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       O Demônio das Onze Horas 
        / A Chinesa, 
        de Jean-Luc Godard 
          
        Pierrot Le fou, França, 1965, Cor 
        La Chinoise, França, 1967, Cor 
      Pierrot 
        e Guillaume, meus amigos 
       Às vezes 
        acontece da obra de um realizador ser incorporada por certos discursos 
        que acabam ressignificando tudo aquilo que esse próprio realizador já 
        construiu. No caso do cinema de Jean-Luc Godard, esses discursos se tornaram 
        dominantes e insistem em nos dizer que o importante é a desconstrução 
        da narrativa, a relação de amor e ódio com a linguagem dominante, o hermetismo, 
        a multiplicidade de leituras, etc. Não que haja nessas leituras algo de 
        explicitamente errado: pelo contrário, são cavalos de batalha importantes 
        e que encontram sempre nos filmes de Godard combustível suficiente para 
        a busca de novas linguagens, fuga do óbvio, imbricação do cinema com outras 
        artes e a própria afirmação do cinema como "arte nobre". O que essas leituras, 
        no entanto, não deixam entrever é como assistir a um filme de Jean-Luc 
        Godard é mais do que um passatempo lógico ou um quebra-cabeças difícil 
        de montar: qualquer um de seus filmes, do começo de carreira mais palatável 
        à proliferação difusa de signos e citações dos filmes mais recentes, são 
        experiências emocionais muito fortes e irredutíveis a qualquer intelectualismo 
        que se queira associar a eles (mesmo que o jogo associativo seja legítimo 
        e, no caso em questão, prolífico). Cineastas eruditos, há vários. Experimentadores 
        de linguagem, diversos. No entanto, aquilo que faz com que o nome de Jean-Luc 
        Godard permaneça entre os maiores artistas do cinema é a extrema sensibilidade 
        com que ele lida com a matéria cinematográfica para cativar em seus espectadores 
        sentimentos até então pouco vistos e experimentados. Não é que seus filmes 
        sejam complicados demais para a maioria dos espectadores; na verdade, 
        eles são complicados de menos. 
       Tomemos 
        O Demônio das Onze Horas, tradução um tanto sem graça para Pierrot 
        le Fou (Pierrot, o Louco). Sua sinopse, tão pequena, dá conta de toda 
        a intriga do filme, e não há nada de especificamente difícil nela. Acontece 
        que muitos de nós, espectadores habituais que somos de ficção tradicional, 
        nos acostumamos a acreditar que a maioria das atrações de um filme decorrem 
        de sua intriga. Pressuposto dos mais bobos, uma vez que nos dispomos a 
        "parar" de ver a intriga num filme musical quando entra um número de canto 
        e dança. Em Pierrot le Fou há números musicais fascinantes (Anna 
        Karina cantando "Ma Ligne de chance" ou "Jamais je ne t'ai dit que je 
        t'aimerais toujours"), e deles nos dispomos francamente a fruir. Mas em 
        Godard tudo é musical, ou ao menos todas as situações exigem que nos aproximemos 
        delas de maneira "musical". Quando Marianne chama Ferdinand de Pierrot 
        e ele responde que seu nome é Ferdinand, isso existe muito menos em função 
        de um significado escondido (a possível esquizofrenia do personagem, por 
        exemplo) do que de uma simples refrão que povoa o filme e que não tem 
        sentido nenhum além de dar charme aos olhos do espectador à relação dos 
        dois.  
      Em A 
        Chinesa, por exemplo, muitos tentam ver no filme um pastiche ou a 
        glorificação dos personagens marxistas-leninistas que se enfurnam durante 
        as férias num apartamento burguês para aprender a fazer a revolução maoísta 
        na França. Caso notório de tentar ressignificar conteúdos ao invés de 
        tentar ver o que lá está: os personagens de A Chinesa, jovens em 
        processo de encontrar seu lugar no mundo, tateiam no escuro à procura 
        de verdades, mas o que Godard filma é justamente a verdade dessa procura. 
        E essa verdade não é muito diferente da verdade musical de Pierrot 
        le Fou: estamos no mundo tentando povoar nosso cotidiano de coisas 
        que nos interessam, mas o sentido completo dessa experiência nos falta 
        (nos dois filmes, isso acontece de maneira geral porque o resto do mundo 
        está preocupado demais em ganhar seu quinhão ou interpretar de forma fria 
        e automática os papéis sociais que lhes são previamente destinados). 
       Ferdinand 
        e Guillaume, Marianne e Véronique são personagens que saem de seu meio 
        social porque não conseguem viver dentro dele. Mantendo-se dentro do conjunto 
        de valores da sociedade, não haveria a necessidade de procurar nada. Traçando 
        um ponto de fuga, deve-se buscar uma arma para viver: nomadismo em 
        Pierrot, a política em A Chinesa. É uma constante em Godard 
        que a vida dentro da sociedade impede a lilberdade (talvez daí a grande 
        força de resistência que assumem seus filmes): a partir dessa fuga, então, 
        existe a obrigação de seus personagens em construir para si mesmos um 
        terreno de liberdade, não mais submetidos às limitações dos valores de 
        classe média, e com ela atingirem movimentos de prazer e sofrimento próprios 
        (um não está dissociado do outro). Alguns conseguirão (os heróis de Alphaville), 
        outros não. 
       Un 
        film en train de se faire/Um filme em processo de composição. Esse 
        é o subtítulo de A Chinesa, mas poderia ser atribuído indiscriminadamente 
        a qualquer filme de Godard (e, mais além, à maioria das mais liberadoras 
        obras de arte). Marianne e Ferdinand, depois da partida vertiginosa, precisam 
        "compor" uma nova forma de vida; o grupo de jovens que namora fielmente 
        a ortodoxia chinesa (frontalmente oposta ao comunismo oficial da Europa 
        naquele momento, cabe dizer) idem. Não só os filmes como os próprios personagens 
        estão em processo de construção. Não há modus operandi para fazer funcionar 
        um filme ou uma vida, ambos são aquilo que é feito na contingência, aceitando 
        alguns dos dados que vêm se adicionar e recusando outros.  
      Sim, há 
        muitas referências nos filmes de Godard: pode-se tentar reconhecer algumas 
        ou simplesmente considerá-las como um amálgama que faz sentido sozinho, 
        sem necessidade de notas de pé de página. Guillaume Meister é um personagem 
        de um romance de formação de Goethe, Kirilov saiu das páginas de Dostoiévski, 
        assim como em Pierrot le Fou há Aragon e Shakespeare. Nada é gratuito 
        (saber do livro de Goethe adiciona ao filme o caráter de "filme de formação", 
        por exemplo), mas ninguém precisa ser doutor em literatura para ter prazer 
        em presenciar os caminhos e descaminhos dos personagens. Godard, considerado 
        como "autor dos autores" do cinema, trabalha sempre numa linha de indefinição 
        da autoria (trabalha declaradamente em cima de citações de outros autores), 
        indefinição essa que converge com a forma como vê o mundo e como se vê 
        (e como vê seus personagens) no mundo. Em chave romântica, essa forma 
        poderia ser definida por uma das canções que Anna Karina interpreta em 
        Pierrot le Fou (autoria de Phillipe Katerine): "Jamais diga que você 
        vai me amar pra sempre / jamais me prometa me adorar por toda a vida / 
        jamais troquemos essas declarações, me conhecendo e te conhecendo / fiquemos 
        com o sentimento que nosso amor, dia a dia / que nosso amor é um amor 
        sem amanhã". Nessa incerteza do amanhã, nessa indefinição, a arte 
        e a vida se fazem.  
      Ruy Gardnier 
         
        
      "Sobre 
        Pierrot le Fou, todo o fim foi inventado na hora, ao passo que o começo 
        foi todo pensado. É uma espécie de happening, mas controlado e dominado. 
        Dito isso, é um filme completamente inconsciente. Dois dias antes de começar 
        a filmar, eu jamais tinha estado tão inquieto. Eu não tinha nada, quase 
        nada, só o livro (Obsession, de Lionel White). E um certo número de locações. 
        Eu sabia que seria perto do mar. Tudo foi filmado, digamos, como no tempo 
        de Mack Sennett. Talvez eu esteja me separando progressivamente do cinema 
        que se faz hoje. Quando vemos os filmes antigos, não dá a impressão que 
        as pessoas trabalham entediadas, sem dúvida porque o cinema era algo mais 
        novo."  
      "É exatamente 
        porque Véronique percebeu que foi tudo uma ilusão que ela poderá transformar 
        sua experiência em algo real. Quando ela fala doce e calmamente, ela fala 
        como uma chinesa. Na embaixada chinesa eu fiquei impressionado com o tom 
        doce de voz deles. O tom dela é o de um relatório de final de ano. Ela 
        percebeu que não deu um grande passo adiante; ela subiu alguns degraus, 
        mas não foi realmente um passo arrojado." 
       "Se o 
        filme (A Chinesa) se fechar completamente no cinema e não dialogar com 
        os militantes, é porque o filme é ruim e reacionário."  
      "Fazer 
        filmes e escrever críticas são duas coisas diferentes, mas ligadas. A 
        crítica tem uma função útil que não deve ser negligenciada: ela tem uma 
        virtude purificadora. É em relação a si mesmo, primeiramente, que se deve 
        fazer crítica, e depois em relação ao cinema. Eu me considero fazendo 
        sempre crítica, e ela me serve da mesma forma."  
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