Entrevista com Helena Ignez


Helena, capa de O Cruzeiro em 1969, à época de a indicação ao
prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília


Queria primeiro que você falasse um pouquinho das coisas que você vem fazendo. Você é atriz do novo filme do Rogério [Sganzerla, também marido de Helena], Sob o Signo do Caos...

Sou. O Sob o Signo do Caos eu fiz, já foi há um tempinho a filmagem, mas ele está terminando agora. E é lindo. Adorei. Eu fiz a parte de dublagem também. É interessantíssimo, porque é um filme muito da palavra. Além disso fiz o São Jerônimo, do Júlio Bressane, e o Maria Moura, com a Leilane Fernandes, no ano passado, e vamos ver o que vai acontecer. Foi uma participação interessante com o Jorge Dória e com a Djin Sganzerla, minha filha.

Você também faz bastante teatro, fez várias peças...

É. Fiz Savannah Bay... Antes fiz Cabaret Rimbaud, não aqui no Rio, mas em São Paulo, em Salvador, onde a peça surgiu, e também em Barcelona, onde fomos convidados para participar num festival de arte brasileira. Foi uma experiência super interessante. E o ano passado, além de fazer Savannah Bay em São Paulo, onde tivemos uma crítica maravilhosa, páginas inteiras de cadernos culturais, cotação máxima do Nélson de Sá, da Folha de São Paulo. Depois disso eu passei a ensaiar Antiga, do Dionísio Neto, que é um autor jovem com uma receptividade enorme da crítica paulista desde o primeiro trabalho dele, Perpétua. Ele é jovem, 29 anos, também é ator. Foi um papel excelente, com o José Rubens Chachá e também com a Djin.

Uma coisa curiosa ao longo da sua carreira é que ela tem um perfil experimental, de você sempre estar trabalhando com o pessoal da vanguarda. Como é isso, você acredita que os diretores que têm uma maior afeição ao experimental te chamam?

É verdade.... É uma coisa que deve ter uma sincronicidade. Porque naturalmente eu já surgi numa vanguarda. Surgi no teatro baiano no momento de extrema vanguarda, de rompimento total com a parte mais provinciana do teatro brasileiro, com um grupo fantástico, dos meus mestres Martim Gonçalves, Gianni Rato e também alguns americanos, e pessoas importante dentro da história do teatro americano, alguns diretores mesmo da Broadway. Então foi muito interessante essa mistura, porque isso representava a grande vanguarda na época. E por aí eu fui no cinema logo com quem? Logo com quem, com o Glauber.

Em O Pátio.

Sim, n'O Pátio, que foi o meu primeiro filme. E por aí vai. Também eu acho que a minha posição pessoal, de uma certa forma, é experimental e de vanguarda, com o rompimento de comportamentos tradicionais, que no decorrer da minha vida se faz. E no caso do Dionísio foi adorável, porque ele veio assistir a Savannah Bay aqui na Tijuca (no Sesc Tijuca, onde Contracampo foi conferir e encontrar-se com Rogério Sganzerla), e ele já tinha visto um programa da Marília Gabriela em que eu dava uma entrevista junto com o Rogério, e tinha achado o tipo muito interessante para uma atriz que ele procurava, que era a protagonista que ele chama de uma "diva sertaneja", que é uma mulher que é casada com um candidato a presidente da república e depois se auto-exila, fica vinte anos sem sair de casa. Uma figura. Ele já tinha procurado entre várias atrizes. Viu o programa, achou interessante, soube que eu estava no Rio, veio e disse: "Olha, eu tenho uma coisa bem parecida com essa diva - na verdade, não era parecida, mas em comum tinha o estado dessa mulher que em Savannah Bay era uma grande atriz de teatro do passado e a outra era essa mulher que tinha o comportamento de uma diva, porque ela estava fechada dentro de uma casa, era uma outra história, outro contexto. Foi muito bom, eu adorei e possivelmente vamos fazer um outro trabalho juntos, apesar de Antiga continuar: foi convidada para um festival na Dinamarca e também estamos inscritos no Festival Internacional do Rio, e contamos com a inteligência que já se faz expressa da RioArte.

Helena, você tendo feito recentemente essa peças e os filmes do Bressane e do Sganzerla, e depois de toda aquela fase dos anos 70, eu queria saber o que você vê de amadurecimento, quais são os seus interesses, os desafios que você se coloca?

O que eu vejo é um momento de consciência, existe uma conscientização maior desse trabalho artístico em geral. Tanto dos jovens, no caso do Dionísio ou da minha própria filha Djin, que é uma estudiosa de teatro, até nós, mais antigos. E cada um procurando... Já que estamos falando de nós mesmos, eu acho que ficaram claros caminhos individuais, as diferenças no percurso de cada um. Essas pessoas com quem eu trabalho, e na verdade eu sou um duplo delas, elas têm uma consciência profunda de seu próprio trabalho, então a arte é uma forma de viver para essas pessoas, e para mim também. E essas ambições laterais, colaterais, como a superexposição na mídia e uma divulgação completamente massiva do trabalho já não é mais o objetivo da gente. E também não é o objetivo dessas pessoas, são pessoas que trabalham mais na qualidade. A diferença é pela qualidade do trabalho, pelo empenho em fazer bem feito o seu trabalho. E uma procura também de desmanchar essa linguagem tão tradicional, tão sabonete de cinema, principalmente, porque o teatro é mais livre, é mais barato, se experimenta mais. Ontem eu fui assistir o filme do Júlio [Bressane], o Dias de Nietzsche em Turim, e eu acho que antes de tudo é uma coisa de grande valor fazer cinema com uma outra cara, fazer um filme com uma outra cara. As caras são várias, mas são individuais, não estão procurando diretamente um mito, um espelho na mídia pra seguir. Apesar de eu achar que Godard ainda é o grande mestre, e que quem quer fazer bom cinema tem que ser inspirado nele, de uma certa forma.

E o percurso do próprio Godard é bastante diferente da agitação que era nos anos 60. Ele também está mais consciente, bastante introspectivo.

É, mas é absolutamente revolucionário, pessoal, anárquico, inteligente, anti-americanista (risos), com todas as suas características. E virou meio um sábio, né? Eu acho que o Godard é um sábio do cinema. Vocês viram o Éloge de l'Amour.

Sim, vimos.

É uma coisa maravilhosa, você sai maravilhado do cinema. Um amigo meu falou que saiu do filme como se tivesse saído de Cantando na Chuva, de tanta leveza. E é o oposto, né? Mas dá aquela extrema felicidade. Muito legal.

Falando dessa relação entre cinema e teatro de que você estava falando, como é que você faz a preparação para as suas personagens? Você vê uma diferença fundamental no teatro e no cinema ou é de papel para papel?

De papel para papel, sim. A diferença existe, claro, ela é óbvia. Se você vai representar um pedaço do rosto, um perfil, do que representar com o corpo inteiro, com uma mão. O cinema escolhe qual é a sua parte prioritária para expressar aquele determinado momento, podem ser as costas... Godard filma muito de costas, quase ninguém filma de costas. E eu sempre adorei essa coisa, em Savannah Bay eu começo de costas. Eu fico um bom tempo de costas, eu falo, e as pessoas se perguntam "O que é? O que ela quer?" E a receptividade do público era maravilhosa. Antes de ser feito é que se questionava se aquilo ia funcionar ou não. Mas o público não está tão viciado. Principalmente o público de teatro que vai ver uma peça especial está mais aberto.

Vendo essa mostra do cinema marginal, a gente percebia que várias vezes situações que davam uma grande liberdade para os atores, como os longos planos-seqüência do Sem Essa Aranha ou de Os Monstros de Babaloo. Como eram esses ritos de improvisação?

Era sim, era uma grande liberdade do ator. A atriz, no caso, que era eu, tinha muita participação cênica, como os outros atores que trabalhavam junto. Era uma delícia, uma grande liberdade e o ator existia, como o roteirista, como o fotógrafo... Era uma peça essencial. Claro que é essencial. mas se ouve falar - e é verdade - que o ator é um objeto em cena. Ali eu criava, nos seus movimentos, nas suas palavras. Mas esse já é um outro cinema. Mas voltando ao que você me perguntava, eu acho que é de personagem para personagem a melhor maneira de trabalhar. Eu agora estou querendo trabalhar com economia, com aquilo que eu trabalhei em O Padre e a Moça. Na direção de Antiga, foi muito pedido isso pra mim. Daquele personagem que é importante cada gesto, de como ele pega (faz um gesto de pegar), o movimento tem que ser simples mas estudado...

Um trabalho de contenção de gestos...

De contenção de gestos, isso. Simplicidade e exatidão.

Você uma vez disse que o Joaquim Pedro [de Andrade] pediu para você atuar em O Padre e a Moça sem os braços.

É, sem os braços, não movimentar... Deixar a figura mais neutra possível, contida. Em O Padre e a Moça, a personagem se encontra mesmo numa camisa de força, até que rompe. Rompe e é queimada. Então só no amor que ela consegue cortar essa prisão. O "sem braços" ali fazia parte de uma composição mais monolítica. Nesse sentido de contenção eu também trabalhei na última peça do Dionísio. Apesar de correr, andar, me movimentar e tal, mas dentro de uma simplicidade. Só satisfazia quando limpava, limpava, limpava, fica só aquela coisinha (vai baixando a voz para dar a dmiensão de leveza). Fluía muito tranqüilo, dentro de vários estados emocionais. Sem monotonia nenhuma, porque a vida não pode ser monótona, e a arte ainda muito menos. Apesar de ser minimalista, não pode ter monotonia.

Uma coisa que impressionou a maior parte das pessoas presentes na mostra - falando aqui dos filmes do Rogério que você fez parte - foi a incrível espontaneidade dos atores, e a coisa que se ficava sempre discutindo era o que era definido antes da filmagem, se o Rogério dava apenas diretrizes, se ele te dava toda liberdade ou se todos os movimentos, tanto no espaço quanto na fala, já eram todos calculados de antemão...

Isso é interessante. Sem Essa Aranha foi o filme mais coreografado que eu fiz. Era uma liberdade dentro das linhas que o Rogério ensaiava.

O filme era todo marcado?

Todo marcado.

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