A Humanidade, de Bruno Dumont

L'Humanité, França, 1999

Somos informados sobre um crime logo no início de A Humanidade. Uma menina de 11 anos foi assassinada, mas não temos a informação de quem a matou. A única pista é dada na primeira cena, um plano aberto de um descampado, no fundo do qual passa um homem, sem sabermos de quem se trata. Essa falta de certeza será mantida até o final. Embora não sejamos conduzidos por uma narrativa clássica policial, na qual os caminhos da coleta de pistas ocupam o papel principal, a revelação da identidade do assassino é de fundamental importância. Chega a levar o filme a dar um salto em sua estatura e alcance. Isso não significa que, antes do desvendar do mistério, somos mantidos no escuro. Luzes são jogadas sobre o meio em que a ação quase sem ações é desenvolvida.

Que meio é esse? Uma cidadezinha francesa modorrenta, nas região de Flandres, próxima à Inglaterra, onde não há muito para ser feito. A passagem de um veículo em alta velocidade pelas ruas desertas constitui um evento nesse cenário tedioso. O ambiente aparentemente harmonioso e pacífico, no entanto, carrega um peso no ar compatível com o crime investigado. Há algo de sombrio naquela região cercada de natureza por todos os lados. Os impulsos violentos dos personagens começam a ser lentamente projetados na tela enquanto o protagonista ajuda na solução do caso. Tal sujeito é um policial abobalhado. Está apaixonado pela namorada do amigo, carrega o fardo de uma perda traumática e é afetado pela morte da menina. Nada mais sabemos dele.

O enfoque se fecha nesses três tipos: o policial, seu amigo e a namorada deste. Diante da falta do que fazer e do que falar, o protagonista apenas trabalha, tem umas conversas fiadas com a namorada do amigo e acompanha o casal em passeios bocós. É expressiva a cena em que, diante do mar, com a Inglaterra ao fundo, eles mantém o olhar pedido. Estão presos em uma condição da qual não têm como sair, escravos de si mesmos e de suas naturezas. Também são sintomáticas as cenas de sexo entre o amigo e a namorada. Só naquela atividade física eles encontram escape para seus impulsos. Quase sorumbáticos, os personagens estão prestes a explodir. Seja pela violência, pelas lágrimas ou pelo sexo.

A Humanidade é o segundo longa-metragem de Bruno Dummont. Representa uma evolução em relação a A Vida de Jesus, embora seja quase um complemento àquele, também ambientado em uma cidadezinha que, em sua excessiva tranquilidade, estimula os instintos obscuros dos seres. O diretor é preciso ao fazer o ambiente dos dois filmes invadir a tela e a nós mesmos. Somos tomados por seu tédio, por seu peso e por seu vazio, a ponto daquilo ficar quase insuportável. E não é apenas o ritmo devegar quase parando que é captado pela narrativa não menos e pertinentemente arrastada. A câmera também reproduz o ponto de vista do policial palerma ao olhar para as imperfeições das pessoas ao seu redor (a mão da mãe, o pescoço do chefe). Isso mesmo: é com imperfeições que estamos lidando aqui.

E sem maquiagem. Não há nenhum efeito nas imagens, nenhum enfeite no enquadramento, nenhuma firula na montagem, nenhuma sustentação de climas pela música, a não ser a de um orgão tocado em cena. Esse rigor franciscano, confundido com excesso (no caso da metragem), em tudo se diferencia, por exemplo, dos frutos do Dogma 95. Em vez de um estilo que berra aos olhos, temos o estilo sussurante. O suficiente para criar um universo por inteiro. É quase impossível, como sempre se faz quando se escreve sobre Dummont, não citar Robert Bresson. Não apenas pela composição, mas pelo esboço da vida. Estamos em um mundo em que há muitas questões sem soluções. O homem como impasse. A vida como uma experiência sem um sentido dado de antemão. É preciso buscá-la. E a procura é tortuosa.

Um cinema de imagens que falam e sons que nos fzem enxergar. Ora com ruídos locais (de pássaros, do vento, do mar, de galos, de uma velha ofegante), as cenas prescindem de palavras. Quando elas são ditas, não dizem muita coisa. Porque esta é uma obra rompida com os psicologismos verbalizados e estruturada exclusivamente sobre a exteriorização dos personagens por meio de expressões faciais, sonoras e corporais. Nada será entregue em diálogos. Apenas em gestos, olhares, respirações, gemidos e choros. Essa busca pela comunicação visual, nem sempre cristalina em suas evidências, abre o leque de abordagens. Melhor para o filme, ótimo para nós. Fechar portas em vez de mantê-las abertas, ou semi-cerradas, seria banalizar várias questões ali tocadas. Ou uma grande questão, se assim quiserem: a questão do homem, da vida, da existência em geral. Esse é um cinema maiúsculo em suas ambições. Quer o total pelos detalhes.

A escolha de um título tão simples quanto extenso em sua significação e a opção pela atividade policial do protagonista são achados dramáticos de raro poder símbólico e de síntese. No papel de investigador, o personagem, mais que o crime, investiga seu mundo. Não a si próprio, nem sua cidade, mas a espécie. A humanidade. Naquela cidade onde é rarefeito o peso da cultura humanista, com sua repressora chamada à ordem, os instintos bárbaros estão à flor da pele. Nosso herói de superfície quase letárgica tem essa consciência. Acaricia um traficante marroquino e beija um outro homem ao final por vislumbrar a sombra existente por trás do projeto iluminista. Sabe como sua espécie não nasceu para a civilização e a todo momento pode sair do controle. Acima de tudo, expressa-se pelo toque. Comunica-se com o corpo. Dummont escancara essa radiografia do animal-homem ao enquadrar em close a vagina da namorada do amigo do policial. Nada a define melhor que a entrega à sexualidade. O sexo é mostrado como rompimento com a cultura , mergulho nos instintos, prova de amor e mobilizador da violência. A vagina é, portanto, sua alma. Um ser sensorial, não intelectual.

E qual o papel da arte nisso tudo? Contraponto à violência incontrolável da humanidade e vacina contra a ameaça à civilização buscada pela cultura, a arte cumpre seu papel domesticador do homem-selvagem por meio do quadro pintado pelo avô do herói: justamente a imagem de uma criança, metáfora idílica de uma pureza idealizada, mas sempre contestada por atos perversos. A criança do quadro representa um projeto em oposição à criança morta no início do filme, Dummont é irônico nessa obra aparentemente pessimista. Pois o mais civilizado dos personagens, afinal, é justamente o protagonizista com lerdeza mental. Está nele o equilíbrio entre o homem bárbaro e o homem domesticado. E sua tarefa como policial é menos a de punir criminosos e mais de lembrar a necessidade de não se ultapassar certos limites. A Humanidade não deixa de ser um diagnóstico da crise do humanismo sem deixar de ser humanista em seu enfoque. Só não fica a fazer – e aí está sua grandeza – propaganda disso.

Cléber Eduardo