Enigma do Poder, de Abel Ferrara

New Rose Hotel, EUA, 1998

Abel Ferrara é um dos tristes casos de genuínos artistas que são sistematicamente alijados das telas de cinema por nossos exibidores. Dono de uma extensa carreira nos últimos anos, seu único filme em cartaz desde Invasores de Corpos (1993) foi The Funeral/Os Chefões. Permanecem inéditos The Addiction, de 1995, e o recentemente exibido em mostras (e sem previsão de distribuição comercial) 'R Xmas. Pérolas como The Blackout e esse Enigma do Poder, infelizmente, só podem ser vistos em tela pequena.

A reclamação faz-se ainda mais justa quando se vê alguns desses filmes, pois a tela de cinema, a sala escura simplesmente amplificariam e tornariam muito mais adequado tudo que se passa em Enigma do Poder. Todos os temas característicos de Ferrara se intensificam: perdição, ambição, excesso dos sentidos e dos instintos... E entretanto tudo diminui: as ações se passam entre três atores, quase sempre entre quatro paredes (como em Naked Eyes/Olhos de Serpente), e em imagens de vídeo de cores saturadas e com parca definição, que convergem e dão toda a dimensão da confusão que passa na cabeça de X., o personagem interpretado por Willem DaFoe.

Adaptado do conto "The New Rose Hotel" de William Gibson, Enigma do Poder é a chance de Ferrara alargar seu repertório de conspirações (elas tornam-se mundiais entre grandes corporações numa luta milionária por patentes), suas localidades (Viena, Japão, Marrakesh), até penetrar num pantanoso terreno de doenças de vírus industrialmente fabricados que bem poderia evocar William Burroughs. Mas de Burroughs se mantém somente a lógica: tudo flui, tudo se movimenta segundo redes imprevisíveis, onde o tecido do poder domina – ou pretende dominar – tudo e onde uma força lançada em tal direção pode inverter-se e seguir em sentido contrário, ferindo seu próprio emissor. Paradoxalmente, tudo vive no íntimo: todos os encadeamentos de ações só nos são dados conhecer da mesma forma que aos personagens: pelo ouvir dizer, pelos telefones, pelas onipresentes imagens de vídeo egressas dos quatro cantos do planeta, por todos os gadjets audiovisuais que a informática proporciona. Não é à toa que é uma câmera de vigilância num shopping que nos informa de uma importante morte, ou que uma câmera de investigação nos mostra as únicas imagens que temos do motor da trama do filme, o geneticista japonês Hiroshi, ou que uma transmissão de teleconferência nos informa de um ataque bactericida que dizima uma série de cientistas em Marrakesh. Em Ferrara conta menos a multiplicação dos artifícios imagéticos – mais e mais freqüente num cinema que novamente tende para o barroco – do que o experimento com novos registros de imagem. Imagem de vigilância, de espionagem industrial, de comunicação empresarial... o mundo faz seu próprio cinema, como já dizia Deleuze em Conversações (mas não exatamente nesse sentido). E esses novos registros assumem uma dimensão tão importante quanto mais a película de 35mm não serve para nos contar nada além do íntimo dos personagens – que, mesmo sendo a coisa mais importante do filme, está sempre submetido às injunções daquilo que acontece exteriormente. Esse exterior absoluto, o fora-de-campo, relegado eternamente à desaparição no cinema, aqui ganha sua própria força, uma força do não-saber, da confusão proporcionada por esse não-saber.

New Rose Hotel é a história de um trato. Ou de muitos. Fox faz um trato com X para Sandi seduzir Hiroshi, X faz um trato com Sandi para terem um futuro juntos, Fox faz um trato com a corporação Hosaka, Sandi faz um trato secreto com a corporação alemã Maas, e assim por diante. Claro, um trato sempre exclui o outro. O filme começa num prostíbulo de luxo, onde Madame Rosa (Annabella Sciorra numa pequena participação) tenta satisfazer Fox (Christopher Walken), que está em busca de "uma chupada perfeita". Pensamos inicialmente que é para ele, mas o erro é redondo. Tudo em que ele pensa é em Hiroshi, tornado algo entre uma obsessão (é o possível fruto de muito dinheiro) e uma idolatria (há de fato uma devoção ao cientista que escapa ao amor pelo golpe). Rosa aponta para uma moça (Asia Argento) que, ao se apresentar para cantar uma música, autointitula-se em italiano como uma "menininha vinda da Itália". Para todos os efeitos, Sandi será mesmo uma menininha, sexy e vacilante quando, no dia seguinte, depois de uma noite com X (Willem Dafoe), conhecerá minuciosamente o plano de Fox. Hiroshi, casado com uma alemã gélida, quase marcial, deve ser seduzido e convencido a abandonar a família e a corporação Maas, para onde trabalha, a fim de viajar ao Marrocos com a nova amante para trabalhar em um laboratório inteiro à sua disposição patrocinado pela companhia adversária Hosaka.

Só que o jogo de gato e rato é infinito, circula tanto quanto as imagens no filme. Hiroshi deve trair a Maas, X deve trair Fox, Sandi pode inverter todo o jogo. X deve seduzir Sandi, que deve seduzir Hiroshi, mas não é certo que isso vá acontecer. Sempre um fio da cadeia pode pender e dar relevo completamente diferente à história. Em todo o caso, jamais saberemos de alguma coisa de antemão. A esse respeito, Enigma do Poder é completamente opaco, respeitando o não-saber dos personagens e fazendo dele o nosso próprio não-saber. De fato, o espectador não tem qualquer informação a mais que os personagens. Aos poucos, a narrativa centra-se em X, a parte desprivilegiada do trato (Sandi tem a sedução, Fox tem o controle), e na paixão obsessiva que ele passa a ter por Sandi. É claro que esse elemento, indesejado no começo, mexerá com tudo (ou tudo já estava predestinado a dar errado? Jamais saberemos...), e os protagonistas seguirão caminhos totalmente diferentes.

Resta-nos apenas X, que foge de uma contra-conspiração e entra na janela de um hotel, numa viela suja. Esse hotel chama-se New Rose. Logo, trata-se do centro da trama. O que faz X no hotel? Se esconde dos inimigos? Não. Com um revólver na mão, estirado no chão, ele se lembra. Surgem algumas imagens que já vimos no filme, algumas outras que não apareceram antes. Mas, seja qual for o grau de ineditismo delas, alguma coisa se faz presente que muda completamente o significado delas. Vinte minutos antes de terminar o filme, faz-se uma fissura, cria-se uma cesura na narrativa. Como escreveu Juliana Fausto sobre Mulholland Drive, as duas partes se intercomunicam, uma podendo ser o pesadelo da outra. Só que em New Rose Hotel, a segunda parte não tem função de neutralizar a primeira, mas antes de tudo de amplificá-la, de perspectivá-la. Em vinte minutos, estamos dentro da cabeça de X, que entretanto não vive o presente. É raro no cinema que a imagem consiga realmente atingir um estatuto de passado puro. O flashback vale antes de tudo como elemento informativo, não como o próprio peso da lembrança. Mas nesse hotel chamado New Rose, à beira do abismo, X é incapaz de não se deixar tomar por uma infinidade de lembranças dos acontecimentos recentes, e esse fluxo de imagens não tem o caráter de elucidação. X não procura o que houve de errado no plano, o momento em que conseguiria ter percebido algum índice de traição. Não: as lembranças são mais fortes que ele, elas o dominam e passam por sua mente quase desordenadamente. Com um centro, entretanto: Sandi: é ela que aparecerá, deusa sedutora como cantora sob uma luz vermelha na boate, ingênua na conversa que dará origem ao trato, executiva sexy na preparação para o golpe, ou como aparição furtiva em contraluz numa roupa preta, última imagem do filme e a primeira vez em que X a viu. Esse grau de loucura dos sentidos, esse peso da memória que irrompe à Bergson/Deleuze no presente e nos faz vivê-lo como passado puro, encontra no espectador o correlato de Sandy em X: Asia Argento. Atriz-revelação logo tornada diva, ela nos assombra até muito depois de ter visto o filme, ela se transforma em presença viscosa, impossível de segurar ou de fixar, e ainda assim jamais fugindo da cabeça. Menos prata do que mercúrio. Menos a fixidez do presente real do que a incerteza de um fluxo de lembranças, da ebriedade, da cólera, Asia Argento é em New Rose Hotel a perfeita metáfora do filme: um mistério jamais completamente revelado.

Ruy Gardnier