À sombra de nossas mais
lacrimejantes memórias


É fim de participação da Alessandra, a Leka, no Big Brother Brasil. Mas isso não significa seu fim imediato de televisão. Ela deve seguir o percurso ritual que fazem os candidatos eliminados ao prêmio de R$500.000: no começo da noite de domingo, apresentar-se mais uma vez à nação espectadora, só que dessa vez no programa Domingão do Faustão, como uma forte arma de audiência contra a programação domincal do SBT. Conhece-se o tipo de utilização que se fará de Leka: gravações de todos os familiares dizendo o quanto a amam, dos amigos, reencontros com uma amiga de programa... Enfim: tudo para fazer emocionar a pobre ex-anônima e levá-la às lágrimas em frente ao Brasil inteiro.

A máquina de choradeiras é implacável, mas Alessandra parece impassível, quase uma pedra. Teria o desgastante cotidiano de moradora da casa panóptica do Big Brother preparado a moça para todas as espécies de emoções televisuais? Ela exibe um rosto de empresária obstinada: firme, charmosa, imponente, olhos fixos e poucos sinais perceptíveis de emoção, a não ser o belo sorriso que a moça expõe. Passa o testemunho dos pais, da irmã, e nada de Leka chorar. Quando um ex-namorado dá um depoimento bastante emotivo, demonstrando muito sentimento para com a moça, imaginamos que o ritual das lágrimas será imediato. Pura impressão. Leka mantém-se, mostra o forte jogo de cintura de quase finalista do BBB. Mas basta a primeira imagem do avô emocionado para que toda a muralha emocional seja demolida: Alessandra se esvai em lágrimas, vertidas entretanto com muito mais graça do que os choramingos comuns nesse programa ou em geral na televisão (a se lembrar dos choros patéticos de Gwyneth Paltrow ou de Halle Berry nos últimos Oscars).

Mas esse era unicamente o primeiro prato do que estaria por vir. Logo em seguida, é a vez de devassar a carreira de um artista, trazer os relatos dos amigos e familiares, dos colegas que trabalharam em conjunto, etc. Nesse "Retrato da Intimidade", "Arquivo Confidencial" ou seja qual for o título – todos no fundo se equivalem –, a máquina de choradeiras recomeça, e o convidado-vítima da vez é Rogério Cardoso, tornado famoso nos últimos anos como o personagem Rolando Lero, o puxa-saco da Escolinha do Professor Raimundo. Começa um pequeno histórico de sua carreira: uma publicidade de carros da década de 60, ainda em preto-e-branco, denunciava um jovem ator em começo de carreira. Em seguida, como se trinta anos passassem num instante, imagens já como comediante nos anos 80, para logo depois arrematar como personagem sob a tutela de Chico Anísio tornado Professor Raimundo. O primeiro round foi ganho: Rogério Cardoso mostra-se nostálgico, mas as imagens do passado não parecem tão devastadoras para ele. O segundo round: grandes amigos do passado, que não se vêem há anos, vêm prestar testemunho da grande amizade, ou a professora de química conta causos sobre seus anos de calças curtas. Nada parece afetar o comediante. Terceiro round: a família. Duas esposas, os filhos, os netinhos, nada parece tirar o generoso sorriso do semblante desse homem. Nessa hora, Fausto Silva revela que há só mais uma imagem, de alguém "que estava faltando". Entra o depoimento de uma neta jovem, muito bonita, lá para os seus vinte anos. Ela se explica com naturalidade: eram os momentos de adolescente rebelde, e houve desentendimentos com o vovô, que fizeram com que os dois ficassem anos sem se falar, mas a admiração persistia. Rogério Cardoso, até então muito firme e senhor de si, tomba o rosto, os olhos avermelhecem e o choro finalmente vem.

Mais do que a homenagem ao artista, o que esses quadros dominicais verdadeiramente se propõem como entretenimento é um verdadeiro ritual de submissões que culmina na lágrima íntima vertida em frente de milhões de espectadores ligados e mais ávidos por gotas de lágrima do que o solo árido do sertão nordestino por gotas de chuva. Tendo aprendido a lição de que em televisão nada de novo se cria e tudo se adapta, qual seriam os pais e avós desses programas de veiculação massiva da extrema intimidade alheia que povoa não só nossa produção televisiva de domingo (com Fausto Silva ou Gugu Liberato), mas a grade diária de toda a programação de tv nacional (Ratinho, João Kléber, Marcos Mion, chegando aos níveis de abjeção máxima de Linha Direta)?

Do ponto de vista do em-si, ou seja, daquilo que não é espetáculo e é experimentado diretamente, sem mediação, temos os rituais sociais de sofrimento das festas e feriados, quando a comunidade se reúne e eventualmente algum de seus membros expiam suas frustrações ou exibem os fracassos alheios. A literatura antropológica está cheia disso, e até os dias de hoje os natais das classes médias (ou o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos) servem unicamente para reunir a família e o mal-estar irmanar a todos. Mas isso nos importa pouco: do em-si ao para-si, ou seja, da vida que vivemos à vida separada, mediada por imagens, as coisas mudam de forma que uma pode muito pouco explicar a outra.

Quando se trata de falar da sensação mediada, do ponto de vista do espetáculo, do para-si, podemos achar que começa justamente com a origem do espetáculo teatral, ou seja, com a tragédia grega e com os destinos de um Édipo ou uma Antígona sendo tornadas públicas. Mas aí resta uma associação duvidosa: as tragédias gregas eram justamente os impasses de individuos presos entre dos tipos de registros de lei, uma familiar e outra societária. Dessa forma, era obrigatório que a cena se delineasse na ágora, na praça pública. A exposição pública da tragédia íntima acontecerá mesmo somente a partir do drama burguês dos séculos XVIII e XIX, de origem sentimental e romântica, da qual Dumas Filho e sua A Dama das Camélias é o representante mais célebre.

No cinema, foi inevitável passar por isso. Para se tornar "arte", um segmento da classe cinematográfica apostou na transposição tal qual do "teatro nobre" da época para o cinema. Nasce o cinema sério com retoques realistas e um psicologismo extremado, encarnado pela figura de William Wyler e de pobre Bette Davis (A Malvada), com uma acentuada predileção pelos "rituais de humilhação" de que fala Antoine de Baecque num artigo sobre o cineasta1. Mas se em Wyler o que mais impressiona é a crueldade e o desprezo que demonstra para com seus personagens, nesses programas televisivos todos esses rituais de sadismo explícito são encarados como uma grande homenagem, como com Rogério Cardoso, ou como o reencontro com toda a família em rede nacional, no caso de Leka. Em todo o caso, o que tanto esses filmes tentam quanto essa programação televisiva de retratos da intimidade consegue é incrível: fazer do olhinho na fechadura uma prática não só lícita e ingênua, mas acima de tudo uma ação desejável.

Ruy Gardnier


"Cruauté de Wyler", in Cahiers du Cinéma nº549, setembro de 2000.