O Sopro no Coração,
de Louis Malle

França, 1971
Não é
mais antigo que o cinema o conceito de adolescer, de transitar da infância
à idade adulta. Na verdade, se há alguns séculos
não se tinha a noção de adolescência, hoje
parece às vezes que todos o somos, uma vez que um dia o fomos –
principalmente para um certo tipo de cinema, sobretudo o dos efeitos especiais.
O Sopro no Coração é um filme sobre um garoto
de catorze anos (quase quinze) – mas, ao invés de se identificar
com seus conflitos, encanta-se com eles, em busca do tempo que ficou para
trás (é um filme sobre um adolescente, e não para
um adolescente). Não é que Laurent não sofra com
seus problemas – a questão é que seus sentimentos, bons
ou ruins, não têm a mesma força que a experiência
em si. Por mais desagradável que seja no momento ter a primeira
transa interrompida, a lembrança que resta é de uma situação
divertida. Só resta rir.
É essa libertação
de um certo recalque que o filme parece pleitear. A mãe de Laurent
afasta-se da família por conta de um amante, o pai de Laurent é
ausente, seus irmãos implicam com ele, a empregada não pára
de reclamar, seus amigos são chatos... e daí? Vive-se mesmo
assim, não é mesmo?. E pode ser divertido – não é
ruim, no final das contas. O menino mimado, o pequeno gênio que
ganha tudo e ainda rouba discos, que tem o problema de saúde a
que se refere o título, o sopro no coração (que parece
sugerir também um sentido de impulsividade), e por isso ganha a
atenção de todos, aproveita a vida como pode e como lhe
convém. Nisso, a mesmo tempo se une e se liberta de seus primos-irmãos
do cinema francês, os garotos anárquicos do Zero de Comportamento
de Vigo e do Antoine Doinel do Incompreendidos de Truffaut. Laurent,
apesar da má saúde e dos mimos, tem a vitalidade e o sentimento
de liberdade de seus aparentados cinematográficos – mas, por esta
má saúde e mimos, não tem do que se queixar acerca
de dinheiro e cuidados, ao contrário dos anteriores. Não
precisa se preocupar em ter liberdade – ele tem de tudo, sorte dele, que
pode ficar ouvindo jazz em paz.
Nisso o filme situa
sua transgressão central, a quebra de tabu que o tornou famoso.
Para a dramaturgia clássica, pior que o rompimento do tabu do incesto,
só mesmo se este rompimento se der sem sofrimento, sem conseqüentes
perda e purgação – isso sim é tabu de verdade. É
isso que faz O Sopro No Coração. Não se trata
de uma história em que o incesto provoca ou é provocado
por um violento transtorno psíquico. A vida continua, e só
resta rir. Em praticamente todos os outros exemplos que encontrarmos de
tematização do incesto na ficção, teremos
tramas em que o rompimento do tabu traz imenso sofrimento, traz uma ruptura
definitiva com o relacionamento antes estabelecido – para lembrar de um
exemplo marcante, dois anos antes Visconti fizera o seu Os Deuses Malditos.
O Sopro no Coração transgride essa norma, o incesto
rompe para evoluir, para conciliar. O filme consegue este feito bizarro,
e no entanto muito natural: diante do rompimento do tabu, a conciliação
é a maior transgressão – não custa lembrar que transgressão
e rompimento de tabus são dois dos pontos centrais em grande parte
dos filmes do realizador, Louis Malle.
Vale notar o encanto
cinematográfico de Lea Massari (atriz de filmes como A Aventura
de Antonioni e A Primeira Noite de Tranquilidade de Zurlini) como
a italiana Clara, mãe de Laurent, assim como a fabulosa interpretação
de Benoît Ferreux no papel principal (sua estréia no cinema),
com um comportamento sempre remetendo a algo instintivo, não-planejado
– é realmente incrível a divertida maneira que Laurent ataca
as meninas, dobrando o pescoço e avançando de um jeito grosseiro,
entre o desajeitado e o animalesco. Vale notar, sobretudo, que o filme
tem uma vitalidade impressionante, uma incrível capacidade de reviver
as experiências de Laurent, seja ouvindo o bebop de Charlie Parker
(e como é boa uma trilha sonora com Bird Parker!), transando com
putas, suportando a paquera de um padre mal-resolvido, seduzindo gatinhas
no hotel, lendo tanto livros clássicos como libertinos ou vendo
sua linda mamãezinha saindo do banho.
Daniel Caetano
"Adoro filmes
franceses, tenho um preconceito a favor deles. Diversos de meus diretores
preferidos são franceses, como François Truffaut, Jean Renoir
e Louis Malle. E O Sopro no Coração é provavelmente
meu filme preferido de Malle. As coisas que acontecem entre o filho e
sua mãe parecem até românticas, mas também
são assustadoras e tabu, o que torna tudo mais atraente. É
proibido: você sente que eles estão entrando em território
perigoso. Mas o jeito como o filme apresenta a situação
é perfeito. Não se torna traumático. Acaba sendo
a expressão da proximidade da relação dos dois, como
os dois estão conectados entre si, e é sobre isso que é
o filme."
Wes Anderson
(Diretor de Os Excêntricos Tenenbaums e Rushmore/Três
É Demais)
"Dizem que eu
faço exercicios de estilo. Não é nada disso. Eu acho
que é na verdade algo que ocorre também em pintura. Não
acredito que um pintor encontra seu jeito de primeira: é preciso
procurar de todas as formas. Em cinema, é igual. (...) Decidi fazer
filmes em todas as direções por um certo tempo, e a única
coisa que me interessa é ter a certeza de que o filme que eu faço
é melhor do que o seguinte. Vou onde minha curiosidade me carrega."
Louis Malle
Filmografia de Louis
Malle:
1956 O Mundo
do Silêncio (Le Monde du silence)
1958 Ascensor
para o Cadafalso (Ascenseur pour l'échafaud)
1959 Os Amantes
(Les Amants)
1960 Zazie no
Metrô (Zazie dans le métro)
1961 Vida Privada
(Vie privée)
1962 Vive le
tour (curta-metragem)
1963 Trinta
Anos Esta Noite (Le Feu follet)
1964 Bons baisers
de Bangkok (TV)
1965 Viva Maria
(Viva Maria)
1967 O Ladrão
Aventureiro (Le Voleur)
1968 Histórias
Extraordinárias (Histoires extraordinaires)
1968 Calcutta
1970 L'Inde
fantôme (TV)
1970 O Sopro
no Coração (Le Souffle au cœur)
1974 Place de
la Republique
1974 Humain,
trop humain
1974 Lacombe
Lucien (Lacombe Lucien)
1975 Lua Negra
(Black Moon)
1976 Close Up
(curta-metragem)
1978 Menina
Bonita (Pretty Baby)
1980 Atlantic
City
1981 My Dinner
with André
1984 Crackers
1985 A Baía
do Ódio (Alamo Bay)
1986 God's Country
(TV)
1987 The Pursuit
of Happiness (TV)
1987 Adeus Meninos
(Au revoir les enfants)
1989 Loucuras
de Primavera (Milou en Mai)
1992 Perdas
e Danos (Damage)
1994 Tio Vânia
em Nova York (Vanya on 42nd Street)
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