Noites Sem Dormir, de Claire Denis

J'ai Pas Sommeil, França, 1994, Cor


Entrevista feita por Thierry Jousse e Frédéric Strauss, Cahiers du Cinéma 479-80, maio de 1994

Noites sem Dormir é um filme que parece ser a concretização dos precedentes: o que não estava talvez arrematado em S’en fout la mort realiza-se aqui, a encenação dos corpos, por exemplo, atinge uma real densidade, uma plenitude.

Talvez isso ganhou mais corpo agora... Em todo caso, há agora mais corpos nesse filme. Não é piada, a tomada dos corpos é de fato a única coisa que me interessa. É intimidante demais, sobretudo quando é o corpo dos homens. Eu não posso dizer que tinha medo do tema de Noites sem Dormir, mas do começo ao fim, fui me colocando questões sobre o olhar que se poderia ter sobre um projeto como esse. O corpo de delito, o corpo de Camille, foi evidentemente um objeto de observação, um mistério. E era preciso olhá-lo dessa forma. Minhas dúvidas e hesitações aumentavam no momento do roteiro e da preparação do filme. Mas quando eu comecei a procurar jovens para o papel de Camille, fiquei diante dos corpos, e de corpos aos quais eu ia pedir bastante coisa. Me dei conta muito rápido que não seria com atores profissionais. Os que eu vi, mesmo iniciantes, já estavam comprometidos demais em algo para dar a impressão de flutuação que eu procurava, eles tinham tomado a decisão de ser atores e eu me via diante de homens, ao passo que eu queria que Camille tivesse ainda uma dúvida sobre o que ele é. Procurei nas casas noturnas, praticamente como uma voyeuse. Vi numa cabine telefônica um jovem alto e mestiço com um brinco e percebi que eu ainda tinha o reflexo de detalhar sua imagem, como quando procurava meu ator. Passei muito tempo olhando corpos esperando reconhecer o de Camille! O filme só ganhou corpo quando apareceu Richard Courcet. Ele morava num albergue e ouviu falar do filme através de colegas que lhe aconselharam a tentar a sorte. Ele nunca tinha feito nada em cinema.

Na origem de Noites sem Dormir, tem um fato real, a história de Thierry Paulin, assassino de senhoras que foi preso em Paris em 1987.

Sim, mas isso nasceu de uma vontade completamente contraditória. Nunca tive vontade de contar esse fato real, mas aconteceu que diversas coisas na minha vida me levaram a isso. Cruzei com Paulin sem saber quem era várias vezes. Uma pessoa com quem eu trabalhava num roteiro morreu no mesmo dia de Paulin, um 14 de abril... Essa história voltava o tempo todo sem que eu corresse atrás dela, havia sinais demais. Não sou muito afeita aos símbolos mas acabei achando isso estranho. Tinha também lido uma entrevista muito interessante com Baudrillard falando do caso Paulin e da idéia de serial killer em nossa sociedade, sobre o fato de que esse homem de quem tanto se falou na imprensa – com títulos inverossímeis, aliás, como "A França com medo", por exemplo – se dissolveu completamente hoje, desapareceu. Os grandes assassinos franceses são praticamente transformados em heróis, mas Paulin não teve esse estatuto. Pesquisei, mantive reservas escrevendo o roteiro, uma distância. Era impossível para mim imaginar fazer um filme estritamente sobre esse caso: Paulin morreu mas seu cúmplice está na prisão pagando vinte anos e sua mãe mora na França. Era desnecessário que ela abrisse o jornal e fosse submetida novamente aos horrores que ela vivenciou nos momentos reais.

O roteiro foi escrito com a mesma estrutura que o filme teve? Ou você trabalhou as trajetórias dos três personagens principais separadamente antes de filmar?

Com Jean-Pol Fargeau, meu co-roteirista, nós nos perguntamos se íamos trabalhar com personagens separados para decidir depois os cruzamentos, mas percebemos que era muito mais interessante seguir escrevendo como num lance de dados, os assassinatos não ocorrendo nem no começo nem no fim, num lugar aleatório. Começamos de fato a escrever o roteiro pela cena do helicóptero, a primeira do filme. Mas, no momento da filmagem, essa construção ficou muito angustiante. Eu tinha a impressão de que eu jamais reencontraria essa sensação da cidade e dos cruzamentos, que ela só funcionaria no papel. Aiknda mais porque eu não filmei de forma cronológica mas pelas datas dos atores e das locações e, tendo previsto a canícula, uma Paris abafada – daí a cena do teto, que restou dessa idéia –, e acabou que choveu quase o tempo inteiro. Era muito importante para mim que muitas cenas se passassem na rua, porque é onde as pessoas se cruzam: o verão, as pessoas se roçam, ficam nas varandas dos cafés e olham para os outros bem mais que no inverno.

O que o filme tem de mais surpreendente é a forma de deixar os crimes numa opacidade absoluta, sem nenhuma tentativa de explicação, sobretudo no fato de não dramatizá-los: as cenas dos assassinatos são impressionantes porque não há efeitos de encenação. Como essa forma se impôs?

A partir do momento em que eu me aventurava pela sombra desse grande fato real, o preço a pagar era filmar os assassinatos. Era complicado, nesse tipo de narração, evocar a série – ao passo que não é complicado para John Woo. Era preciso que houvesse ao menos repetição, fria e não-explicada. Cheguei à solução dos dois assassinatos para evocar a série. Como não podemos escapar dessas cenas, também não podemos mascarar os assassinatos atrás da porta, sob a mesa, num canto; é preciso que eles sejam filmados em campo inteiro. Ao mesmo tempo, essas cenas proíbem a montagem, é preciso filmá-las num único plano. Senão, é nojento ou não é muito moral, porque o crime fica enfeitado. Com os assassinatos, foi um trabalho de encenação à parte, é preciso perguntar-se como se vai filmar a morte. É por isso que eu gosto muito dos filmes de John Woo, porque é uma verdadeira reflexão sobre a imagem da morte.

Você foi assistente de direção, notadamente de Wim Wenders, antes de passar à direção. Foi por vontade de aprender o ofício de cineasta ou para ganhar a vida?

Fui assistente de Wenders, mas também de Dusan Makavejev, Costa-Gavras e Jacques Rivette, entre outros. Foi um percurso muito elatório. Inicialmente, queria ganhar a vida. Durante todo um período, pensei que foi um erro ter feito o IDHEC e querer fazer filmes, porque na verdade eu queria fazer outra coisa. Falando com Jacques [Rivette], e depois trabalhando em Paris, Texas, que foinum filme com muitos problemas de produções resolvidos uns depois dos outros durante as filmagens, sempre no último minuto, percebi que em certas condições eu poderia aceitar fezer filmes sem sofrer demais daquilo que eu acreditava ser o estado da produção. Eu ficava remoendo diversas histórias sobre produção. De um momento pra outro, tive a sensação de aprender, não a fazer filmes mas a entender como se pode encontrar o seu lugar em relação à produção, encontrar sua liberdade. Acho que não é preciso ser assistente para entender isso, mas aconteceu assim pra mim.

O conjunto dos seus filmes até agora [1994] não parece forçar o reconhecimento e a progressão do que se pode chamar uma carreira, algo que o cinema francês fornece suficientes exemplos. Temos, ao contrário, o sentimento de uma liberdade, afirmada por escolhas muito pessoais.

Não sou independente ao ponto de dizer "eu sou assim, eu sou assado, faço o que quero". É mais complicado. Eu sou movida por idéias diretrizes, então tento seguir com liberdade naquilo que me interessa, mas me obrigo a ultrapassar etapas. Não posso dizer que me sinto o tempo todo num espaço livre onde vago de um fruto a outro. Não vivo assim. Vivo como uma busca.

Mas não como uma competição.

Não, francamente isso eu não quero. Não gosto quando se compara os filmes, quando se coloca uns acima dos outros. É verdade que há filmes que eu detesto e outros que eu adoro fortemente, mas tento não fazer classificações. Para o cinema, já existe uma sanção terrível que são os ingressos. Isso basta. Existe uma idéia mundana demais na competição.

A idéia de que ser cineasta hoje dá de partida um estatuto social.

Sim, é curioso porque eu percebi isso há pouco tempo, fazendo os créditos de Noites sem Dormir. As cartelas chegam na sala de montagem e eu vejo "um filme de". Na mesma hora eu já não podia mais ver essa fórmula. Agora eu prefiro "realização". Não é por humildade. Há muitos dias, semanas e meses que passam para se fazer um filme, muitas dúvidas também. "Realização" é concreto. "Um filme de" é como o celofane de um buquê.

 

Tradução de Ruy Gardnier.