Entrevista com Helena Ignez


Como Ângela Carne e Osso, em A Mulher de Todos


Quando se fala das coreografias no cinema brasileiro, todo mundo fala de Terra em Transe, de Os Deuses e os Mortos, mas nesse filme tem pelo menos um plano-seqüência que eu acho que é antológico, que é aquele da boate, duma gafieira, que termina com você e com a Maria Gladys debruçadas na janela de frente para uma janela que dava para Copacabana.

Sei, a do bolero... Era uma boate que tinha em Copacabana, clássica...

Tem umas coisas impressionantes no filme, de quando a câmera segue o Luiz Gonzaga saindo da casa, e você fica falando "O sistema solar é uma merda".

Aquele pátio, né? Foi um filme muito trabalhado. Um dos mais trabalhados nesse sentido.

Na verdade houve uma certa ruptura entre O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos para os filmes da Belair, e inclusive em relação ao trabalho dos atores dá pra perceber isso, os dois primeiros filmes são muito montados, muito pensados, né?

Sim, Mulher de Todos sim. Mas também Sem Essa Aranha, que é muito pensado, muito trabalhado. Não teve esse nível de improvisação não. Porque ele queria fazer um filme com oitro planos-seqüências. Então era um filme realmente pra levar a alguma coisa. Copacabana Mon Amour, sim, foi mais solto. O filme tem planos absolutamente inusitados, como aquele do Othoniel Serra fazendo o fantasma de Copacabana. Absolutamente maravilhoso. Os atores rendem muito. Por isso todo mundo quer trabalhar com o Rogério. E depois que trabalha todo mundo quer voltar a trabalhar.

Voltando ao período que vai de 1968 até 1970 você fez um número incrível de filmes, você deve ter feito uns 10, 12 filmes.

Fiz muito, até 1972. Em 72 houve uma outra guinada existencial na minha vida, tomei outro rumo. Daí fui pra Europa, África e tal. Mas de uma forma, sempre muito ligada ao cinema.

Você chegou a filmar na África, não?

Na África, em Nova York, Estados Unidos, na Inglaterra.

Qual o nome do filme da África?

Não sei, acho que não tem nome, é em super-8.

E vocês ainda têm registro?

Sim, o Rogério tem ainda. E mesmo no tempo em que eu fiquei mais afastada ainda, abracei uma verdadeira vida de monge, morava em templo, viajei muito, fui a templos no mundo todo, mesmo assim eu trabalhei com teatro. Dava aulas, dirigia, fazia peças... tanto fora do Brasil como aqui.

Nesse circuito você esteve em que países?

Nos Estados Unidos inteiros, viajei de costa a costa. E fui à Índia também. Voltei a Londres também. Quer dizer, houve um afastamento real do dia-a-dia: não lia jornal, não me ocupada com o que não estava na minha alçada. Era outro trabalho. Me dedicava inteiramente àquilo. Mesmo nisso existia o teatro e o cinema.

E você acha que esse período de afastamento mudou de alguma forma a sua maneira de atuar, de encarar a arte?

Na maneira de atuar sim. Depurou. Estava conversando com um grande amigo meu, um antigo amigo, uma amizade que eu retomei agora, que é o Fauzi Arap. E o Fauzi realmente foi o maior ator que eu já vi em toda a minha vida. E eu me pergunto. Vi muito teatro. Trabalhei com vários atores extraordinários. Mas como o Fauzi, só o Fauzi. E ele desistiu de ser ator, acho uma loucura, inacreditável. E aí eu falei, "Ah, Fauzi, acho que nunca vou deixar de atuar, porque pra mim é uma espécie de religião essa coisa de ser intérprete, né?" E eu falei pra ele que eu fiquei melhor atriz. E ele gargalhava. Isso apesar de ser fã daquela atriz que fez A Mulher de Todos, eu realmente acho que melhorei. Acho que a gente depura esse contato com uma atmosfera menos pesada, material, com tanto espírito de competição. Acho que a competição acaba com você, destrói. Quando você vê um ator ou diretor caindo é porque ele entrou nessa luta de competir, de ser o melhor, o que eu acho a coisa mais grosseira da vida material. Eu estou num lado bem mais sutil.

De uma certa maneira, houve um grande desprendimento, né? Como a gente falou, você está sempre na vanguarda. Você era uma atriz muito conhecida, tinha feito Assalto ao Trem Pagador, e foi fazer os filmes do Rogério e do Júlio, os chamados "marginais"...

E mais que isso, porque nessa época eu era produtora. Meu dinheirinho também entrou nisso.

A Mulher de Todos e O Bandido da Luz Vermelha funcionaram muito bem no aspecto de público.

Funcionaram muito bem, mas depois veio a Belair. A Belair não poderia ter entrado no circuito exibidor porque era uma época horrorosa, e os militares estavam preparando o que tem de pior, que é a pornochanchada. E a Belair ficou por fora, os realizadores também tinham umas opiniões contrárias à ditadura... Senão eles poderiam também ter emplacado.

Os filmes deles têm claramente o interesse em dialogar com o popular: o Bressane trabalhou com o Grande Otelo, O Rogério chamou o Zé Bonitinho, o Luiz Gonzaga, o Moreira da Silva, trabalhou música com o GIlberto Gil...

Isso... Também o Dom Um [Romão]... O Rogério quer fazer com o Gilberto Gil um outro filme... É isso, o último filme de Grande Otelo foi com o Rogério, o Nem Tudo É Verdade.

Você é uma das atrizes mais soltas, mais livres de movimento. Até o Stanislavsky fala isso, que uma das primeiras coisas para o ator desenvolver um processo de criatividade no trabalho ele deve ter um corpo solto e mais livre possível. Agora, eu acho que – falo mais pelo Savannah Bay, que foi onde eu pude ver você em ação por mais tempo nos últimos anos – você atua num certo sentido da contenção e de ter poucos gestos mas todos os gestos muito bem pensados e muito significativos. Vendo A Mulher de Todos, Sem Essa Aranha ou Copacabana Mon Amour o que mais se sente com força é uma certa violência: o grito, os gestos que parecem completamente irrefletidos.

Isso... Mas em Savannah existia esse vulcão interior, que surgia de vez em quando, mas o personagem é fechado, recalca aquilo através de um certo humor. A própria Marguerite Duras fala que as emoções são imorais, às vezes... Mas eu acho que é a mesma pessoa. Se eu não tivesse ido ao extremo de A Mulher de Todos eu não chegaria à contenção de Savannah Bay. Apesar de Savannah Bay ter sido no começo ainda mais contido. Foi o Rogério, inclusive, que abriu, que esgarçou o personagem. Ela era completamente monolítica. Cada riso, cada sorriso, fosse o que fosse, estava tudo sob a égide da contenção. Savannah Bay está mais próxima de O Padre e a Moça. E A Mulher de Todos era o contrário, era a anarquia do corpo, e também Sob o Signo do Caos, que é mais nessa linha de A Mulher de Todos.

Você atua com quem nesse filme?

Tem várias pessoas. Tem a Giovanna Gold, tem a Camila Pitanga, tem o Guará, o Otávio Terceiro, que já trabalhou com o Rogério antes. E é isso, tem esse prazer de brincar com o corpo e com o movimento.

Você filma há trinta e cinco anos com o Rogério. Você vê uma mudança, uma diferença na maneira como você trabalha com ele desde O Bandido da Luz Vermelha a Sob o Signo do Caos?

Existe uma mudança sim. E existe também uma coisa inacabada nessa mudança, algo que não está acabado. Por exemplo, é claro que eu passei de uma jovem, de uma menina para uma senhora de sessenta anos. Agora, corporalmente, na questão dos movimentos, houve um apuro com o tempo Apesar da minha formação ser uma formação de dança – então já se esperava que eu fosse por aí –, eu desenvolvi com o tai-chi-chuan, com lutas marciais internas da tradição chinesa. Eu até aprimorei e mantive todos os movimentos técnicos da juventude. Então eu fiquei, de uma certa forma, uma atriz bem original. Já era, talvez, e continuei sendo meio original. Porque eu sempre gosto de, no meio de uma atuação clássica, sair para um lado mais de experimentação. Então isso com o Rogério, sempre foi assim. Mas agora, na maturidade, eu não vejo que está completo o meu ciclo com o Rogério. Em Sob o Signo do Caos, acho que as pessoas que gopstam do meu trabalho vão continuar gostando, mas ainda é uma transição. Eu quero pegar agora uns papéis de velha, como atriz já em outro estado da vaidade, da contenção. Eu acho inacabado por isso, porque tem ainda essa fase pela frente. O Rogério, como ele também se aprimorou muito na pesquisa dele, na sinceridade dos filmes, de fazer exatamente o que quer, ele ainda nesse sentido está jovem, né? Tem muita coisa ainda que ele pode fazer, e esse desejo está forte e se restaurando. Porque também houve um aspecto de decepção com a arte, com a dificuldade de fazer arte, acho que tanto da minha parte como da dele. E agora a coisa parece que ficou melhor. Eu já estou assumindo a minha maturidade, estou nela e está sendo ótimo, e ele está cheio de vigor para fazer um cinema tão interessante como sempre fez.

Você falou da sua formação em dança... Queria saber um pouco mais de como você começou, como você ingressou no teatro e depois no cinema. Qual o tipo de formação que você teve?

Eu fiz teatro e dança. Dança contemporânea, dança moderna, mas que sempre inclui uma base de clássico. Isso na Bahia, com grandes professoras, grandes figuras da dança moderna. E também fiz Afro, até mais ou menos 1972. Em 1972 eu conheci o tai-chi-chuan, e foi uma coisa de uma dedicação, que não pára, vai até hoje, o tempo passou, já são vinte anos e eu ainda me dedico, e me dedico, tendo aulas com fulano, cicrano, faço seminários com aquele mestre em não-sei-onde, corro atrás. Faço algumas armas também, faço espada, faço leque...

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