As verdadeiras verdades (1/3): TV Fama


Nada mais extraordinário e banal do que observar a transfiguração que a notória revista de fofocas Contigo ganha nas mãos e na voz reveladora das apresentadoras de certos programas vespertinos. A Casa é Sua, TV Fama, entre outros, são o reflexo direto e também um referencial originário essencial da crescente realidade de farsas simbióticas cultivada pela rede televisiva brasileira. Filhos diretos dos programas femininos (feministas?) da década de 1980 – que varavam as tardes com a proposta libertária (?) de um discurso televisivo que finalmente falasse ao gueto cultural empregado ao olhar feminino – os programas de fofoca-ao-vivo são um dos fenômenos mais marcantes que a recente prática televisiva trouxe para o cotidiano do telespectador brasileiro. Amálgamas de vizinhas faladeiras com William Bonner, as apresentadoras de fofoca exercem seu poder através da autoridade; não de quem descreve um já ocorrido supostamente comprovado (telejornalismo), mas de quem ante-vê os eventos, de quem desvela o que ainda não é cabível de se tornar notícia factual.

Satélites de outros programas, principalmente da TV Globo, pautam-se sobre a curiosidade, sobre os segredos insinuados, sobre as máscaras. Dos seios fartos e falsos (ou não...) da atriz às interpretações possíveis sobre uma mesma fotografia indiscreta (os dois estão namorando ou não?), as palavras das apresentadoras são exercícios contínuos de especulação e narrativa fantasiosa. Baseados em fragmentos de imagens (muitas vezes em função de um impedimento legal para o uso da imagem de outras emissoras), trechos de falas, notinhas de revistas impressas, Tv Fama e seus irmãos tricotam, num jogo de cortar, colar e entrelaçar, os mais tórridos casos de amor, as mais indiscretas invenções.

Como numa fotonovela frame a frame (congelados) em que as palavras faladas substituem as caixas de diálogos. Enquanto o discurso direto do telejornalismo trabalha justamente com a presença maciça de provas, a fofoca-ao-vivo vive das lacunas, da informação ausente e da dúvida: fontes maiores de suas melindrosas narrativas. Nada mais estéril para o TV Fama do que um notícia comprovada e, pior!, admitida publicamente por seus personagens. Como uma sobrevida da fantasia dramatúrgica do voyeurismo televisivo, expandem a manipulação narrativa à vida extra-script daqueles rostos e corpos. Fantoches, máscaras, marionetes, os famosos se constituem de uma etérea substância verbal-pictórica, como vultos míticos brotando do bafo e da saliva das apresentadoras. O simples apertar do "Mute" no controle remoto, e o ignorar das legendas explicativas, revelam a insustentabilidade da Fama sem a palavra que a reafirme continuamente. O fenômeno da fofoca-ao-vivo transforma o próprio conteúdo das revistas de fofoca em objeto de comentários, numa curiosa sobreposição de discursos.

Para além da falsidade, a fofoca metódica é a entrega final às verdadeiras invenções. A palavra de quem conta histórias da intimidade, como um poeta teogônico, mapeia os mitos de uma constelação de semi-deuses – viventes nas palavras quentinhas de quem os conta. Numa rede de narrativas mitológicas em que a palavra engole a imagem e a projeta como vitrais de uma grande catedral ecumênica, sob a voz ruminante das orações.

Uma historiografia livre dos pequenos desejos, das minúcias da curiosidade cotidiana. Uma sub-dramaturgia às avessas, que não revela os bastidores de nada, pelo contrário, derrama fantasia sobre o espaço-fora-da-tela, numa poética fragmentada e farsesca Um cortar e colar de pequenos ícones e signos, formando sentenças narrativas de uma realidade esfacelada. Em contraposição ao lugar do olhar verídico, cultiva-se aqui o lugar da verossimilhança livre – em que o absurdo e a banalidade se enamoram em forma de legendas ralas. Espaços de culto e de pregação, onde os heróis banais tem suas vidas destrinchadas ao vivo, por "especialistas", decodificadas em sensos comuns que constituem o Olimpo efêmero da Fama. Corpos humanos se submergem num emaranhado de considerações e eventos sintéticos, onde as identidades se diluem no corpo onipresente do espetáculo. A fama deixa de pertencer ao indivíduo, é esse que passa a fazer parte de sua viscosa camada de subjetividades. Como que ligados a tubos de respiração, os famosos da TV Fama sobrevivem em frágeis incubadoras discursivas, onde a prática oracular das apresentadoras lhes garantem um destino incerto e miraculoso. Mitologia em tempo real. Os famosos passam – a Fama, permanece.

Felipe Bragança