JLG por JLG psicografado por RG


O próprio Godard aparece na tela como o historiador em serviço observando um plano de Roma Cidade Aberta (1941): História(s) do Cinema de Jean-Luc Godard (1999)

1. "Acabou o tempo de reflexão. Começou o tempo de ação" (Pierrot le Fou, 1965). Se naquele momento a expressão fazia total sentido – um caminho progressivo para um cinema de conotação social explícita (o quase sociológico Masculino-Feminino ou Duas ou Três Coisas Que Sei Dela, onde Ela é a França, representada pela personagem prostituta de Marina Vlady) ou francamente político (A Chinesa, One Plus One), partindo depois de 1968 para o cinema declaradamente militante –, hoje Godard parece ter voltado ao tempo da reflexão. A política não é mais possível, a se julgar por seus filmes sobre a Alemanha, sobre a Rússia, ou sobre o próprio cinema. Não há mais público para se falar, e os filmes que hoje atingem o público já fazem algo muito distante daquilo que Godard sustenta como "cinema". Ultrapassado pelo mundo, resta ao nobre Jean-Luc a lenta retirada para a reflexão. Um discurso derrotista, sem dúvida, e uma certa narrativa de decadência (como a religião cristã e a pior filosofia feita no século XX) que fazem com que Godard veja o mundo contemporâneo com olhos de um homem de ontem. Só que esses olhos, mesmo defasados, ainda são capazes de ver muita coisa. Certas de suas teses, no entanto, são inaceitáveis, sob pena de entrarmos no velho falatório da reclamação e da negação da época atual, que pode caber muito bem num senhor de 72 anos mas vai muito mal a quem não tem nem a metade disso.

2. "Um outro mundo se levanta, duro, cínico, analfabeto" (Histórias do Cinema, 1998). A tese tem matizes. A primeira vez que a voz surge no fime, é para demarcar a especificidade do cinema em relação à pintura. Passagem de geração, pois? Parece que sim. Então fica mais fácil aceitar quando os mesmos adjetivos sérios e poderosos são jogados novamente ("duro", "cínico", "analfabeto") quando se fala de uma nova geração, possivelmente a dos filhos da modernidade que recusaram a duvidosa paternidade. Em todo caso, esse "outro mundo analfabeto" já foi o do cinema, e agora se torna outra coisa. Que coisa? Pouco se sabe. No entanto, Godard dessa vez se posiciona fora desse mundo que não o agrada, mas que ele não consegue definir precisamente (Seria o cinema americano de efeitos especiais e público-alvo adolescente que domina o mundo do cinema desde os anos 80? Seria a descrença cada vez mais forte de que hoje a imagem não é vista mais como algo que significa alguma coisa mas como uma simples moeda de troca por dinheiro e poder? Seria um mundo em que parece que a política não é mais possível porque a tecnocratização ocupou todas as esferas da vida social?) Esse mundo cínico e analfabeto certamente é o da besteira, do consumo e da imagem como consumo (os filmes pornográficos que estão sempre presentes nas Histoire(s)), mas o alcance da besteira não é delimitado. Tampouco se sabe se segundo Godard é possível que desse mundo brote alguma beleza.

3. "Examino com cuidado o meu plano, ele é irrealizável" (citação de Bertolt Brecht presente nas História(s) do Cinema). Sob um certo aspecto, todos os seus filmes recentes são histórias de frustração. Sempre muito líricos e muito tristes, como o encontro imaginário de todos os cineastas russos, um a um cumprimentados pelas atendentes de um hotel luxuoso em As Crianças Brincam de Rüssia. Ainda um sonho de uma época em que o cinema era um cavalo de batalha a ser defendido por todos os artistas. For Ever Mozart é o relato da impossibilidade de filmar a guerra ao mesmo tempo que é um relato da frustração do verdadeiro artista em sempre se ver expelido pelo meio-ambiente "sério" (culpava-se as composições de Mozart por ter notas demais), Elogio do Amor é sobre a impossibilidade de falar do amor num mundo sem memória ou resistência. A esse respeito, História(s) do Cinema responde com mais poesia e precisão: para fazer a história de um minuto, é preciso 24 horas; para fazer a história de um dia, é preciso uma vida inteira", e assim por diante. O que torna todos os filmes de Godard de um fervor quase religioso é essa forte inclinação ao imaterial, à impossibilidade de se ater simplesmente aos dados materiais constitutivos para se fazer história. Filma-se a Rüssia, a Alemanha, Sarajevo ou a história do cinema para só se obter o vazio. Se o discurso meta-religioso de Godard nos últimos tempos beira um essencialismo da imagem muito perigoso, ao mesmo tempo ele serve como um balde de água fria muito bem jogado em toda a lógica utilitarista do mundo contemporâneo, que baseia todas as suas decisões em números e deixa de fora aquilo que não é quantificável. Aquilo que interessa a Godard a princípio – e isso desde o começo de sua carreira – é o inquantificável, esse limiar de fascinação que já atingia a doce Patricia Franchini (Jean Seberg) em Acossado quando lia as últimas palavras de Palmeiras Selvagens de William Faulkner: "entre a dor e a morte, eu ficaria com a dor". Em sentido contrário, existe fascinação semelhante por Michel Poiccard que, ao contrário de Faulkner, prefere a morte, "porque a dor é ainda um compromisso". Juntar os dois, esse é o acesso ao absoluto sempre buscado por todo grande artista que se debate com seu trabalho. Claro, esse absoluto, sabe-se, é o tal plano irrealizável. Mas toda a graça é tentar.

4. "A arte é o que renasce daquilo que se queima" (História(s) do Cinema). A mesma lógica está presente, uma lógica propriamente dialética da arte: ao mesmo tempo ter que escrever seu nome na eternidade e ser morta para que nasça outra, para que a arte ainda seja possível. Paradoxo inelutável, mas de extrema beleza. Sabe-se – mesmo porque é o próprio que declara aos quatro ventos – que Godard sugeriu a Henri Langlois que incendiasse a Cinemateca Francesa, salvando dela um só filme, qualquer um. Essa hipótese, inaceitável e herética para qualquer um que se apegue à tradição (e pouco aceitável sob qualquer ponto de vista), tem entretanto uma contrapartida simbólica muito importante. Não seria o apego a nosso passado o motivo mais forte para permanecermos presos a ele? À própria ideologia que prega a manutenção dos estados-de-coisas chama-se conservadorismo, apropriadamente. Queimar as obras, mesmo que simbolicamente, é a única possibilidade de refazê-las. Ou mais ainda: queimar as obras é a única possibilidade de tê-las, como obras.

5. "Fim / de Cinema" (Week-end, 1967). A frase testemunha realmente uma mudança no cinema de Godard, que se dá pelo abandono das estruturas comerciais dos lançamentos e financiamentos, passando a basear-se em comandas de televisão (sempre recusadas) e em circuitos alternativos de exibição, como as universidades e os círculos universitários (ou não) de esquerda. O fim do cinema, no entanto, volta no vocablulário de Godard nos anos 80 não como a observação de um percurso pessoal, mas como uma constatação a respeito do estado mundial do cinema. A discussão é longa, envolve Wim Wenders e foi muito bem tratada por Serge Daney ao longo de sua obra crítica (não é à toa que ele aparece no episódio 2A das História(s)). Mas aquilo que nos diz respeito significa apenas o seguinte: uma certa cultura do cinema termina, e com ela uma certa idéia de cultura em geral, da qual o cinema é o último avatar. As História(s) ocupam, entretanto, um lugar que é tanto privilegiado quanto ambíguo: representam um elogio dessa cultura ao mesmo tempo que lhe declaram a morte. São ao mesmo tempo o testamento e o inventário de seus bens, os bens do cinema e de como uma vez o cinema relacionou-se com a história.. Bem poderiam se chamar Elogio ao Amor ou Elegia do Amor.

6. "1+1" (One Plus One, 1968). É a tese da montagem segundo Godard, que não é nada menos do que uma teoria da verdade. Ou a verdade de toda teoria (sendo bastante godardiano), a se julgar que toda teoria é um pouco uma ficção (qualquer cientista sério hoje o confirmaria. Fiel ao espírito de Robert Bresson, uma imagem sozinha não representa nada para o cinematógrafo (palavra de Bresson que hoje Godard utiliza quando quer falar do cinema, ou daquele cinema que ele crê ainda cinema). Existe cinema quando uma imagem se une a outra para criar alguma coisa que não estava em uma ou em outra, mas justamente na junção delas. Em uma palavra, na associação. A beleza, em arte, tenderia a ser tão maior quanto maior fosse a distância entre essas duas imagens. Sob esse aspecto (mas não só), as História(s) do Cinema seriam sua verdadeira obra-prima e o filme que ele esperava fazer desde que começou a escrever sobre cinema. Nenhuma imagem existe por si só, mas apenas enquanto se conjuga com outras. Tanto do ponto de vista conceitual (onde o pensamento existe apenas enquanto fluxo de idéias proporcionadas pelas imagens) e onde as próprias imagens se interpenetram, fazem caminho inverso, param, voltam a se movimentar, sejam elas de filmes de atualidades (os documentários que eram exibidos antes do filme principal da sessão), de filmes clássicos, de filmes perdidos ou reconstituídos ou de pornôs. Reside o princípio muito democrático (democrático demais, diriam os puristas) de que uma imagem é somente uma imagem, e qualquer imagem é sempre a mesma imagem.

7. "[Quanto à concepção de História(s) do Cinema, ...] Eu tinha um plano que eu nunca mudei, foi o nome dos oito programas. Eu sabia que o primeiro episódio, Todas as Histórias, mostraria que o cinema rapidamente apropriou-se de tudo. Depois, eu mostrei que seu modo de feitura era muito solitário, é o episódio que eu chamei de Uma História Só. Eu redigo aqui o que eu disse ao Serge Daney há dez anos... Depois, é Só o Cinema, que mostra que de fato, o cinema foi o único a fazer realmente isso: filmar essa história, e ao mesmo tempo pequenas histórias, pequenas comédias musicais, pequenas gags, coisas bobas que todos achavam nulas desde 1920. Depois, eu mostrei que o cinema é os homens filmando as mulheres. Há algo de muito fatal nisso. É a história da beleza que, na pintura como na literatura, esteve sempre ligada às mulheres, e não aos homens. Trata-se então de Fatal Beleza. Depois, é A Moeda do Absoluto, que vem de Malraux. Há então uma espécie de absoluto, a que se deveria entregar a moeda: deve-se pagar. Depois, sempre segundo a inflUência de Malraux, há A Resposta das Trevas, porque o cinema vem do negro. Depois, é O Controle do Universo, o aspecto ligao à potência econômica (mesmo que seja tratado de uma outra maneira). O fim, é Os Signos Entre Nós: o cinema é um signo, e esses signos estão entre nós. É o único que nos fez signo. Os outros são ordens. O cinema é um signo a interpretar, a jgoar, é preciso viver com ele." (Jean-Luc Godard entrevistado por Alain Bergala em 1997, em Godard par Godard, v.2, p.16-7. Paris, Ed. Cahiers du Cinéma)

8. "Nada mais contrário à idéia do ser amado do que aquela do Estado, cuja razão se opõe ao valor soberano do amor. O Estado não tem ou perdeu o poder de abraçar, diante de nós, a totalidade do mundo. Essa totalidade do universo, dada ao mesmo tempo por fora, como objeto, no ser amado, ou por dentro, no amante, como sujeito" (Georges Bataille, Le Bleu du Ciel, citado nas História(s) e no Elogio do Amor). E se no fundo todo o cinema de Jean-Luc Godard não fosse senão o esforço em fazer com que o valor soberano do amor (do cinema, da arte, do mundo) tente predominar sobre a razão do Estado, a razão normalizadora?

Ruy Gardnier