Sexy e Marginal, de Martin Scorsese

Boxcar Bertha, EUA, 1972

Num mês especialmente rico, que inclui retrospectivas de Jacques Becker e Jerry Lewis, além de um festival John Wayne, a rede Telecine traz também uma preciosidade pouco conhecida por boa parte do público, o segundo longa-metragem de Martin Scorsese, Sexy e marginal, lançado em 1972, um ano antes de Caminhos perigosos, que viria a ser seu primeiro trabalho a atingir maior repercussão. Ainda longe dos grandes estúdios, o filme é uma produção do mitológico Roger Corman e sua companhia American International, especializada em produções de baixo orçamento, mas muitas vezes ricas em competência cinematográfica, como podemos observar no ciclo de filmes de terror estrelados por Vincent Price, que também vêm sendo exibidos pela mesma rede. Corman, além disso, sempre se caracterizou por dar chance a diretores iniciantes e sob sua chancela foram realizados os trabalhos de estréia de cineastas de diferentes gerações e estilos, como Francis Ford Coppola (Dementia 13, 1963) ou Ron Howard (Grand Theft Auto, 1977).

Sexy e marginal conta a história baseada em fatos reais da jovem Bertha (Barbara Hershey, então com 24 anos e gatésima) que, durante a grande depressão, perde o pai e é obrigada a se virar para sobreviver, inicialmente pegando carona em trens (um universo magníficamente explorado em outro filme da mesma época, O imperador do norte, de Robert Aldrich), onde conhece e se apaixona pelo sindicalista Bill (David Carradine, em um personagem que de certo modo antecipa em 5 anos seu papel em Esta terra é minha terra, de Hal Ashby, biografia do cantor Woody Guthrie). Aos dois posteriormente irão se unir o jogador almofadinha Rake (Barry Primus) e o negro Von (Bernie Casey). Um incidente durante uma fuga torna o grupo inadvertidamente uma quadrilha de ladrões de trens, cujas ações vão se tornando cada vez mais ousadas, até que, durante uma delas, Rake é morto e Bill e Von presos. Bertha consegue fugir, mas como mulher, bonita, pobre e sozinha, seu destino acaba sendo o bordel. Ao final os três irão se reencontrar em um desenlace trágico.

O que podemos observar é um filme com muito poucas das características pelas quais Scorsese viria a ficar conhecido posteriormente. Longe de sua ambientação novaiorquina (a ação se desenvolve em um cenário sulista), com um protagonista feminino. Entretanto já podemos observar a presença de um grupo de marginalizados, alvo de fortes preconceitos (mulher, comunista, nortista e negro) imersos em um universo de violência. Sexy e marginal tem mais a cara de Corman, contando com uma narrativa fluente, objetiva e curta (88 min.), característica de suas produções . Além disso, encaixa-se dentro da linha temática de exploração de gêneros ou subgêneros em voga no momento da realização, no caso biografias romanceadas e simpáticas de bandidos famosos, como Bonnie & Clyde (1967) ou Butch Cassidy (1969), dos quais faz uso de diversos elementos. Corman já havia dirigido, dentro desta linha, Bloody Mamma (1970). Sexy e marginal parece aproveitar a raspa do tacho, trabalhando com a figura obscura de Bertha Vagão, em oposição aos célebres personagens das fitas de Arthur Penn ou George Roy Hill, mas apresenta, entretanto, alguns ingredientes de crítica social, praticamente ausentes naqueles títulos.

O filme, todavia, parece ter causado alguma impressão, possibilitando a Martin Scorsese não somente a realização de Caminhos perigosos, mas principalmente o retorno ao universo da trajetória de uma mulher batalhadora pelo interior dos EUA em seu quarto longa, Alice não mora mais aqui (1974), o primeiro de seus filmes a contar com orçamento mais folgado. E se os fãs do diretor, acostumados com a encenação criativa e requintada que iria ser uma de suas características principalmente a partir de Taxy driver (1976), passam o filme inteiro a procurar em vão alguma sequencia especialmente brilhante e sentindo até algum cheiro de cópia (os tiroteos são encenados bem à moda de Sam Peckimpah, também em voga na época), a bela sequência final, com Bill crucificado na parede do vagão e Bertha correndo em vão atrás do trem (vejam aí a marca cristã de Scorsese), finalmente antecipa o grande diretor que estaria por vir.

Gilberto Silva Jr.