Meu Ódio Será Tua Herança,
de Sam Peckinpah


The Wild Bunch, EUA, 1969, 145', cor

 

Com Meu Ódio Será Sua Herança Sam Peckinpah não só expande seu vocabulário cinematográfico, através de uma série de procedimentos que resultam numa violência gráfica em forma bastante vigorosa e depurada, como também redimensiona o universo do faroeste flagrando-o numa fase tardia. "O tempo das armas está acabando", diz Pike (William Holden), líder do bando que pretende fazer o último serviço antes de cada um seguir seu rumo. O fim do Velho Oeste, contudo, revela-se um momento cruento e caótico como nunca: armamentos pesados foram introduzidos; ganham corpo conflitos políticos da magnitude da revolução social mexicana liderada por figuras populares como Pancho Villa e Emiliano Zapata; os foras da lei recebem menos para cumprir missões cada vez mais arriscadas. Tudo indica que é hora de parar, mas o destino impõe uma última e aparentemente trivial missão para o bando que, como na cena do assalto ao trem, uma das melhores que o cinema de faroeste já fez, mostra perfeito entrosamento (o filme em nenhum momento apresenta os membros do grupo arquitetando ou debatendo uma estratégia de ação, tudo parece se construir no momento da ação se pôr em cena – a vontade dos personagens se confunde à própria mise-en-scène). Peckinpah busca sempre uma animalidade e um sadismo que parecem compor a estrutura íntima do homem. E no western, gênero cuja tipologia já é marcada por uma espécie de barbarismo pré-civilização, ele encontrou um terreno fecundo (Pistoleiros do Entardecer e Pat Garrett & Billy the Kid são outros dois grandes filmes seus).

A missão derradeira em Meu Ódio Será Sua Herança consiste em roubar um carregamento de armas e entregá-lo ao General Mapache, que combate os villinistas e recebe ajuda das nações imperialistas interessadas em devolver o México ao Porfirismo. O fator complicador é o fator humano (Preminger só faria sua obra-prima sobre o tema dez anos depois, em 1979): Sanchez, membro mais jovem do grupo, de origem mexicana, descobre que a mulher que havia deixado em sua aldeia debandou-se para o lado de Mapache. Ali, mais até do que na tomada de consciência política (sua aldeia luta a favor da redistribuição de terras e contra a ordem conservadora personificada no general), está a origem do ódio que selará não só seu destino como o de todos. O cinema de Peckinpah é basicamente construído através do ponto de vista de personagens com uma moral própria clara e inabalável (bem à moda dos mocinhos do western), como a do personagem de William Holden em Meu Ódio Será Sua Herança. Não à toa, lealdade e companheirismo são temas centrais - é ao decidir resgatar Sanchez, tornado prisioneiro do sádico General Mapache após desviar algumas armas para a aldeia, que Pike e seus companheiros assumem uma questão de vida ou morte.

O repertório de estilo de Sam Peckinpah inclui o uso constante do zoom e da câmera-lenta, além da variação máxima do ponto de vista dentro de uma mesma cena (o que às vezes alcança um inesperado grau de contundência). Um repertório que ele retomará em momentos posteriores de sua carreira, mesmo que em contextos diferentes (as cenas de rodeio e a cena dos tratores derrubando um velho rancho em Junior Bonner; as cenas de guerra em Cruz de Ferro). A composição mais marcante do filme permite que a metralhadora giratória com que o General Mapache é presenteado metonimize o trabalho iniciado pela câmera e complementado na moviola, composição que atinge seu ápice na seqüência da matança final, quando uma explosão é picotada em quatro partes intercaladas por ações que ocorrem simultaneamente, como que correspondendo à demanda de um olhar ubíquo. Por frenética que seja essa seqüência bastante sanguinolenta, o principal elemento de sutura entre os planos continua sendo o olhar.

Se Eisenstein fala nos anos 20 das “explosões” que movem um filme, gerando um cinema fundado no “desarranjo psicotrópico e na perturbação cronológica”, em Peckinpah a montagem surge como etapa menos geradora de sentido que instigadora dos sentidos. Tanto a montagem quanto a movimentação de câmera nas cenas de ação em Meu Ódio Será Sua Herança respondem a um princípio de provocação e inserção do espectador, o que o torna muito próximo da violência que se espalha pelo filme: sua montagem não se concentra só na construção narrativa, mas antes no efeito psicológico. "Ninguém coloca você dentro de um filme tão efetivamente quanto Peckinpah", afirma Paul Seydor (autor do livro Peckinpah: The Western Films, originalmente publicado em 1980, e do documentário The Wild Bunch: An Album in Montage, indicado ao Oscar de sua categoria em 1997). Ser transportado para dentro de Meu Ódio Será Sua Herança, quase 25 anos depois de Peckinpah o ter realizado, é realmente um privilégio enorme.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

Apresentação de Ruy Gardnier. Convidados: Hernani Heffner e Luiz Carlos Oliveira Jr.

Meu Ódio Será Tua Herança
The Wild Bunch, 1969, cor, 145’
Direção: Sam Peckinpah
Roteiro: Walon Green e Sam Peckinpah
Produção: Phil Feldman
Música: Jerry Fielding
Fotografia: Lucien Ballard
Montagem: Lou Lombardo
Elenco: William Holden (Pike Bishop), Ernest Borgnine (Dutch Engstrom), Robert Ryan (Deke Thornton), Edmond O'Brien (Freddie Sykes), Warren Oates (Lyle Gorch), Jaime Sánchez (Angel), Ben Johnson (Tector Gorch), Emilio Fernández (General Mapache)

Pike Bishop é o líder do "Bando Selvagem", um grupo de foras-da-lei que vêem seu modo de vida (o oeste sem lei) ficar rapidamente ultrapassado em 1913. Depois de sobreviver a uma emboscada feita por caçadores de recompensa, Pike percebe que seu bando terá fim próximo e decide planejar uma última empreitada para enriquecê-los e fazer valer os dias de aposentadoria: o assalto a um trem que carrega ouro. No entanto, a companhia ferroviária contratou Thornton, um ex-membro do bando, e um bando de mercenários para matar o grupo de Pike.

Filmografia de Sam Peckinpah
1955 Gunsmoke (TV)
1956 Zane Grey Theater (TV)
....... Episódio "The Transfer" da série "Broken Arrow" (TV)
1957 Trackdown (TV)
1958 The Rifleman (O Homem do Rifle) (TV)
1960 The Westerner (TV)
....... Klondike (TV)
1961 The Deadly Companions (O Homem que eu Devia Matar ou Parceiros da Morte)
1962 Ride the High Country (Pistoleiros do Entardecer)
....... Episódio "The Losers"da série "The Dick Powell Show" (TV)
1965 Major Dundee (Juramento de Vingança)
1966 Noon Wine (TV)
1969 The Wild Bunch (Meu Ódio Será Tua Herança)
1970 The Ballad of Cable Hogue (A Morte Não Manda Recado)
1971 Straw Dogs (Sob o Domínio do Medo)
1972 The Getaway (Os Implacáveis)
1973 Pat Garrett and Billy the Kid (Pat Garrett e Billy the Kid)
1974 Bring Me the Head of Alfredo Garcia (Tragam a Cabeça de Alfredo Garcia)
1975 The Killer Elite (Elite de Assassinos)
1977 Cross of Iron (A Cruz de Ferro)
1978 Convoy (Comboio)
1982 Jinxed! (não creditado)
1983 The Osterman Weekend (O Casal Osterman)