Ser ou Não Ser, de Ernst Lubitsch

To Be or Not to Be, EUA, 1942

Estamos na Polônia em 1939 e Hitler caminha tranqüilo pela avenida para o espanto dos poloneses. O narrador intervém e voltamos alguns minutos no tempo, dois oficiais da Gestapo tentam extrair informações de uma criança sobre a possível traição de seu pai até que Hitler entra no local e descobrimos que trata-se de um ensaio de uma peça teatral e que era o coadjuvante que interpretava Hitler que irritado saiu as ruas devidamente caracterizado.Poucos filmes tem uma apresentação tão concisa, bastam duas cenas e ficamos sabendo que este é um filme onde arte e vida se imitam o tempo todo, em que as coisas nunca são o que parecem ser e a diferença entre humor e o horror é sempre tênue.

Ser ou Não Ser é uma das melhores comédias de Ernst Lubitsch e se diferencia um pouco do conjunto da sua obra por flertar com o mau gosto. Lubitsch deve ter achado que era a melhor maneira de tratar o assunto. Para Lubitsch os defeitos dos nazistas começavam por eles serem maleducados; nada mais natural que ele tratar da guerra desta forma. As mudanças já começam no elenco: no lugar de um Maurice Chevalier ou Melvyn Douglas, entra o mais grosso Jack Benny. Ele e Carole Lombard são um casal de atores teatrais famosos, e ela mantem um caso com um jovem aviador (Robert Stack) que vai para Londres logo após a invasão alemã. Lá descobre um traidor e retorna tentando impedir que os planos da resistência sejam entregues à Gestapo. Por uma série de coincidências, Benny se vê obrigado a seguidamente atuar para salvar os aliados e o próprio pescoço.

Atrás de toda sua egocêntrica Benny é um poço de insegurança, vivendo (ou acreditando viver) a sombra do talento da mulher. Sua crise após Stack abandonar a poltrona no meio do monologo do "ser ou não ser" (era a deixa para se encontrar com Lombard) é muito engraçada mas ao mesmo tempo não deixa de revelar que por baixo dos excessos de pompa, aquele homem está realmente horrorizado com a idéia de que o publico possa abandona-lo.

Boa parte de Ser ou Não Ser coloca Benny na posição de ter que atuar interpretando diversos nazistas e tendo que improvisar sob situações embaraçosas. Na primeira vez que ele é obrigado a interpretar um nazista temos certeza de que a qualquer segundo ele acabara descoberto, no fim quando ele tem que enganar uma platéia bem maior nós já temos certeza de que ele pode dar conta do serviço e é uma mostra da habilidade de Lubitsch que esta transformação é tão natural que passa despercebida.

Há uma passagem que exemplifica bem estas cenas. Jack Benny tem que interpretar o traidor que ele encontrara um pouco antes diante do coronel pelo qual ele tinha se passado. Começa a imitar o traidor e repete um comentário dele ("Em Londres, te chamam de Campo de Concentração Ehrhardt") e o alemão fica empolgado. Corta para Benny satisfeito, ele tinha conseguido prever exatamente qual seria a reação do coronel.. Em outro momento um ator coadjuvante da trupe que acaba sempre reduzido as extras tem direito a sua grande momento fazendo um monologo para chamar a atenção de toda a gestapo enquanto os demais fugiam.

Ser ou Não Ser com certeza é bastante engraçado mas por trás do humor e da aparente inconseqüência, há uma compreensão das relações humanas cada vez mais difícil de se encontrar . Diante de Lubitsch e seu universo, um cinéfilo em 2002 pode se perguntar no que reside o interesse num filme tão antiquado. De fato, é um cinema ligado a um mundo e códigos que soam estranhos hoje (Ser ou Não Ser envelheceu melhor que outros filmes do cineasta mas não deixa de ser datado), mas em momentos como o que Benny permite que Stack se despeça da esposa antes de partirem numa missão perigosa, percebe-se que o esforço mais do que vale a pena.

Filipe Furtado