Greed - Ouro e Maldição,
de Erich Von Stroheim


Antes das leis: o Cinema

A leis e as forças de suas normas. Os gestos que edificam e tipificam a contra-face da ordem. Depois de uma pequena introdução factual enumerando os dados e estatísticas tão comuns ao telejornalismo cotidiano (aqui narrado em corpo-presente pelo diretor), a câmera encontra no rosto de seu ator-personagem, a imagem de seu desafio: construir uma invenção ficcional que saiba ser nem "retrato de realidade" nem glamourização esvaziada de clichês sociais. Fonte de inspiração e ficção, o rosto de Fernando Ramos da Silva é o enigma que Babenco nos convida a olhar um pouco mais de perto.

Olhares arregalados; meninos são enfileirados e levados para dentro do sugestivo "Pavilhão Euclides da Cunha". Hector Babenco deixa clara a ausência de uma mediação, vai deixando de lado todas as possíveis tentativas de identificação que não a daqueles rostos ainda sem nome.

A violência silenciosa do estupro, as demonstrações de força como forma de manutenção das amizades, as alegrias frugais de um jogo de futebol. O rosto enigmático de Pixote vai ganhando cores e história: o filme se nega a ser sobre Pixote, o filme se nega a encarnar Pixote. O filme se dá com Pixote. Somos convidados/lançados a caminhar a seu lado, na mesma amizade seca com que os meninos se encontram. Não há explicação para a presença de Pixote no reformatório ou descrições causais, Babenco opta pela voz do menino: "Minha avó ficava me enchendo o saco, aí eu fugi." Entre a ingenuidade e a coragem, a fuga de Pixote é a imagem do que se confunde entre o erro e o acerto, entre a perdição e a liberdade. Babenco desafia o espectador a olhá-los não como crianças sem rumo, mas como protagonistas de um rumo-outro, construído no imaginário da brutalidade e do antagonismo diante do mundo. A inocência de Pixote funciona como ferramenta para que o roteiro vá verbalizando as tensões vividas entre os meninos (o excesso de palavrões serve como o sublinhar de sua naturalização): mapeando cacoetes de linguagem, jeitos de olhar. O menino que antes vagava pelas ruas encontra não a sua "re-integração pacífica" à sociedade – mas os códigos de conduta, violência e tensão que comporão o arsenal de sua maturidade. "Vamos quebrar essa merda toda!" Colchões queimados, gritos, a expressão da raiva que toma o corpo dos meninos e ultrapassa as interpretações judiciais.

No momento em que fogem, Pixote, Dito, Lilica e Chico tomam para si, finalmente, a condução de suas narrativas. As imagens (com cacoetes documentais) de seus furtos no centro de São Paulo realizam uma operação preciosa: sobre os gritos de "pega ladrão" e "vagabundos", os "trombadinhas" cotidianos dos noticiários da TV ganham vozes, modos de falar. Não redimindo-os de seus atos ou vitimizando-os, Babenco dá aos meninos a dignidade de seus afetos, de suas bagagens irredutíveis. Amores, confianças, raivas, dúvidas – os quatro jovens são agora uma turma, dividindo os banhos nos chafarizes e os cobertores à noite. " Qualquer dia desses, a gente chega lá". Entre São Paulo e o Rio, seus desejos de consumo e vingança vão de um revólver novo "para ser respeitado" a uma calça bordada.

Quando a personagem de Marília Pêra entra no filme, o cenário se completa: família fora de padrões, Pixote, Lilica, Dito e Sueli vivem juntos no pequeno apartamento. Tentam viver juntos. A força de Marília Pêra no papel da prostituta abandonada por seu amante/cafetão dá o tom da melancólica alegria desse último ato: o aborto, o beijo na boca de Pixote, a dança com Dito. Órfãos, dividem a felicidade e o medo de se ligarem uns aos outros, de admitirem desejos. Quando a tragédia se dá pelas pequenas de Pixote, Sueli e o menino ficam sós. Imagens da maternidade, do cuidado, do medo e da desconfiança se misturam – Pixote reinventa em Sueli o lugar de seu aconchego, e por alguns segundos retorna a uma pré-vida, a um recomeço silencioso (a imagem da Pietá é um marco no filme). "Sua mãe está aqui", diz Sueli, mas logo desiste e afasta seu corpo. Pede para que o menino vá embora.

Andando com sua arma na cintura, Pixote pisa nas linhas do trem. A cidade é grande e o cinema nem tanto – o menino vai embora no entremear dos trilhos. A câmera deixa de acompanhá-lo, observa sua partida. Pixote não cabe no filme, anda para depois. Sua vida escapole às margens da narrativa. Indefinido, o filme se interrompe ali, quando Pixote mais uma vez foge de casa (da promessa de casa que havia construído). Se mistura à cidade, volta às imagens de telejornais. Babenco faz em Pixote um filme sem mediação, sem conclusão, sem abrigo seguro ao espectador. Entregue a seus personagens descobre-se em discurso para além dos casos morais, das teses conclusivas. A tese de Babenco é dramática, é ficcional, é cinematográfica – seu gesto é o de inscrever o lugar de Pixote no painel de afetos das grandes cidades e dar a ele o lugar de sua dramaturgia. Carregado, verborrágico, corajoso, excessivamente melodramático em sua trilha sonora... A lei do mais fraco é o lugar onde vive aquele corpo-menino diante de um sistema judicial-carcerário que o ignora, mas que quer detê-lo como a um animal perdido e sem vontades. Babenco leva ao limite a possibilidade de um cinema de amizade com o outro, e faz de Pixote um gesto de entrega à imagem de nossas margens, aos afetos de nossas ruas, aos olhos de nossos meninos. Antes dos julgamentos, antes das leis: o cinema.

Felipe Bragança

Pixote – A Lei do Mais Fraco
Brasil, 1981, Cor, 122'
Direção: Hector Babenco

Roteiro: Hector Babenco e Jorge Duran.
Fotografia: Rodolfo Sanchez.
Montagem: Luiz Elias.
Música: John Neschling.
Produção: Hector Babenco, José Pino, Paulo Francini e Embrafilme
Elenco: Fernando Ramos da Silva, Marília Pêra, Jardel Filho, Rubem de Falco, Elke Maravilha, Tony Tornado, Beatriz Segall.

Sinopse:
Pixote foi abandonado por seus pais e rouba para viver nas ruas. Ele já esteve internado em reformatórios e isto só ajudou na sua "educação", pois conviveu com todo o tipo de criminoso e jovens delinqüentes que seguem o mesmo caminho. Ele sobrevive se tornando um pequeno traficante de drogas, cafetão e assassino, mesmo tendo apenas onze anos.

Filmografia de Hector Babenco:
1975 O Rei da Noite
1977 Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia
1981 Pixote, a Lei do Mais Fraco
1985 O Beijo da Mulher Aranha (The Kiss Of The Spider Woman)
1987 Ironweed (Ironweed)
1991 Brincando nos Campos do Senhor (At Play In The Fields Of The Lord)
1998 Coração Iluminado
2003 Carandiru

Citações:

Jorge Durán, roteirista, sobre Pixote:
"Ficamos uns três meses intensamente coletando depoimentos de pessoas e suas experiências em reformatórios. O resultado foi escrito por mim com o acompanhamento do Babenco. Interessante é que o filme foi muito criticado na época aqui no Brasil, devido à visão negativa que demos daquelas instituições Apesar de termos sido chamados de agressivos, violentos e sensacionalistas por parte da crítica, a realidade naquela época já era muito pior do que a mostrada em Pixote, pois apesar de meninos, muitos dos encarcerados já eram veteranos e experientes em matéria de criminalidade...uma situação praticamente sem saída..."

Hector Babenco:
"Pixote teve outra motivação (em relação a Carandiru), outro grau de naturalismo. Era mais um registro de individualidade, tratava de tirar dos meninos a etiqueta social "menor carente" que escondia um ser humano com nome, família e desejos. Fui motivado pela indignação de ver o problema do menor, essa coisa pungente, não ser levado a sério. No Carandiru vou falar das histórias que um médico ouviu. Se são verdades ou mentiras, não me interessa. O que me motiva é o fascínio que elas me despertam."