Brasil Documenta:
notas, comentários, especulações


Realizado e promovido pelo segundo ano consecutivo, o auto-intitulado "maior fórum sobre documentários da América Latina" reuniu em 10 mesas redondas e uma pequena panorâmica de filmes, um recorte do que melhor representaria a produção brasileira desses tão entre-aspas documentários. Na onda da ebulição produtiva, associada diretamente à facilidade do trabalho em vídeo digital, e ao avanço do documentário no espaço cada vez mais elitizado do mercado exibidor brasileiro, o Brasil Documenta surge mais carregado pela maré do que capitaneando qualquer tipo de movimentação. Fragmentado e disperso, o evento merece e ganha aqui uma pequena listas de observações, em pílulas. Não tanto pela representatividade específica de suas discussões internas, mas pelo modo como elas se articulam em torno do modelo de produção e veiculação levado adiante pelo canal GNT/Rede Globo, referência brasileira na veiculação televisiva do super-gênero cinematográfico em que se tornou o cinema documental. No choque entre discussões estéticas e algumas vagas elucubrações sobre o mercado e o futuro audiovisual brasileiro, algumas faíscas se fazem relevantes:

1. Personagens maravilhosos X estética vaga: a ausência do recorte

Não seria impossível acusar o evento de ser uma "farsa". De fato, a presença maciça de estrelas da criação cinematográfica mundial e dos escorregadios executivos de TV (brasileiros e estrangeiros) não garante ao Brasil Documenta o trunfo fácil da consistência. Como num parco trabalho de criação dramatúrgica documental, os organizadores do evento praticam se amuletam em "grandes personagens" e parecem se esquecer do evento em si mesmo. Imparcial, sem rosto, a curadoria e a organização conceitual das mesas redondas parece seguir uma certa cartilha antiquada do equilíbrio imparcial, da diversidade comportada que ao invés de ampliar as questões, as limitam em pequenas partículas fragmentadas. O Brasil Documenta 2002 não conseguiu, diante de um potencial de personagens magníficos, construir aquilo que faria dele mais do que um aglomerado de valores, mas um espaço de distensão verdadeira de idéias e parcerias. As mesas redondas (dispostas como depoimentos desarticulados), a retrospectiva de filmes (frágil em sua tentativa de abarcar o "mais relevante") não conseguem dar ao Brasil Documenta 2002 a cara de que necessita para ser, além de o "maior", um importante espaço de ebulição criativa que vá além da auto-promocional "oficina para jovens talentos"... Talvez abdicando da totalidade, o fórum pudesse exercitar a prática do recorte conceitual, da angulação e da criação, como formas de fugir da mesmice. Um pouco mais de coragem seria essencial. Um eixo central de conceituação, um tema em recorte, um cineasta em retrospectiva, um olhar. Algo que fizesse do Brasil Documenta 2003 algo tão limitado, quanto único. A amplidão é prima sedutora da banalidade.

2. Reality Show X Documentário: o jogo da "realidade", a realidade do "jogo"

Como o próprio tema propunha, o debate se resumiu a um expansivo compêndio das diferenças e semelhanças entre a grife dos reality shows e a dos documentários. Porém, a dificuldade recorrente de se ter claro do que consistiria exatamente um Documentário, deixou clara a impossibilidade da discussão, e a inoperância que os termos "documentário" e "reality show" têm para descrever os modos com que tais práticas dramatúrgicas tem para transcrever uma realidade. Como o pragmático Nick Curvin – diretor do asqueroso programa Human Zoo – lembrou: "Toda essa discussão aqui só está acontecendo porque alguém resolveu dar o nome desse formato tão complexo de ‘reality show’..." Essa frase desinteressada de Curvin talvez tenha sido a mais interessante em todo o debate. A suspensão temática intuída por Curvin, apontou para a precária forma com que os assessores de marketing e programação parecem querer escalonar as maneiras com que a televisão tem de construir dramaturgia e entretenimento. E também o modo como teóricos e críticos tem, geral, caído nessa conceituação precária. Se a princípio pode funcionar como um desânimo ou um desinteresse, a frase de Curvin tem a qualidade de conseguir constranger a falsa questão levantada e dar espaço a uma outra, central: de que formas, estéticas-éticas tem tratado a televisão quando na constituição de seus diferentes módulos de discurso e dramaturgia? Apenas expandindo a observação para os entremeios de linguagem televisiva que circulam desde a novela das 8 até o Jornal Nacional, as considerações estéticas poderão circular sem que sejam impedidas por gêneros rígidos. É preciso dissociar os Formatos Televisivos de seus Gêneros Dramáticos – drama, comédia, suspense – e perceber que o modo de percepção de uma dada linguagem não se restringe univocamente ao formato de sua produção. Um espetáculo como Casa dos Artistas tem muito mais parentesco com a Chanchada brasileira dos anos 50 do que com o Big Brother, assim como o Hipertensão funciona como um espetáculo físico de ação, ou o Acorrentados é um típico exercício de comédia romântica. Ao lado do super-gênero documental, o conceito do supergênero dos reality shows não explica muito mais do que um formato de produção e veiculação, que muito pouco delimita seus resultados estéticos. Human Zoo, por exemplo, de Nick Curvin, é um enfastiante programa sobre o comportamento de símios, parente próximo dos programas do Animal Planet, e totalmente diverso da crônica burguesa de Os Osbournes (MTV). Dinâmica em relação ao formato utilizado, a percepção do público em relação às imagens não será nunca compartimentada entre reality shows e telenovelas (por exemplo...).. Das notícias romanceadas do Jornal Nacional aos romances encenados da novela das 8, a diferença perceptiva se dará num âmbito muito mais imbricado esteticamente do que as premissas que os formatos tentam delimitar. Estará no modo como o público será convidado ou não a participar do jogo criativo daquelas narrativas, a diferenciação central entre os mesmos. E aqui não se trata da interatividade da múltipla-escolha (Você Decide), mas do estatuto imagético com que cada programa trata de suas seduções-atrações para com o público. Um recorte central pode ser estabelecido como modelo: os jogos de Realidade x a realidade dos Jogos. O espetáculos narrativos filiados ao desvelamento, captura da Realidade x os exercícios dramatúrgicos que fazem da própria fissura criativa parte de sua forma de constituir a realidade dos jogos. A realidade essencial x o jogo de máscaras. O olhar sobre o Verdadeiro x o Verdadeiro do Olhar. Nessa questão, o jogo de exploração teatral e farsesca da 1a Edição de Casa dos Artistas está muito mais próxima, e em diálogo transversal, com o cinema do imaginário (da representação do eu na vida cotidiana) de Eduardo Coutinho, do que qualquer retrato voyeur das banalidades do cotidiano ou o retorno glorioso da ‘moral da história’, reinventados pela dinâmica do Big Brother. Nuns (Casa dos Artistas, 1a Edição), a realidade se faz no sentimento criativo da "imagem-jogo", noutros (Big Brother Brasil) o jogo serve como mera ferramenta narrativa para que a "imagem em jogo" seja capturada.

3. TV Globo no mundo da imaginação: considerações formais para um mundo relevante

Mas a discussão começa ainda antes. No próprio mapeamento estatutário das representações televisivas e na institucionalização de um certo módulo de conhecimento como eixo central do saber audiovisual brasileiro. A cisão entre informação (saber) e entretenimento ainda precisa ser ultrapassada. Para esse debate, cito aqui uma pergunta proferida por estudante, no segundo dia do Brasil Documenta:

"Quando é que um acontecimento produzido pela programação Global ganha estatuto de realidade e pode entrar na grade do Jornal Nacional, virar notícia?"

Silêncio momentâneo...resposta:

"Quando ele tiver a relevância necessária, quando ele ultrapassar a ficção e ganhar estatuto de acontecimento nacional".

A resposta é de Luis Gleiser (responsável pelo Núcleo de Produção do Big Brotar Brasil, em especial pela inserção do produto BBB nos espaços de promoção das Organizações Globo). Resposta primária? Certamente. Inútil? Nem tanto. Talvez através de uma observação particular de sua articulação, seja possível destacar alguns conceitos centrais que permeiam tamanha pretensão:

Relevância, Necessidade, Ficção e Fato; esses quatro conceitos, arrumados como ídolos, dão ao discurso de Gleiser/Rede Globo ao mesmo tempo seu status de pompa e autoridade e a aparência patética de sua inoperância.

O que se mostra impossível e insustentável é a premissa central da parâmetro proposto: a percepção direta do ponto em que se daria a ruptura entre o espetáculo televisivo e o fato social. A relevância citada por Gleiser passa a ser, de forma inequívoca, fruto do imaginário avaliativo do editor ou do repórter. A percepção limitada do olhar editorial seria o agente que tocaria o ombro da fantasia com sua espada em riste e a concederia o título da nobreza factual. Mas qual seria a diferença essencial entre o imaginário do repórter e o imaginário artístico dos criadores de audiovisual (por exemplo na realização autoral de documentários para TV como nos antigos produtos do Globo Repórter: anos 70)? Seria o imaginário Global pós-60 minutes treinado, ou capaz o suficiente de sintetizar aquilo que se passa no imaginário mesmo da população e transfigurá-lo em mesmidade objetiva?

Luis Gleiser demonstra em seu discurso corporativo, a própria impossibilidade do telejornalismo se sustentar nas próprias tamancas finas das "relevâncias". Delegar ao imaginário do editor chefe do Jornal Nacional esse papel de avaliar as "mesmidades relevantes" é uma atitude de puro despotismo (não pelo recorte, necessário), mas por suas atribuições constituídas na estética unívoca do dirigismo narrativo – fundado no estatuto da transcrição direta das ditas relevâncias comuns.

Inimiga direta de uma verdadeira constituição democrática do imaginário audiovisual brasileiro, as "relevâncias" Globais são o sinal inequívoco do perigoso mundo da imaginação em que vivem seus editores e executivos. Quando o Kleber Bambam vira notícia nacional, a incapacidade do telejornalismo Global de assumir a cooptação dramatúrgica-política desse personagem, é uma ameaça direta à liberdade crítica do espectador. E não há aqui a defesa da perigosa pretensão às notícias de "interesse público" – mas um esboço mais de dentro: da crise total e da falência telejornalística que ainda se quer como eixo de um discurso sem corpo. A informação telejornalística é a mais falsa e a mais mentirosa de todas as imagens – nascida da grota profunda da pretensão cruel à imparcialidade – relida, agora, como "fatos de interesse do público". Como se sua "importância" ou "interesse" não se desse justamente (justo aí) nesse movimento de transmutação em notícia.

4. Mercado e formato: a emergência das "boas histórias"

Mas desde sempre?

A ditadura das boas histórias é uma das marcas mais profundas da virada na produção televisiva brasileira sofreu nos últimos anos da década de 70 e durante os anos 80. Sinal do fortalecimento estratégico da TV para a manutenção da ordem social, os telejornais e documentários televisivos foram gradualmente articulados em torno de um modelo editorial centrado no conteúdo, submetidos a uma ideologia estética corporativista e consensual.

A ebulição vista hoje no baú de invenções dos reality shows, era também marca de toda uma linhagem de criações televisivas voltadas para uma experimentação constante das formas de percepção do cotidiano brasileiro (ver especial É Tudo Verdade: Globo Repórter). De alguma forma, porém, por não se tratar de um gênero recluso ao "entretenimento" (caso ainda hoje dos reality shows), o filme-reportagem dos anos 70, parecia insinuar-se de forma perigosa sobre os estatutos telejornalísticos da informação sem-autor. Num movimento direto de exclusão, os demais tipos de conhecimento foram relegados a um segundo grau de importância na televisão brasileira (com consonância em muitas outras TVs do mundo). Para essa nova prática de apresentação unívoca do conhecimento (seguindo a cartilha do 60 minutes e do telejornalismo norte-americano de então), somente a informação institucionalizada teria espaço para a autêntica representação de um conhecimento sobre o real.

Num sistema de produção em que o mínimo de risco já representa um porém, criações audiovisuais como as de Coutinho, Maysles, Wiseman, Keuken, Capovilla tornaram-se impraticáveis. Para o mercado como hoje se estabelece, a prática estética televisiva se redime a um plano monótono e ferramental, como serva eficaz de um objetivo estabelecido a priori. Todo e qualquer tipo de experimentação formal foi enclausurada no espaço do "entretenimento televisivo".

Um programa como o Globo Repórter dos últimos 20 anos se funda justamente na crença da estética consensual, impessoal, capaz de apenas dar espaço para que o conteúdo compareça à imagem. Na esterilidade repetitiva do linguajar televisivo padronizado, o discurso é submetido à técnica da descrição de fatos – perde seu lugar de constituição e evento em si mesmo. Para o mercado do formato único, a forma do discurso não existe. A emergência das boas histórias ou dos personagens cativantes são a perigosa prática que ameaça e atrofia a criação televisiva, limitando os modos de percepção dos eventos. Quando Sylvia Saião, editora-chefe do Globo Repórter diz que a Ética que importa em seu trabalho consiste em refletir sobre a relevância ou não de uma imagem chocante na narração de uma história, fica clara a falência das pretensões jornalísticas do não-espetáculo.

Todo os criadores de audiovisual fazem sim espetáculos, fazem sim dramaturgia, fazem sim invenção. Apenas no modo de libertação expressiva com que essas obras se lançarão à interação com o espectador, é que estará a diferença. Não pode haver uma "boa consciência", ou bons modos do editor chefe, a ditar aquilo que pode (ou não) ser mostrado. A Ética não se resume a um pré-conceito moral, mas é um conjunto de práticas de onde uma obra emerge criativamente – através de um exercício ético; e não submetido à ela como um superego criativo. Somente na intercalação dessas diferentes forças éticas, desses discursos dissonantes (e livres do dever da síntese) será possível uma invenção imagética ampla de nosso cotidiano e de nossos desejos. Éticas concretizadas em vida de imagens, despretensiosamente poderosas, e poderosas em sua despretensão.

5. Maysles X Coutinho: como fazer um documentário?

Certamente as voltas na espiral já estão além e se há retorno a esse ponto, diga-se que o ponto já não é mais o mesmo: porque se já é dada a perda da crença na captura e/ou representação direta de uma verdade, quais as formas de transcrever essa ironia saudável aos olhos do espectador? Pois sim, já que estamos reunidos como estetas que somos, não podem nos ser suficientes as consciências. Trata-se de um desafio reinventado de estética, tratar da descrença numa realidade direta sem fazer desse distanciamento o conteúdo monótono de nossas imagens.

Nesse movimento, Albert Maysles e Eduardo Coutinho são personagens paradigmáticos. Presentes no Debate sobre Estética e Mercado, os dois mestres logo descartam a temática proposta e partem para um emocionante duelo de esgrima, de argumentos finos. Golpes discretos. Um momento de rara beleza.

Para quê fazer um documentário?

Para o veterano cineasta Albert Maysles (diretor dos marcantes Gimme Shelter e Grey Gardens) a resposta é direta: Para encontrar a realidade das pessoas. O cinema documentário de Albert e seu irmão David Maysles só tem sentido se caracterizado pela aventura e pela descoberta."The real thing", sublinha Maysles. Descolada de uma verdade única moral, essa "coisa real" seria um retrato efêmero e íntimo da própria essência de seus personagens, uma verdade íntima capturada pela câmera e somente por ela. O cinema documental seria justamente não aquele que apresenta uma verdade ditada em off ou uma tese pré-fabricada, mas aquele em que a emergência da "coisa real" se faria presente e eternizada pelo fotograma. Não uma Verdade Moral, mas a Vida Verdadeira, cotidiana de seus personagens.

Quando Coutinho interrompe, dizendo que o quê justamente Não interessa a seu cinema é "encontrar a realidade" de seus personagens, mas as suas histórias imaginárias, Maysles se agita na cadeira: "I don’t get it! Porque não trabalhar com atores?" – pergunta.

Coutinho aprofunda-se em sua proposta: Para o diretor de Santo Forte e Edifício Máster, somente na participação ativa do documentarista poderia ser criada uma efemeridade autêntica em forma de filme. Coutinho cita a obra de Erwing Goffman, a Representação do Eu na Vida Cotidiana como um referencial central de sua postura: Não há um eu verdadeiro senão aquele representado diante de diversas situações sociais. Para Coutinho a situação-filme tem suas particularidades que impediriam qualquer pretensão de que a "coisa real" fosse "capturada". Coutinho se interessa pelo jogo. E provoca: Para ele o melhor filme de Albert e David Maysles é justamente Grey Gardens: "Por ser o único filme em que os irmãos Maysles se deixam mostrar na tela através de um reflexo no espelho".

Mayles se incomoda. Se ajeita na cadeira. Retruca lembrando que isso foi feito em função de uma demanda direta das personagens, que insistiam em falar e empurrar os cineastas: "Consideramos que seria falso não dar ao público a informação direta dessa atitude da personagem". Maysles vai mais fundo: "I hate the work of Michael Moore!" Para Albert Maysles, o cineasta norte-americano responsável por polêmicos filmes-denúncia (o premiado Bowling for Columbine, por exemplo) é um "ditador" e um "covarde", que se faz personagem de seus próprios filmes para manipular seus personagens e faze-los servir à sua tese pré-estabelecida. "Moore não tem a coragem de se aventurar".

Coutinho recebe a provocação indireta com cautela: delimita dois tipos básicos de documentários surgidos na TV: o telejornalismo "imparcial" e os filmes em que o repórter/diretor se mostra como uma estrela. A diferença é que esse segundo modelo sempre apostaria num certo "heroísmo narcisista" do diretor/repórter, o que, definitivamente, não seria o objetivo de seu cinema. Coutinho lembra que a interação direta de seus filmes não são manipulações morais ou comprovações de teses – seu cinema funciona justamente para que os personagens e o diretor possam se lançar livremente na efemeridade do encontro. A aventura de Coutinho seria por dentro do imaginário verbalizado dos personagens, e não numa suposta "realidade direta" das imagens. Coutinho lembra que permite que seus personagens escolham onde e como querem dar seus depoimentos e não demanda de seus atores nada além de uma boa história, "seja ela mentira ou verdade". "Pois a sua mentira será sempre um valor mais íntimo daquela pessoa, do que a minha suposição sobre a realidade dela". Se Michael Moore quer mudar o mundo ou provar uma tese, Coutinho parece apenas querer praticar seu método geométrico de interação, numa invenção imagética das vontades e sonhos de seus personagens – onde a mudança de mundo é a da própria prática da criação.

Maysles se incomoda mais uma vez: "Eu não entendo! Acredito que meus filmes possam mudar o mundo.Essa á função dos documentários..." Não pela demonstração de uma tese fechada, mas através de um contato imagético direto com a vida de pessoas e lugares que nunca poderíamos conhecer se não fossem os documentários. "Por exemplo, hoje, no meu país: somente um bom documentário poderia evitar o ataque ao Iraque!".

Coutinho resmunga alguma coisa. Maysles olha de lado. Silêncio...

O duelo se interrompe assim: Mayles inquieto, afoito pela aventura. Para o cinema dele e de seu irmão David, a realidade cheia de máscaras se fragiliza diante da câmera. Acaba se deixando escapar, desnudar sua "coisa real". Para o cinema de Eduardo Coutinho as máscaras também estão ali. São inegáveis. Mas sob elas, Coutinho não vê a realidade, não vê uma brecha. Apenas mais e mais máscaras se entrecruzando. Numa autêntica representação de si mesmas.

* * *

Como se vê aqui, não me proponho, e nem me caberia tempo, a uma descrição dos eventos todos que marcaram o Brasil Documenta 2002. Enumero apenas algumas questões, algumas críticas, pequenas caricaturas e citações manipuladas. Numa proposição geral do que permeia o fórum, penso aqui justamente numa mudança de eixo de sua dinâmica central:

Não pensar o Brasil Documenta como um espaço onde os documentaristas vem buscar seu "lugar" na TV, ou apresentar produtos prontos para a veiculação. Mas pensar o fórum todo como o lugar onde a Televisão, como instituição mesma e meio técnico de difusão de imagens, vem beber nas águas expressivas da criação audiovisual e descobrir nesses realizadores, os novos catalisadores expressivos da vida televisiva brasileira. Uma relação estrutural, paradigmática, e não uma parceria estritamente comercial de troca de mercadorias. Abrir espaço para o criador audiovisual brasileiro na Tv não é apenas criar janelas de programação, mas se deixar embebedar pelos fluxos criativos que a experimentação cinematográfica tem a oferecer. Fica em aberto ao próximo Brasil Documenta a possibilidade e o desafio de trazer a televisão e o telejornalismo de fato para dentro da arena mesma da criação de imagens não-ficcionais, e de sua estetização discursiva – desse entrechoque, talvez, possa surgir um autêntico e poderoso distúrbio criativo. Uma re-visão mesma (gradativa) dos próprios moldes documentais-telejornalísticos, do próprio solo gramatical que regeu o olhar televisivo brasileiro nos primeiros 50 anos de sua existência. Um olhar que dá sinais claros de seu desgaste e enfraquecimento. Na banalização crescente de seus formatos e na monotonia de seus modelos discursivos, o teledocumentário/jornalismo perambula agonizante, fazendo de si mesmo, a fronteira formal a ser rompida. Desde dentro.

Felipe Bragança