Três Reis, de David O. Russell

Three kings, EUA, 2000





Um soldado americano aparece na tela e, vendo ao longe um iraquiano, pergunta: "Nós estamos atirando nas pessoas ou não?" Sendo este o primeiro plano do filme mostra que, além de suas qualidades intrínsecas, talvez o maior mérito de Três Reis tenha sido ficar mais atual hoje do que era na sua própria realização. Com a invasão americana ao Iraque (está moralmente errado chamar de qualquer outra coisa), o filme de David O. Russell ganhou uma pertinência histórica que, com certeza, nem ele mesmo esperava (ou gostaria). Mais do que isso: o filme ganha um caráter especialmente subversivo em pleno momento em que se discute a volta de um macarthismo pouco escondido às artes americanas, cinema e a TV em especial. O fato é: este filme jamais seria realizado hoje.

Três Reis se passa em 1991, logo após o final da primeira Guerra do Golfo, e mostra os soldados americanos esperando pela volta para casa. Três deles (na verdade, quatro, mas a participação de um deles é quase passiva) resolvem então trazer algo a mais de volta com eles, e saem numa missão clandestina para roubar o ouro dos kuwaitianos, que de sua parte havia sido roubado pelas tropas de Saddam na invasão a este país.

Certamente o que o filme possui de mais interessante enquanto narrativa é o fato de que Russell não se prende nunca aos limites de um específico gênero cinematográfico: seu filme tem elementos do filme de ação, do clássico filme de guerra, de uma comédia, de um drama, tudo misturado por um humor bastante peculiar e, acima de tudo, a disposição de provocar algumas reflexões sobre a participação americana numa campanha militar que foi muito pouco discutida em termos artísticos. Russell opta por localizar esta discussão no microcosmo de uma série de personagens envolvidos: soldados americanos, soldados iraquianos, desertores e rebeldes do sistema iraquiano. Não há espaço para generais, presidentes, embaixadores: claramente Russell nos diz que a guerra de fato é a que vivem estas "pequenas personagens", com seus pequenos dramas.

Seu olhar frontalmente crítico da participação americana no Golfo fica claro em inúmeros momentos. Nenhum deles mais pungente que a cena do interrogatório de Mark Wahlberg por um soldado iraquiano, onde a condição de ambos é igualada. Com certeza esta cena possui o único momento visual (seja ele ficcional ou documental) feito até hoje pelo ponto de vista interno de um bombardeio americano ao solo árabe. Só por este plano o filme já seria banido hoje, e tem sua validade comprovada. Mas diálogos também são o forte de Russell (como seus dois filmes anteriores comprovam), e há momentos absolutamente ricos nesta cena, como as citações ao petróleo ou a Michael Jackson.

Há inúmeros outros momentos fortes de confrontação com a ordem política-militar americana, o que certamente só foi possível pelo filme ter sido realizado em plena administração Clinton. Logo no início, por exemplo, o personagem de George Clooney diz ao seu superior: "Eu nem sei o que foi que nós fizemos aqui. Me diz: o que nós fizemos aqui?" Em outro momento, ele afirma para os soldados: "Bush disse para o povo se revoltar contra Saddam, que nós os ajudaríamos. Eles se revoltaram e agora estão sendo massacrados, e nós não faremos nada." Mesmo a repórter de TV americana aparece perguntando num certo momento: "A guerra acabou e eu nem sei sobre o que foi essa guerra. Sobre o que foi essa guerra?"

Mas, mais do que estes momentos discursivos de questionamentos sobre uma guerra que foi (ao contrário da campanha atual) bem pouco questionada, considerada de forma geral uma "guerra justa", o segredo do sucesso do filme de Russell está nas outras formas de crítica bem mais sutis que utiliza. Vemos, por exemplo, o completo despreparo de um tropa formada por jovens sem qualquer experiência em combate, jovens que, ao contrário de heróis patrióticos, são apenas proletários tentando conseguir uma grana extra. Jovens destreinados que absolutamente não conhecem as particularidades do local onde estão se envolvendo, e que se comportam de forma abusiva e racista com seus prisioneiros.

Além deste retrato pouco alentador das "forças armadas", há também diversas insinuações da participação americana no cerne deste conflito. Desde a mais direta de todas, que é a do soldado iraquiano explicando ao colega americano que ele e as tropas de Saddam tiveram seu treinamento militar fornecido por americanos na década de 80, até pequenos detalhes de cenário, de músicas, de diálogos onde vemos ao fundo a colisão civilizatória entre a antiguidade do Oriente Médio com a cultura ocidental que entra, como não poderia deixar de ser, pelo consumismo e os bens materiais. A cena mais interessante nesse sentido certamente é a da invasão a um bunker onde George Clooney dá um encontrão num soldado iraquiano que tenta fugir carregando seus jeans Levi's.

Apesar da contundência de alguns destes discursos, o filme de Russell foi criticado por alguns por não ser direto o suficiente, a partir de duas visões principalmente: a questão estética, onde o uso da linguagem transformaria o filme num certo "videoclipe"; e o fato de que os três personagens principais acabam sim, como seria de se esperar do militar americano, interpretando papéis heróicos.

Quanto ao primeiro dado, Russell sempre afirmou que acha que a Guerra do Golfo atende a uma visualidade completamente diferente de todas as outras. E que ele tenta um movimento de, partindo desta visualidade espetacular, encontrar as questões escondidas por ela. Além disso, ele justifica os usos de negativos e processos químicos pouco comuns como formas de representar os momentos "interiores" pelos quais passam os personagens. Bem mais interessante é sua justificativa para a filmagem dos tiroteios, onde ele diz que faz questão de diminuir a velocidade e seguir a trajetória de cada bala para mostrar o momento quase surreal de suspensão de realidade que é um tiroteio e, mais do que isso, mostrar que cada projétil disparado tem um efeito humano direto.

Questões estéticas à parte, parece mais importante ver o segundo argumento: desde o início fica claro que estes personagens não são "heróis", certamente não no sentido clássico. Aqui, ao contrário do modelo, eles sempre parecem fazer o bem por acaso. A comédia de erros que costuma levar um personagem a cometer equívocos é o que os faz agir de acordo com uma ética, que de fato não existe. Prova maior disso é o fantástico diálogo de Clooney com o chefe desertor, onde ele tenta encenar o discurso oficial ("George Bush quer você!") para usar aquelas pessoas para seu fim pessoal, num momento onde aquele personagem já entende bem melhor o que está acontecendo. A frase que termina a cena é essencial: "OK, suponho que vamos comprá-los então." Esta idéia da "compra" é a que move o filme, até no seu desfecho, onde a própria "honra" e os tão importantes "regulamentos" do militar americano são comprados.

Se há, de fato, um encaminhamento heróico dos personagens, isso pode ser traçado pela sua constante (e involuntária) imersão num universo desconhecido, onde é trazido a eles o conhecimento do que está se passando num território onde atuavam sem qualquer entendimento. Ao final suas opções são apenas as opções de pessoas comuns (portanto, não heróicas em suas motivações) que optam por salvar a vida de outras pessoas, ainda que continuem indo contra as ordens de seu exército e de seu país (e aí está o principal dado). São personagens que fazem sim um trajeto de conscientização, mas ele não é nem um pouco sem dor (no caso mais óbvio, a tortura do personagem de Wahlberg). O filme quase parece perguntar: será que para trazer um mínimo de responsabilidade ao cidadão médio americano (que estes personagens corporificam) seria necessário torturá-lo?

Além disso, um fato que também deve ser levado em conta é que Russell é um diretor jovem fazendo seu primeiro filme em Hollywood, com um orçamento de mais de 40 milhões de dólares. Pedir que ele conseguisse mais em subversão do que ele já consegue, seria definitivamente pedir demais. Como exercício de gênero, ele precisa também ter a identificação da platéia, o desfecho, etc. Sendo que nada disso tira a força de seu filme, cuja coragem não deveria ser tanto admirável, e sim o mínimo que se espera de um filme. Mas que, nos dias de hoje, parece cada vez mais alienígena.

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Além do filme em si, a edição brasileira do DVD traz uma série de "extras" que é de fato muito significativa tanto no entendimento do filme e suas motivações, mas especialmente do seu processo de realização. Além do mais comum como trailer de cinema (aliás ainda mais provocador do que o filme) e making of (que, como todo o material extra de filmagens, foi feito por Keith Fulton e Louis Pepe, especialistas na "arte" do making of que acabaram fazendo o longa Lost in La Mancha sobre a filmagem abortada de Terry Gilliam), a edição tenta permitir o máximo de aproximações com a realização do filme através de expedientes menos comuns, como entrevistas (ilustradas com cenas do filme) com o diretor de fotografia (que discute exatamente as questões estéticas e suas opções) e com a diretora de arte. Além disso, tem a particularidade de um "diário de bordo" visual que o próprio Russell filma do início do projeto (com discussões telefônicas com chefes de estúdio, por exemplo), até seu lançamento (a filmagem não aparece neste formato por motivos óbvios: primeiro que já há o making of, e depois que o diretor está um pouco mais ocupado durante a realização desta). São materiais que ajudam muito a entender toda a realização de um grande filme de estúdio como este, e como juntar preocupações estético-temáticas com a verdadeira operação industrial, quase de guerra (sem trocadilhos), que é fazer um longa dentro desse sistema.

Nesse sentido, também é especialmente interessante que tenhamos duas trilhas de comentário do filme igualmente complementares: a do diretor (mais comum nos DVDs) e a dos produtores do filme. Para os mais interessados no processo prático, a dos produtores revela-se surpreendentemente rica, além de demonstrar um conceito de produção ainda pouco usual no Brasil: o produtor-parceiro. Nesta trilha eles mostram grande conhecimento histórico do processo produtivo hollywoodiano (conceituando mudanças nos papéis clássicos do produtor, por exemplo), entendimento estético-narrativo do filme que fizeram, discutindo opções do diretor com grande desenvoltura (chegando a discutir a recepção do filme pela crítica), e ainda narram boa parte da prática do trabalho no projeto, desde a pré-produção até a estratégia de lançamento. Material riquíssimo.

A trilha do diretor também é muito enriquecedora porque, ao contrário de alguns outros diretores, Russell não se acanha de interpretar seu próprio trabalho, nem de criticá-lo. E, mais do que isso, deixa bem claras suas opções passo a passo do filme, contextualizando e esclarecendo opções de ordem estética, de ordem prática, da logística de filmagem, etc. É bastante interessante saber, por exemplo, que ele morou na Nicarágua nos anos 80 (em plena ação americana), e o quanto de pesquisa de local e costumes está por trás da realização do filme.

Finalmente, um outro material sempre rico são as cenas cortadas, e aqui vê-se mais uma vez a coerência do material final que é o filme com as opções do diretor. Se em filmes como ed tv ou 15 Minutos as cenas deletadas mostram que os filmes deixaram de fora seus componentes mais perturbadores, em Três Reis fica fácil entender narrativamente as opções de exclusão do diretor (ou, pelo menos, as que se optou mostrar), mesmo a da primeira cena do filme, que é a única que parece ser retirada pelo conteúdo perturbador.

No geral, trata-se de uma belíssima edição de DVD que faz o que se espera dos meios que este canal nos coloca a disposição: enriquecem a leitura do próprio filme.

Eduardo Valente