Entrevista com Helena Ignez


E no teatro? Você fez teatro com o Martim, com o Gianni Ratto, e que idéias circulavam? Que tipo de preparação se fazia lá?

A formação foi clássica, stanislavskiana e Actor's Studio, o Martim tinha contatos com o Arthur Miller, tocava a campainha da casa dele e vinha a Marilyn abrir, era uma pessoa íntima de grandes personalidades da época, um pernambucano que sofreu muito porque era viado, e todo mundo, até os comunistas, tinham um preconceito terrível.

Isso por volta dos anos 50?

Quase anos 60. Ele tinha essa fama mas não dava bandeira de jeito algum, comportava-se como uma freira, mas mesmo assim o pessoal perseguia ele, nos 4, 5 anos de escola. E ele era assim, tinha uma formação stanislavskiana, via Actor's Studio, e com grandes mestres de cenografia, de dicção. Brutus Pedreira, que trabalhou em Limite, nos ensinou música... Kollreuter... A formação era a melhor possível, a mais ampla. Teatro deve ser isso, uma formação ampla. E com a Lina Bo Bardi, diretora do Teatro Castro Alves, onde eu trabalhie várias vezes. Ela também era professora da escola... Uma formação... nossa! O aluno já saía dali preparado para a vida, abria a cabeça de toda a garotada baiana da época.

Em que momento apareceu o não-realismo? Porque A Mulher de Todos, por exemplo, é muito mais pautado no ator como ator do que como personagem... O filme já começa com você dando todos aqueles chutes no Stênio que já é uma quebra do modelo clássico do ator...

Mas n'O Bandido já tinha o não-realismo. Aliás, o roteiro d'O Bandido foi escrito antes da história do bandido da luz vermelha. Aí apareceu nos jornais, as coisas se encaixavam e isso foi usado. Mas nem podia ficar muito claro senão os advogados do cara iam em cima. Mas será que eu fiz algum filme realista? O Padre e a Moça?

A Grande Feira...

É, A Grande Feira, mas O Pátio não, São Jerônimo não... Teve o Assalto ao Trem Pagador...

Você tem vontade de pgar um papel realista?

Tenho, eu gosto.

O Maria Moura vai por esse lado?

É uma comédia, eu trabalho com o Jorge Dória, ele arrasou, fizemos uma seqüência maravilhosa, eu torço para que o filme saia. Eu também penso agora em fazer um filme.

Dirigir?

É, agora é tão difícil... Que bom se não precisasse de tanto dinheiro, se tivesse um instituto.

E em que pé está?

Bom, as idéias vêm vindo, vêm se encaixando uma na outra, às vezes desmancham, porque tem muito a ver com uma experiência pessoal, eu gosto muito de um livro de uns baianos sobre a juventude minha e de Glauber. Tem um personagem chamado Leninha, e o livro conta coisas até intimos, emocionais minhas, num trabalho de pesquisa... Tem coisas que nem eu sei como foram parar lá. Esse casal de irmãos dramatizou a época, 57, 58, que é exatamente o período em que eu estive com o Glauber. Então eu acho que daí pode dar um docudrama interessante tendo na cidade de Salvador um elemento importantíssimo. Pega fragmentos dessa história e incluir nessa cidade de Salvador que começou a dar virada, porque ainda era muito primitiva. Isso termina em 1970, por aí. Alguma coisa ligada à Bahia. E eu tenho comigo um roteiro, também, que foi feito com um rapaz de teatro, muito legal, saiu uma coisa bem interessantezinha. De um grupo de teatro no Vidigal.

O Nós do Morro?

Não, simplesmente um grupo de pessoas. Uma menina, surgiu a história de uma menina, todo mundo gostava e tal, eu mandei pra RioFilme naquela época e não foi aprovado. Deu um desânimo... Quer dizer, a gente sabia que podia acontecer, mas era ótimo o trabalho deles...

A gente falou um bocado do teu trabalho com o Sganzerla, mas e o teu trabalho com o Bressane, da Belair até o São Jerônimo? O que ele te pede, qual a margem de liberdade que ele te dá?

No São Jerônimo ele falou, "Olha, eu quero a imagem mais contida possível, as mulheres são neutras". E a voz. Nos outros filmes, a contribuição era grande.

Não era tão marcado?

Era também. Mas não era coreografado, como no Sem Essa Aranha, porque o Júlio é mais fixo, mais contemplativo. E ótimo de trabalhar. É muito legal.

Qual o filme que você teve mais prazer fazendo e qual é o filme que você vendo acha que tem mais de Helena Ignez na tela?

A Mulher de Todos tem bastante... É, acho que A Mulher de Todos.

Também foi o que te deu mais prazer fazendo?

Prazer eu tenho em todos, eu tive muito prazer em fazer Sob o Signo do Caos também. E adorei fazer também o filme do Júlio, porque não é fácil fazer o que ele pede, aquela voz integrada no corpo. Mas o prazer para mim é o mesmo.

Só mais um último comentário: eu acho incrível que, logo depois de vocês fazerem A Mulher de Todos, o filme do Rogério e o seu personagem mudaram o perfil de atuação de cinema no Brasil. Eu não sei se é uma influência da época ou do filme, acho que dos dois, mas um monte de atrizes caminhou no sentido dessa espontaneidade maior. Logo depois a Adriana Prieto vai fazer com o Roberto Santos Um Anjo Mau, onde ela também usa muito essa violência feminina, a Anecy Rocha no filme do Walter Lima Jr. [A Lira do Delírio], várias atrizes que seguem por esse caminho. Você é bastante pioneira. Eu não creio que haja um filme antes de A Mulher de Todos que apresente uma força tão grande na presença da mulher.

Foi muito forte ter feito A Mulher de Todos. Na época não foi mole não. Muito preconceito, muita coisa que acontecia. E a sensação não era muito cômoda porque eu ganhava muito prêmio, recebia prêmios nos festivais. Não era simpático. As minhas amigas estavam lá... Mesmo com O Padre e a Moça aconteceu isso. Você sabe, a Fernanda [Montenegro] fala isso, que ganhar prêmios não é cômodo. Nessa época eu queria romper mais. Eu queria botar pra quebrar a linguagem estabelecida, em todos os sentidos. E nisso, evidentemente, tinha também o impulso destrutivo, e você falou aí no meio o nome de duas pessoas que morreram ainda jovens, no começo da jornada, que também seguiram esse caminho, a Anecy e a Adriana. Eu acho que você tem que romper mas tem que manter uma chama de amor, senão fica só destruição e se volta contra você mesma. E eu espero, como a vida imita a arte e a arte imita a vida, que hoje fique o lado realmente engraçado, divertido, positivo. Naquela última sessão de A Mulher de Todos na mostra...

... As pessoas riram muito...

Riram muito, nunca vi rirem tanto (risos). É muito engraçado.

Porque o filme também é uma declaração de amor.

É. E ali eu também estava amando profundamente. Mas não era Rogério só. O amor dele foi se depurar com o tempo. O amor mesmo era o da arte, de passar pelas pessoas, de vontade de chegar a elas, é meio interpessoal. E também um momento extraordinário do sentido particular, porque afinal era o amor da minha vida que eu tinha encontrado. Eu vi agora a Malu [Mader] no Bellini e a Esfinge? Dentro do convencional, ela está tão feliz de estar fazendo que é adorável ver. Antes de tudo, ela tem uma tal alegria de ter chegado a estar fazendo o que ela queria. Isso passa. Não se torna mais um trabalho. Isso tinha em A Mulher de Todos muito forte. No caso da Anecy, em A Lira do Delírio, que é um dos filmes mais bonitos do cinema brasileiro, tinha quase uma premonição da morte. Eu não consigo nem ver esse filme direito.. .Tinha a fragmentação do personagem. Mas era diferente do meu filme com o Rogério. Mas é, eu acho que houve uma influência grande, em vários filmes, algumas inconfessadas, outras confessadas, até bem mais tarde.

Eu acho interessante também essa coisa da chanchada, que o Rogério retomou os atores, um certo fascínio por um tipo de personagem como Zé Bonitinho que está lá. Quer dizer, tinha esse interessa para compor o personagem.

Tinha. Os grandes mestres são os cômicos populares. Esses são maravilhosos. Agora eu estou rindo porque num determinado dia no ensaio de Antiga, que era muito sério, muito comportado do ponto de vista cultural, eu falei, "Mas isso aqui está parecendo A Praça É Nossa!" E as pessoas ficaram assim, "Logo com o que você foi dizer que nós estamos parecidos? A Praça É Nossa?" (risos) Porque era realmente quatro chanchadeiros ali naquele palco. E é ótimo, isso existe no ator brasileiro. Acho que a característica dele é pelo povo, né? Quer dizer, a gente não pode se desvincular do popular. Tem alguém mais pé no povo do americano do que o Sean Penn? É um típico neurótico americano. É um grande ator. Ele é completamente enraizado na sua cultura.


"Esta mulher é nossa", dizia O Cruzeiro.

Entrevista realizada por Daniel Caetano e Ruy Gardnier no dia 9 de abril de 2002.