Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski

Repulsion, Inglaterra, 1965, 105', p&b


Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo de Roman Polanski

O anjo exterminador

Respondendo às críticas – as quais, aliás, não procedem de todo – de que teria atingido excessivo academicismo com o recente O Pianista, Roman Polanski afirmou que as considera um elogio. O diretor polonês, a bem da verdade, não teria por que não se orgulhar de sua formação acadêmica: graduou-se na escola estatal de cinema de Lódz, que, além de contar com os melhores profissionais na área de cinema do país como professores, dispunha de excelente condição material e ainda mantinha estreita conexão com o esquema de produção apadrinhado pelo Estado, o que permitia que seus alunos fizessem assistência para cineastas já consagrados. Admitido na escola em 1954, num período em que o cinema polonês estava em progressivo distanciamento com relação ao filme de propaganda ideológica comunista, Polanski, assim como outros de sua geração (Andrzej Wajda, Jerzy Skolimowski), rebelou-se contra os dogmas do realismo socialista, cujo esquematismo, em nada realista, recebia crescentes oposições a partir da morte de Stalin em 1953.

Muito cedo em sua carreira como diretor, Polanski transporia as barreiras culturais e conquistaria o Ocidente com filmes que até podem espelhar – como querem muitos analistas – a visão de mundo turva e degradante oriunda da realidade do leste europeu (e mais particularmente da Polônia) nos anos da Segunda Guerra e do stalinismo, mas que possuem um inegável apelo universal, através de histórias que deflagram a crueldade e a dor como aspectos marcantes da existência humana. Não há como negar, também, a influência da tortuosa trajetória de vida de Polanski na sua filmografia, o que inclui desde a infância refugiada no gueto de Varsóvia, pulando de família em família para despistar a perseguição nazista (situação desenvolvida mais explicitamente em O Pianista, mas que pode ser a origem dos universos claustrofóbicos de quase todos seus filmes, onde alguém sempre é – ou pensa estar sendo – perseguido), até o assassinato da esposa, que estava grávida, pela gangue de Charles Manson em 1969 e a acusação de ter estuprado uma garota de treze anos uma década depois, em 1979.

O mal parece inevitável em seus filmes, da mesma forma que foi em sua vida. Mas não há um superlativo antagonista entre bem e mal, pois este último atravessa todo o corpo da sociedade de modo a tornar-se indistinto. Impulsos amorais e imorais sobrepujam a grande moral, e desse deslize de valores nasce o intercâmbio, tão recorrente em Polanski, entre vítima e algoz. São salientados, assim, os aspectos dúbios compreendidos por uma microfísica das relações: o jogo do poder é também o jogo do domínio sexual e da interdependência entre dominador e dominado, sendo que estes se revezam em seus papéis – idéia presente em Repulsa ao Sexo e levada ao extremo com Lua de Fel.

A organização do espaço nos filmes de Polanski obedece a duas principais – e radicais – determinações: de um lado o confinamento geográfico, limitando a resolução da história às paredes de uma residência (A Morte e a Donzela), ou aos arredores de uma praia com um castelo (Cul-de-sac); do outro lado a indefinição labiríntica quanto às dimensões do território kafkiano, chegando a configurar toda a cidade, ou o país, ou o mundo, como um conluio inextricável, à maneira do espaço coletivo e unanimista do antigo realismo americano (Busca Frenética, Chinatown, O Último Portal). Ou talvez não haja tal separação, com o casual e o conspiratório compartilhando um mesmo terreno no qual se confundem. Nesse caso, não importa se partindo dos vizinhos mais próximos (O Bebê de Rosemary), os filmes de Polanski querem buscar a sociedade na sua amplitude.

Repulsa ao Sexo (Repulsion) estaria inserido nessa lógica terceira: a influência dos agentes externos e do tecido social circundante não anula a importância do fator intrínseco, desde a casa e a família até a própria mente (e sua subversão). Feito em 1965, o filme é a estréia internacional de Roman Polanski e traz a atriz Catherine Deneuve, no auge de sua beleza, interpretando Carol, mulher retraída e tímida que aos poucos revela uma complexa problemática sexual. Como o próprio diretor assume em autobiografia, a ansiedade de fazer seu primeiro longa no Ocidente era tamanha que ele teria aceitado até menos do que a já pequena quantia que recebeu do Compton Group, que financiou Repulsa ao Sexo (e que estava acostumado a produzir o chamado pornô soft-core).

Já na seqüência dos créditos iniciais, com primeiríssimos planos do olho de Carol (a princípio imóvel e depois se mexendo e piscando), Repulsion estabelece um diálogo com Hitchcock que será retomado mais intensamente em O Inquilino (1976), filme que faz alusões explícitas a Psicose, Janela Indiscreta e Vertigo. A câmera, em seguida aos créditos de Repulsion, se distancia e mostra o rosto inteiro de Carol, absolutamente impassível no salão de beleza onde trabalha como manicura. Depois, no caminho para casa, ela é assediada por um desconhecido. O espectador é introduzido no filme como um voyeur, sim. Sua participação, no entanto, é revestida de ambigüidade: não vê apenas as andanças de Carol, frágil e desejável ao mesmo tempo (tensão que o filme trabalha constantemente), mas também as expressões de desconforto e medo com que ela responde aos assédios. Podemos desejar Carol da mesma maneira que Colin, o rapaz boa-pinta e insistente que se interessará por ela num momento seguinte. Em qualquer filme de gênero o romance seria dado como certo, mas nosso desejo de conquista, projetado nesse personagem de Briton Jon Fraser (espontâneo e inocente na sua aparência de bom moço), acaba rapidamente frustrado pelo inquebrantável e doentio bloqueio de Carol, sempre inexpressiva e mecânica nas suas atitudes.

Se em O Inquilino a conspiração que quer pôr fim à vida do protagonista parece rondar em torno dos moradores do prédio para o qual ele se mudou, em Repulsa ao Sexo o universo perseguidor é tanto a sociedade machista (o comportamento do amante da irmã mais velha de Carol; as reclamações da companheira de trabalho e das suas clientes sobre os homens; os desconhecidos que a assediam na rua; Colin e a obsessão em querer saber por que motivo ela age tão estranhamente) como a exigência/valorização de beleza na mulher por parte da cultura ocidental contemporânea (a própria escalação de Catherine Deneuve, ela mesma um objeto sexual explorado pela indústria cinematográfica; o fato de Carol trabalhar num salão de embelezamento). Ao deflagrar a objetificação/fetichização da mulher na cultura de massa, e as conseqüências drásticas que isso pode ter, o filme se antecipa um pouco às teorias feministas (como as de Laura Mulvey, por exemplo) que viriam a mapear a essência paternalista, escopofílica e falocêntrica do cinema de gênero hollywoodiano.

Estruturado como autêntico thriller psicológico – supremacia da sugestão, ambigüidade narrativa (os estupros, as rachaduras na parede e as mãos que saem do escuro para agarrá-la ocorrem ou são delírios?), ambientes densos, o cenário se modificando conforme a personagem –, Repulsa ao Sexo se mostra perturbador e bastante rico em nuances (objetos de caráter simbólico, olhares cujas direções são reveladoras). Os êxitos estéticos de Polanski nesse filme costumam ser tão ou mais elogiados que o tratamento cuidadoso dado a Carol, personagem simultaneamente angelical e traiçoeira, à qual foi consignada tanta indeterminação que ora dividimos com ela a revolta contra o machismo opressor (o cobrador de aluguel querendo se aproveitar) ora nos resignamos com sua frieza (o assassinato do rapaz que aparentemente tinha se apaixonado). A abordagem aos moldes de um caso clínico, como aponta o desfecho, cria um distanciamento enorme – mas é também o que mantém a força de Repulsa ao Sexo, filme contundente na sua recrudescência gradativa.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

Apresentação de Eduardo Valente e Ruy Gardnier. Convidado: Luiz Carlos Oliveira Jr.

Repulsa ao Sexo
Repulsion, 1965, p&b, 105’
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Roman Polanski e Gérard Brach
Produção: Gene Gutowski
Música: Chico Hamilton
Fotografia: Gilbert Taylor
Montagem: Alastais McIntyre
Elenco: Catherine Deneuve (Carol Ledoux), Ian Hendry (Michael), John Fraser (Colin), Yvonne Furneaux (Helen Ledoux), Patrick Wymark (senhorio), Renee Houston (Srta. Balch), Valerie Taylor (Madame Denise), James Villiers (John), Helen Fraser (Bridget), Hugh Futcher (Reggie), Monica Merlin (Sra. Rendlesham), Imogen Graham (manicure), Roman Polanski (músico)

Thriller psicológico ambientado na cidade de Londres, Repulsa ao Sexo conta a história de Carol (Catherine Deneuve), uma jovem tímida e problemática que foge dos homens e tem horror ao sexo. Ela mergulha num universo de alucinações e terror quando passa um fim-de-semana sozinha no apartamento da irmã Helen (Yvonne Furneaux), que está em viagem com o namorado Michael (Ian Hendry). No apartamento, passa a fantasiar que está em perigo e aos poucos vai perdendo a sanidade.

Filmografia de Roman Polanski
1962 Noz W Wodzie (A Faca na Água)
1962 Les Plus Grands Escroqueries du Monde (As Maiores Vigarices do Mundo) [episódio]
1965 Repulsion (Repulsa ao Sexo)
1966 Cul de Sac (Armadilha do Destino)
1967 The Fearless Vampire Killers or Pardon Me But Your Teeth Are On My Neck (A Dança dos Vampiros)
1968 Rosemary’s Baby (O Bebês de Rosemary)
1971 Macbeth (Macbeth)
1972 Che? (Quê?)
1974 Chinatown (Chinatown)
1976 Le Locataire (O Inquilino)
1979 Tess (Tess de Polanski)
1985 Pirates (Piratas)
1988 Frantic (Busca Frenética)
1992 Lunes de Fiel / Bitter Moon (Lua de Fel)
1994 Death And The Maiden (A Morte e a Donzela)
1999 The Ninth Gate (O Último Portal)
2 002 The Pianist (O Pianista)

Citações de Roman Polanski:

Tendo uma idéia precisa do tipo de terror que queríamos transmitir, [Gérard Brach e eu] buscamos inspiração em situações que nos eram familiares. Qualquer pessoa, uma vez ou outra, experimentou um pavor irracional de alguma presença sinistra em sua casa. Uma ocasional troca de moóveis, um assoalho que estala, um quadro caindo da parede — qualquer coisa pode disparar essa sensação.

Trabalhar com Catherine Deneuve era como dançar um tango com um parceiro super-hábil. Ela sabia exatamente o que eu desejava dela no set. Entrava direto no âmago do seu papel — tanto, que quando a filmagem terminava ela própria parecia alheia e um pouco aloucada.

(Roman de Polanski, Ed. Record, RJ, s/d)