Trilogia Cinemascope - L'Arrivée,
Outer Space e Dreamwork, de Peter Tscherkassky

Cinemascope Trilogy - L'Arrivée, Outer Space, Dreamwork,
Áustria, 1998/ 1999/ 2002, P&B
Como e por quê?
Algumas considerações
acerca da realização técnica da "Trilogia CinemaScope"
Como
L’Arrivée
(1997-8), Outer Space (1999) e Dream Work (2001) formam
aquilo que chamo de minha "trilogia CinemaScope". Nos três
casos, são filmes de found footage, que utilizam um material estrangeiro,
imagens "encontradas". Para L’Arrivée, foram alguns planos
retirados de Mayerling (dir. Terence Young, Inglaterra, 1969) e
os dois outros baseados no thriller The Entity (dir. Sidney
J. Furie, EUA, 1983).
O filme de found footage
possui uma longa tradição no cinema de vanguarda, tradição
esta que começa nos anos 20 com os filmes de Joseph Cornell e Len
Lye. A trilogia CinemaScope distingue-se pela transformação
específica à qual eu submeti o material de partida durante
a realização desses filmes.
L’Arrivée,
Outer Space e Dream Work foram realizados na câmera
escura, por um procedimento de reprodução arcaico. Concretamente,
o dispositivo se apresenta da seguinte maneira.
Numa prancha de pregos
de mais ou menos 15cm de largura e um metro de comprimento, eu fixo um
pedaço de película virgem de mesmo comprimento, formato
35mm. Esse comprimento corresponde a 48 fotogramas, o que representa dois
segundos de projeção. Eu utilizo uma película ortocromática,
ou seja, insensível ao vermelho, de forma a poder trabalhar com
a luz do laboratório. O filme é preso pelas pontas da prancha,
que saem pelas perfurações de cada lado da película,
uma a cada quatro perfurações. Isso me permite ao mesmo
tempo evitar que a película se desloque quando está sendo
manipulada, e de marcar a passagem de um fotograma ao seguinte.
Sobre esse filme virgem,
eu vou dispor sucessivamente várias camadas de found footage,
que poderão ser expostos manualmente e, assim, transferidos para
o novo suporte. Para essa operação, utilizo para a trilogia
duas fontes luminosas. Por um lado, um ampliador fotográfico comum,
que intervém aqui como um simples aparelho de iluminação:
a lente me permite regular a intensidade da luz, e faço uso de
um timer para controlar com precisão o tempo de exposição.
No feixe luminoso desse ampliador, é possível copiar de
uma só vez, em condições idênticas, mais ou
menos 18 fotogramas. Mas, no mais das vezes, a exposição
é efetuada imagem por imagem. Utilizo nesse caso do que chamamos
de caneta laser, que permite iluminar somente partes do fotograma com
que se trabalha inicialmente. O tempo de exposição é
fixado intuitivamente, de acordo com valores empíricos. O trabalho
da luz adquire uma certa qualidade pictural, na medida em que manejo a
caneta laser a mão.
Uma vez impressionados
os 48 fotogramas da película virgem, recomeço o processo,
no mesmo suporte, mas como outros planos de found footage. Posso
dessa maneira misturar os trechos de imagens retirados dos materiais mais
diversos, e realizar uma colagem óptica. Para Outer Space,
eu superpus ou justapus até cinco estratos de película,
e até sete para Dream Work (L’Arrivée tinha
ainda sido inteiramente impresionado por meio do ampliador, os efeitos
de colagem resultando aqui da aplicação simultânea
de diferentes pedaços de found footage na película
virgem).
O trabalho de exposição
em diversos estratos, imagem por imagem, de um metro de película
virgem dura rdinariamente entre 45 e 70 minutos. Logo depois, eu revelo
a película à mão e submeto o resultado a um primeiro
controle óptico numa mesa de luz.
O processo que eu
acabo de descrever se aplica igualmente à fabricação
da banda sonora. Sabemos que o som é gravado sob a forma de uma
banda riscada que corre, paralelamente às imagens, na borda da
película. É o que chamamos de "som ótico".
A banda sonora de um filme pode, então, da mesma forma que sua
parte visual, ser recopiada e remontada por colagem. Fiz claramente o
uso dessa possibilidade em Outer Space: para cada passagem do filme, escolhi
na cópia original as seqüências sonoras apropriadas,
que em seguida adicionei às imagens (dando-se o caso, ao som síncrone
dos planos de origem). Em L’Arrivée, o found footage
foi disposto de tal maneira que no fim do percurso o leitor de som do
projetor "lê" e transmite uma parte da imagem ela mesma
como uma gravação sonora (o resultado acústico lembra
vagamente o universo dos trabalhos de sons futuristas).
Essas manipulações
na câmera escura sucedem naturalmente a um trabalho, não
menos exigente, de preparação e de reflexão. Com
o material de partida disponível em vídeo, posso dessa forma
decorar um filme quase de cor: todos seus planos, todas suas frações
de plano, todas as porções de imagens constituem uma forma
de vocabulário para o novo filme. Eu construo a partir daí
uma dramaturgia de conjunto, cujos esboços são fixados num
diário de trabalho.
Um outro diário
acompanha a minha atividade na câmera escura. Eu anoto exatamente
a micro-estrutura dos pedaços de película de origem, antes
da reprodução. Faço um inventário do material
que cada pedaço de película me dá, assim como todas
as intervenções específicas às quais ele dá
lugar. O resultado parece como uma anotação gráfica,
que se dá banda por banda. Se um erro técnico é cometido
enquanto se manipula o material, esse protocolo me permite retornar imediatamente
e recomeçar a operação.
Por quê
Queiramos ou não,
assistimos atualmente no domínio cinematográfico a uma dissolução
progressiva do material clássico pelas técnicas de (re)produção
digital das imagens. Esse movimento se estende lentamente, mais lentamente
talvez do que profetizavam certos campeões do digital. Mas uma
coisa parece certa: é apenas uma questão de tempo, um dia
ou outro toda a produção de imagens animadas será
garantida por processos de gravação e leitura digitais.
Já hoje em dia, quando entramos na cabine de projeção
de um cinema, a visão desses aparelhos imponentes pode nos dar
a impressão de ter caído numa espécie de Jurassic
Park, e os pesados rolos de película que se precisa carregar com
muito trabalho dos distribuidores às salas de cinema, e depois
de uma sala a outra, parecem inscritos numa listinha das espécies
em vias de extinção.
Alguns dirão
que na maior parte dos setores da comunicação audiovisual,
importa muito pouco que as imagens tenham proveniência de uma película
cinematográfica ou de um disco digital. talvez. Mas em todos os
domínios em que o filme intervém como forma artística,
a diferença entre os dois meios exerce uma importância capital.
Isso diz respeito à própria etiologia da arte moderna. A
manifestações daquilo que reunimos sob o nome de "arte
moderna" são, historicamente falando, o resultado de um processo
de racionalização que toca o conjunto da sociedade. Do ponto
de vista da história da filosofia, esse processo tem sua fonte
no Iluminismo; do ponto de vista da história social, foi a Revolução
Francesa que fez da razão a instância de legitimação
do poder. Numa perspectiva econômica e técnica, a modernidade
pode ser considerada como o resultado de um processo de industrialização
que organizou a exploração do mundo. No domínio da
arte, os progressos da racionalização conduziram a produção
artística a integrar uma reflexão sobre sua própria
estrutura interna, sobre seus meios e suas possibilidades de criação
– e, indissociavelmente, sobre os materiais sobre os quais se trabalha.
A história
do cinema mostra que são essencialmente as obras de vanguarda clássica
e contemporânea que se interessaram pelas propriedades do meio fílmico
e em suas possibilidades específicas. Nessa perspectiva, nota-se
logo que a "gravação analógica" e a "produção
digital" das imagens não são intercambiáveis
para uma expressão artística exigente: seus suportes
respectivos são muito diferentes. Só o efeito produzido,
a saber, a ilusão do movimento, permanece o mesmo. Levando as coisas
ao extremo, poderíamos dizer: as duas técnicas não
têm absolutamente nada em comum, a não ser que elas conseguem
tornar visíveis imagens animadas.
Um diagnóstico
como esse não visa contestar que as imagens digitais possam servir
de suporte para uma obra de arte consiente de si mesma. Insisto unicamente
nas possibilidades radicalmente diferentes que se abrem a uma utilização
artística, auto-reflexiva, do material nesses dois meios: temos
de uma parte uma quantidade de informação transcrita em
código binário e gravada num suporte digital qualquer, que
é ela mesma subtraída a qualquer intervenção
direta, mas fornece uma massa de dados manipuláveis à vontade;
de outra, uma imagem analógica produzida pelo jogo combinado da
luz e dos processos químicos sobre a viga complexa de umna película
que o artista mantém em mãos.
Se a evolução
histórica conduzir, a longo prazo, ao ponto em que a indústria
(submetida às leis do mercado) abandonaria a produção
do material analógico, esse seria um acontecimento sem precedentes
na história. Até aqui, com efeito, jamais aconteceu que
um procedimento de representação visual fosse eliminado
pelo desenvolvimento de uma técnica concorrente: veríamos
pela primeira vez a indústria suprimir o meio que chegou a seu
pleno desabrochar.
É nesse contexto
que se inscreve a meus olhos a significaçãso profunda da
técnica artesanal à qual recorri para fabricar meus últimos
filmes. Eles se apresentam como obras de arte indissociáveis do
material cinematográfico clássico, obras que teria sido
de fato impossível realizar dessa forma por meios digitais,
ou que perderiam todo sentido se assim feitos.
O charme específico
desses filmes nasce para mim do encontro de uma composição
extremamente precisa – que diz respeito à escolha e o novo arranjo
do material de origem – e de um modo de produção manual
portador de um elemento imprevisível, resolutamente aleatório.
O trabalho com o caneta laser não permite nem determinar com precisão
o tempo de exposição (e assim a densidade da imgem) nem
delimitar exatamente a porção de imagem recopiada. O espectador
é assim confrontado a uma flutuação permanente dos
componentes da imagem, que lembra seu modo de produção manual.
A essa instabilidade interna se associam inevitavelmente uma enormidade
de impurezas, riscos, etc., que constituem a partir daí um elemento
visual integrado à fisionomia geral do filme. Os cortes permanecem
visíveis, da mesma forma que eu não quis, no plano acústico,
nuançar as rupturas de tom entre os ambientes sonoros recompostos
a partir da trilha original e aqueles que resultam das intervenções
manuais, necessariamente "impuros", sobre o suporte.
Em síntese:
o processo de fabricação é ele próprio profundamente
inscrito nas imagens e nos sons desses filmes, e se apresenta, sob
esse aspecto particular, como o fruto de um trabalho manual
com e sobre um material analógico que não poderia sob forma
alguma ser permutado para outro tipo de suporte.
É perfeitamente
possível que se estabeleça um nicho no qual o filme analógico
clássico possa continuar a existir, e que a indústria continue
a produzir o material necessário, mesmo em proporções
terrivelmente reduzidas e para simples fins de conservação.
Não me parece, entretanto, sem importância, na dinâmica
histórica do momento presente, sublinhar as possibilidades especificamente
artísticas da película cinematográfica. E se, além
disso, os próprios filmes conseguirem atingir um vasto público,
como os filmes da trilogia CinemaScope conseguiram até agora, então
podemos ver nesse interesse a expressão de uma sensibilidade ainda
largamente partilhada, uma sensibilidade intacta pela beleza tão
particular da cinematografia clássica.
(tradução
por Ruy Gardnier da versão francesa do texto, publicada na revista
Trafic 44, inverno 2002)
Filmografia de
Peter Tscherkassky
1981 Aderlass 11'
1982 Erotique 1'40"
1982 Liebesfilm 8'
1983 Freeze Frame
10'
1983 Urlaubsfilm 9'15"
1984 Motion Picture
3'23"
1985 Manufraktur 3'
1986 Kelimba 11'
1987 Shot – Countershot
22"
1987-89 Tabula Rasa
17'
1992 Parallel Space:
Inter-view 18'
1996 Happy End 11'
1997-98 L'Arrivée
2'10"
1999 Get Ready 1'04"
1999 Outer Space 10'
2002 Dream Work 11'
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