A tripla face de Jean-Luc Godard


Retrato do cineasta como músico: For Ever Mozart de Jean-Luc Godard (1996)

A produção recente de Jean-Luc Godard realça alguns aspectos de seu cinema que, até então, ficavam retidos em segundo plano. Prenunciavam-se, certamente, desde o começo de sua carreira, mas a multiplicidade de considerações acerca da arte de Godard – colagem, arte pop, citações, metalinguagem, referências à história do cinema, militância política – tornava menos claros. Se a grande revelação dentro das linguagens do cinema que foram seus filmes dos anos 60 conduziu inúmeras discussões sobre montagem, sobre como filmar a contemporaneidade, sobre as inúmeras intervenções realizadas num misto de respeito e inobservância das regras do cinema clássico, sua produção do cinema nos anos 80 e mais propriamente a dos 90, culminando nas História(s) do Cinema, nos obriga a aver a figura de JLG, cineasta, sob mais aspectos do que antes.

A partir de 1979, com Salve-se Quem Puder (A Vida) – a tão propalada volta de Godard ao "cinema-cinema" depois de 12 anos com filmes militantes e/ou ficções de circuito restrito – e a volta ao cinema de personagens, alguma coisa acontece: a trama do filme não está mais em primeiro lugar, a fruição parece mais etérea, abstrata, e o "conteúdo" é mais confuso. Em contrapartida, o tema profundo de seus filmes passa a ser unicamente cinematográfico, metalingüístico: o movimento das imagens (Salve-se Quem Puder), a luz e as relações com a pintura (Paixão), ou então um novo tratamento de personagens arquetípicos da cultura ocidental: Carmen, o Rei Lear, a Virgem Maria. Em todo caso, esses arquétipos são muito menos importantes do que os problemas que eles evocam. King Lear passa a ser redutível à questão "nothing/no thing" que pauta o filme, a Virgem Maria torna-se motivo sobre uma reflexão sobre o corpo feminino e, conseqüentemente, sobre o ator.

A década de 90 é uma radicalização desse processo: o cinema passa a ser uma questão de religiosidade (Nouvelle Vague, Infelizmente Para Mim), de ensaio propriamente dito (JLG/JLG – Auto-Retrato de Dezembro) ou uma reflexão história associada ao ensaio íntimo, em primeira pessoa, que já não precisa de mais qualquer mcguffin para fazer o mecanismo ficcional funcionar (História(s) do Cinema). Alain Bergala, o maior especialista em "ciência godardiana" e amigo pessoal do cineasta, vê um progressivo e sistemático aumento do ensaístico dentro de seus filmes1. Na produção dos anos 80, Bergala aponta que há uma clara distinção entre os filmes-ensaios (geralmente em curta ou média-metragem, com um acabamento formal menos forte do que de costume) e os filmes-filmes, notadamente os longas-metragens. Depois de Nouvelle Vague (1990), ainterpenetração é profunda, e a reflexão histórica passa a assumir o controle: Alemanha Ano Nove Zero, As Crianças Brincam de Rússia, For Ever Mozart, e claro, as História(s) do Cinema.

Marcaria então Elogio ao Amor a volta ao cinema do filme-filme? Alguns dados nos levariam a crer: a temática do amor, a notícia de que Godard voltaria a filmar Paris depois de mais de trinta anos, a história sobre três casais de diferentes idades... Mas Godard jamais "sai" de uma fase para entrar em outra. Diríamos que, dialeticamente, o autor de Pierrot le Fou suprime e mantém todo seu cinema cada vez que entra num novo período de sua carreira. Suprime e mantém no sentido hegeliano de Aufhebung (antigamente traduzido como "superação", mas que hoje o consenso faz por bem traduzir como "supressão"): negar a fase anterior, mas ao mesmo tempo superando-a e carregando-a consigo. Assim, Elogio ao Amor é muito menos um filme que tem o amor como tema do que um ensaio sobre aquilo que torna possível o amor (segundo Godard: a história, a memória, a resistência). Logo, uma pesquisa pela origem, uma especulação em que há espaço para a contemplação da história (uma impressionante imagem de uma fábrica abandonada significa o fim da classe operária), para os comentários sobre os Estados Unidos (um país que não tem nome nem história, então é preciso roubar essas histórias dos outros) e, claro, sobre a imagem (que ao mesmo tempo nos tira do nada e é o próprio nada que nos observa).

Questão de pensamento, pois. De imaginação, de falatório, de abstração e de imagens que acompanham o percurso especulativo do diretor. Como de costume, isso significa a mais que recorrente separação entre os adoradores de Godard e seus detratores. As acusações, já as conhecemos de antemão: verborrágico, pernóstico, obscurantista ou simplesmente chato, para os de profundidade analítica sensivelmente menor. Se Godard hoje já alcança esses lugares-comuns bastante cristalizados (e mais alguns, como o de cineasta-pensador-que-faz-filmes-cansativos-mas-que-são-bons-porque-fazem-pensar), o máximo que podemos fazer é tentar relativizar essas posições, mostrar a improcedência de certas idéias, nuançar outras que fazem algum sentido... Em todo caso, atender ao próprio Godard das História(s): "fazer uma descrição precisa".

Assim, aquilo que parece mais relevante em relação ao trabalho recente de Jean-Luc Godard e a recepção que sua obra vem tendo (não só) no Brasil, nos parece ser a de identificar três possíveis modos de leitura e interpretação para seus filmes. Três modos que são possivelmente os três eixos em que Godard parece mais evoluir seu cinema, mas tammbém três níveis de interpretação e de possível fruição da obra que dependem, naturalmente, da disposição, do repertório prévio (em alguma medida), dos gostos e dos interesses do espectador. Há antes de tudo um Godard sedutor, mágico, que cria imagens quase flutuantes, que se movimentam com a leveza de notas numa partitura: um Godard músico. E essa música, não se precisa ser especialista, cinéfilo, cultivado ou qualquer outra característica do gênero. É só experimentar. Há também, obviamente, o Godard com 50 anos de carreira no cinema, entre a crítica e a realização. Trata-se de uma obra gigantesca, que evolui continuamente, e incorpora com ela toda a história do cinema. Naturalmente, aqueles que conhecem um pouco mais dessa história talvez conseguirão captar alguma referência importante que vai fazer sentido dentro do filme. De qualquer forma, referências pescadas ou não, Godard é um magnífico homem de cinema, e todos que têm atração pela arte cinematográfica sentem-se inevitavelmente impressionados com alguma coisa, com a textura das imagens (que em Elogio ao Amor alcança o inacreditável), com a força das imagens, com o trabalho de invenção dos atores... Enfim, um Godard propriamente cineasta. Por fim, há um Godard pensador, com questões polêmicas sobre o papel do cinema, sobre a história, sobre o mundo contemporâneo. É ao mesmo tempo o Godard mais visado e menos compreendido. Esse sim um Godard talvez hermético, provocador, questionável até, mas ainda assim vibrante e forte, necessário. E o que, certamente, mais necessita de comentários2.

Como músico, primeiramente: mesmo que durante muito tempo jamais nos tenha ocorrido, é Godard mesmop que vai nos "lembrar", a propósito da exibição de Detetive no Festival de Cannes de 1985, quando ele próprio levanta para, como um maestro, reger seu nfilme. Anedotas à parte, o princípio que conduz a feitura de seus filmes nos últimos 23 anos é acima de tudo musical, e não narrativo (embora haja sempre narração e narrativa). Assim como a música contemporânea vai deixando aos poucos de ter seu princípio estrutural de composição na melodia (Varèse, Webern), Godard vai aos poucos se desfazendo da narrativa como princípio ordenador do filme. Assim, assistir a um de seus filmes parece mais com a fruição de uma peça musical – questão de ritmo, encadeamento de notas, progressão... Assim como se fala em "fio narrativo" dos filmes, quando se trata de Godard seria mais apropriado falar em "fio musical".

Como cineasta: ainda é preciso dizer alguma coisa sobre esse tópico? Em todo caso, há de se observar um uso exaustivo de todos os meios expressivos do cinema, chegando à virtuosidade de misturar o jurássico efeito de íris – a "bolinha" do cinema mudo que escurece a tela toda e mostra apenas um detalhe do plano – até o uso criativo da imagem digital. Desde Acossado, seu primeiro longa, todo filme de Godard é um acerto de contas com os elementos significantes do cinema, da fotografia (os céus estourados de Raoul Coutard) ao corte dentro do plano, do uso pictórico do cinema ao uso literário – a partir dos anos 90, as legendas e os intertítulos que Godard coloca nos filmes têm tanta ou mais importância do que os personagens.

E como pensador, como homem da história e representante do cinema dentro dessa história? Aí sim temos um Godard árido, quase esotérico. Mas até aí nosso Jean-Luc é tanto poeta quanto homem de ciências. O mesmo amor pela certeza quanto pela ambigüidade, e certamente muito mais interesse em levantar questões do em que ser categórico na resposta (o próprio Godard se considera muito mais leitor de frases do que leitor de livros – daí a primazia do poético e do lacunar). Há, claro, diversas tomadas de posição, constatações e teses, e elas são parte decisiva dos filmes.Em Elogio ao Amor, há diversos pontos de retenção: Spielberg e o direito de filmar a Segunda Guerra, o cinema contemporâneo como puro comércio (a famosa frase "Trade follows films", de Selznick, é aqui reeditada), o amor como uma questão que acima de tudo diz respeito à memória e à resistência, existencial e política, a idade adulta como uma "não-existência"... Pode-se concordar com algumas idéias, pode-se não concordar com nenhuma. Isso está além do interesse de Godard. Mas uma coisa parece impossível de negar a seus filmes: suas questões são muito fortes, e a maneira como elas são colocadas – são alvo de uma verdadeira dramaturgia do conceito! – só serve a reforçá-las mais ainda. Como pensador, Godard mais uma vez é antes de tudo um artista. Um dos maiores.

Ruy Gardnier


1. BERGALA, Alain. Nul Mieux Que Godard. Paris: Éditions Cahiers du Cinema, 1999.

2. Há uma tentativa maior de compreensão desse Godard nos outros artigos da pauta e um, especialmente a partir das frases emblemáticas de Godard, em "JLG por JLG psicografado por RG"