já tem existido."

***


Os mistérios que envolvem o percurso das fantasmagorias óticas pelo Brasil, por vezes apresentam fatos desconcertantes pela imposição de uma presença que, oficialmente, se quer esquecida no tempo. Apesar de desprezados pelos jornais oficiais, encontramos indícios muito claros da passagem destes projetores pelo Rio de Janeiro através dos folhetins que pululavam à época do Império, muitos com um tom jocoso, pouco sério, denunciando a juventude cáustica por trás das tipografias. São inumeráveis os pequenos jornais que surgiram naquele momento em que a imprensa brasileira engatinhava, muitos com a pecha Literária e Recreativa ornando os subtítulos, com as edições limitadas e fadadas ao instante de no máximo um ou dois anos. Dentre todos, destacaremos aqui "O Mágico", editado em 1851; A Luneta, de 1883; A Lente, de 1852; O Mephistópheles, de 1887. Mas aquele que espanta mesmo, o que evidencia definitivamente a passagem das fantasmagorias pelo centro do Império é o folhetim homônimo publicado entre 1844 e 1845 chamado " A Lanterna Mágica- Periódico Plástico-Philosophico." A data da sua edição coincide com o registro divulgado por Morales de Los Rios, que localiza na Rua do Ouvidor uma fantasmagoria entre 1843 e 1845. O edital do folhetim mostra a tônica levada pelo seu texto até o último número:

"A Lanterna Mágica é filha de profundas convicções, é o theatro onde se representarão as principais scenas de nossa época, sem resaibos de personalidades e sem o intuito de fazer illusoens a este ou aquele indivíduo: a scena das generalidades reinará no seu proscenio, e seus quadros representarão sempre os mesmos indivíduos, os mesmos actos revestidos somente do caracter que se lhes der oportunidade."

O sucesso do folhetim é atestado por sua qualidade tipográfica e pela longevidade das histórias que sobreviveram a mais de vinte episódios. O edital continua em seu tom cínico e mephistotélico:

"O protagonista da scena será sempre o inmortal Laverno, esse homem prodigioso, especie de mephistopheles, de judeo errante que anda entre nós nas praças, nos templos, nos saloens dourados, no parlamento, nas estalagens, nas lojas e nos ranchos das estradas."

O escudeiro e fiel amigo de Laverno é Belchior, aquele que acompanhará o ilustre gatuno em suas empreitadas farsescas, em suas falcatruas bem ao gosto do "jeitinho" brasileiro. Laverno, numa espécie de metamorfose bufa, vai transformando-se em vários "tipos" com o intuito de enriquecer a todo custo. Torna-se romancista, parlamentar, naturalista, fornecendo um rico panorama dos vícios e maneirismo de cada uma dessas profissões sob as luzes da época. Em uma destas transformações, Laverno e Belchior tornam-se homeopatas, abrindo uma farmácia com o dinheiro conseguido através da venda de um xarope milagroso, uma coca-cola feita a base de cachaça e aditivos, passada como tônico rejuvescenedor.

Scena II. "Depois de uma torrente de cartazes monstros, à maneira de Pariz, e de alguns artigos phosphorescentes, todos cheios de espuma de campanudas, o Dr Lavernu, e o Dr Belchioru começarão a ter alguma folga; a venda de boticas homeopathas, e a concurrencia de alguns incuráveis, os collocou fora da senda das privações.

Lavernus- Nós devemos proscrever as palavras em ites como bronchites, acites, demacites, porque isso seria um tributo pago ao sangrador mór; os nomes fazem tudo, e até com elles se forja uma nova ciencia, uma nova religião, a quem não faltão proselytos e discipulos"

No número dezessete da revista, o diálogo dos personagens deixa transparecer o modo como os exibidores de fantasmagorias eram vistos com preconceito pela sociedade:

"Belchior- O Diabo é que não se conhecer os taes sujeitos meas-caras...

Laverno- Conhece-se, pois não! Ola si conhece! Em primeiro lugar, nada de estudantes! São sujeitinhos que andão sempre promptos a virar cambalhotas, sem nisto que lhes caia nada das algibeiras, com estes nada de "logo pagarei". Quando vires um sujeto muito cheio de lunetas, etc, etc. não te alargues muito."

Mas é no número 13 que atestaremos a popularidade das fantasmagorias através de umas quadras que são curiosas pelo tom de deboche que adquirem no final da leitura:

Este mundo é cosmorama
Com vistinhas de mil cores
Nos palácios estão lavernos
Tapuias nos corredores

Se tu tens ó minha vida
Um cosmorama gostoso
Sou Laverno, sou tapuia
Sou de tudo curioso


Um outro destes folhetos que merece ser citado aqui é O Fantasma de terça feira, 4 de junho de 1841, cujo edital não deixa dúvidas com relação ao grau de parentesco com os depoimentos que até aqui viemos compilando:

"Este jornal dos cemitérios, folha sobrenatural; ocupa-se especialmente com: visões, aparições, duendes, sonhos, pesadelos e sonambolismo.
O fantasma não é ponderável, nem goza de impermeabilidade, é porém dotado de cor branquíssima e exala cheiro sulfúreo, segundo a preocupação de muitas velhas. É uma espécie de nuvem com contornos humanos; sua altura é dos gigantes: será um espírito, talvez? Ordinariamente costuma apresentar-se em sonhos, e é então que, multiformes, fala a imaginação todas as linguagens possíveis"

Guilherme Sarmiento

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1. GONZAGA,Alice: Palácios e Poeiras. Rio de Janeiro; Ed Record, Funarte, 1996.

2. DO RIO, João: A Alma Encantada das Ruas. RJ; Secretaria Municipal de Cultura/Biblioteca Nacional, 1987. P 5 "Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti, de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja...

3. DE PAULA ARAÚJO, Vicente: A Bela Época do Cinema Brasileiro in Coleção Debates. SP; Ed Perspectiva 1976 P 55
4. Barro, Máximo. A Primeira Sessão de Cinema de São Paulo. Ed Tanz do Brasil. SP, 1996. p 41

5. CAPAZ, Camil. Raul Pompéia, Biografia. Ed.Griphus. RJ; 2001. P172