Ninotchka, de Ernst Lubitsch

EUA, 1939
Não é comum haver no cinema
um encontro de diretores de primeira grandeza para culminar num filme
de primeira grandeza. Muito menos um fenômeno de "passagem de bastão"
como ocorre no atletismo, em que o corredor transporta sua posição
para um corredor ainde descansado que tratará de percorrer a mesma
pista. Pois, no terreno das comédias sofisticadas e ácidas
com comentário político e social fino, hoje só conseguimos
ver duas estrelas que ofuscam todo o resto: Ernst Lubitsch e Billy Wilder.
Não é tanto a lógica do velho artista cansado/novo
artista ávido, porque Lubitsch ainda dirigiria por mais dez anos,
assinando grandes filmes como Ser ou Não Ser (1942) ou O
Diabo Disse Não (1943), mas sim a aprendizagem de um jovem
artista (em 1939, Wilder tinha 33 anos e apenas um filme, Mauvaise
Graine [33], realizado na França) com o único comediante
de sua época que podia ensiná-lo um "touch", um toque que
faça com que seus filmes não pareçam com quaisquer
outro, mas que tenham marcas distintivas que destaquem suas obras no meio
da infinidade de outros filmes com menor personalidade. Desse delicioso
aprendizado que, é certo, já havia se iniciado num filme
anterior de Lubitsch, A Oitava Esposa do Barba Azul (1938), nasceu
Ninotchka.
Talvez o melhor elogio a ser feito a Ninotchka
seja transcrever e copiar todas as tiradas geniais que saem da boca
dos personagens e do esplêndido roteiro de Billy Wilder e Charles
Brackett (co-roteirista e produtor dos filmes de Wilder ao longo da década
de 40, até Crepúsculo dos Deuses). Há, no
filme, diversas frases e diálogos que estariam tranqüilamente
numa antologia da comédia: "Métodos capitalistas: acumulam
milhões de mau negócio em mau negócio" (os três
russos comentando o preço baixo que um mercador oferece pela jóia);
– "Por que você quer pegar a minha mala?", pergunta a recém-chegada
Ninotchka ao bagageiro da estação de trem; "É meu
trabalho." "Isso não é trabalho, é injustiça
social." "Isso depende da gorgeta", replica o funcionário; ou então
a clássica "Você está se repetindo", emitida por Ninotchka
quando o galanteador Leon fala duas vezes o nome de sua musa.
Mas ater-se aos diálogos, por mais
geniais que sejam (e são um dos mais geniais da história
da comédia), seria ainda uma injustiça grande com todo o
trabalho de direção realizado por Lubitsch. Nunca em outro
filme a câmera de Lubitsch foi tão móvel e leve quanto
em Ninotchka: de toda a seqüência no salão de baile
até os travelings que dilatam o espaço da já suntuosa
"suíte imperial" em que está hospedada a comitiva russa,
a câmera desempenha uma função narrativa e expressiva
que dificilmente é assinalada até hoje ao trabalho de iluiminação
e construção de espaço em se tratando de comédia
(simplicidade e muita luz sendo os dois axiomas básicos da fotografia
de comédias). A acrescentar, ainda, os angelicais closes em Greta
Garbo, que nunca apareceu tão linda e frágil quanto aqui.
Uma coisa curiosa sobre Ninotchka é
o lugar que o filme se coloca na obra de Ernst Lubitsch. Ao longo da década
de 30, Lubitsch tornou-se famoso realizando pequenas operetas (entre 65
e 80 minutos) sobre a glamurosa, frívola e excessiva vida dos grandes
centros da Europa (Paris sobretudo). O luxo da cenografia e dos figurinos
deslumbravam os olhos, enquanto o jogo de gato e rato entre os persoangens
e a futilidade de seus gestos constituíam uma poderosa sátira
ao recente – nos anos 30 – fenômeno do consumismo nos Estados Unidos
(partindo do ponto de vista que, mesmo que situando a ação
no lugar mais longínquo possível, um filme sempre é
sobre a praça para a qual é feito imediatamente). Entre
seus grandes filmes do período estão Ladrão de
Alcova (1932) e Sócios do Amor (1933). A primeira parte
de Ninotchka é em muitos aspectos tributária dessa
fase: agilidade nas cenas, quartos de hotel, intriga de falsas realezas.
Não há propriamente personagens, mas tipos construídos
a partir de situações burlescas.
A segunda parte de Ninotchka, que
aprofunda e altera as características dos protagonistas (transformando
a opereta em comédia dramática), irá dar o tom de
toda filmografia posterior de Lubitsch. Os personagens ganham mais relevo,
o sentimental associa-se à comédia e a intriga política
consegue um perfeito casamento com o drama emocional. O filme seguinte
a Ninotchka, não à toa, é A Loja da Esquina
(1940), possivelmente a maior comédia romântica já
feita.
Quem sabe o "toque de Lubitsch", tão
comentado mas curiosamente tão pouco definido, tivesse sido tão
somente um gosto pronunciado pela provocação associado à
defesa um tanto satírica da libertinagem, tudo isso regado por
uma mão muito cuidadosa em fazer com que todos os planos de cada
um de seus filmes comuniquem algo?
Ruy Gardnier
Ninotchka
Ninotchka, EUA, 1939, P&B, 110'
Direção: Ernst Lubitsch
Roteiro: Billy Wilder, Charles Brackett, Walter Reisch
Produção: Ernst Lubitsch
Fotografia: William H. Daniels
Montagem: Gene Ruggiero
Música: Werner R. Heymann
Elenco: Greta Garbo (Ninotchka), Melvyn Douglas (Leon), Ina Claire (duquesa
Swana), Bela Lugosi (Razinin), Sig Rumann (Iranoff), Felix Bressart (Buljianoff),
Alexander Granach (Kopalski), Richard Carle (Gaston), Gregory Gaye (Rakonin),
Rolfe Sedan (gerente do hotel), Edwin Maxwell (Mercier)
Sinopse:
Uma comissão de três representantes do governo soviético
chega em Paris, anos antes do estouro da Segunda Grande Guerra. Para evitar
que o terrível inverno deixe o povo russo sem gêneros alimentícios,
eles devem vender parte dos tesouros apreendidos pela Revolução
Russa. Quando a grã duquesa Swana descobre que entre os tesouros
do lote estão as Jóias Imperiais, antiga propriedade sua,
ela convoca Leon, seu amante, para ganhar a confiança dos três
russos e recuperar suas preciosas jóias. Leon é bem-sucedido
em seu feito: consegue transformar os três sérios comunistas
em fanfarrões pinguços. Percebendo que as negociações
demoram mais do que devem, o governo russo manda a sisuda funcionária
Ninotchka para voltar com os três russos e as jóias. Será
o tentador mundo de Paris capaz de acabar com o pragmatismo e a seriedade
da magistrada russa?
Filmografia de Ernst Lubitsch:
1914 Blindekuh
1914 Fraülein Seifenschaum
1915 Zucker und Zimt
1915 Sein Einziger Patient / Der erste Pacient
1915 Der Kraftmeyer
1915 Der Letzte Anzug
1916 Als Ich Tot War
1916 Schunpalast Pinkus
1916 Der Gemischte Frauenchor
1916 Das Schonste Geschenk
1916 Der G.M.B.H. Tenor
1916 Seine Neue Nase
1917 Kasekonig Hollander
1917 Der Klusenkonig
1917 Ossi’s tagebuch
1917 Wenn Vier Dasselbe Tun
1917 Das Fidele Gefangnis / Ein Fideles Gefangnis
1917 Prinz Sami
1918 Der Rodelkavalier
1918 Das Madel Vom Ballet
1918 Ich Mochte Kein Mann Sein
1918 Der Fall Rosentopf
1918 Die Augen Der Mumie
1918 Carmen
1918 Meyer aus Berlin
1919 Meine Frau, Die Filmschauspielerin (Minha Mulher, Artista de Cinema)
1919 Die Austernprinzessin (A Princesa das Ostras)
1919 Rausch
1919 Madame Du Barry
1919 Die Puppe (A Boneca do Amor)
1920 Kohlhiesels Tochter
1920 Romeo und Julia im Schnee (Romeu e Julieta na Neve)
1920 Sumurun
1920 Anna Boleyn
1921 Die Bergkatze (Gatinha Selvagem)
1921 Das Weib Des Pharao (Amores de Faraó)
1923 Die Flamme (A Modista de Montmartre)
1923 Rosita
1924 The Marriage Circle (O Círculo do Casamento)
1924 Three Women (As Três Mulheres)
1924 Forbidden Paradise (Paraíso Proibido)
1925 Kiss Me Again (Beija-me Outra Vez)
1925 Lady Windermere’s Fan (O Leque de Lady Margarida)
1926 So This Is Paris (Em Paris É Assim)
1927 The Student Prince In Old Heidelberg (O Príncipe Estudante)
1928 The Patriot (Alta Traição)
1929 Eternal Love (Amor Eterno)
1929 The Parade (Alvorada do Amor)
1930 Paramount On Parade (Paramount em Grande Escala)
1930 Monte Carlo (Monte Carlo)
1931 The Smiling Lieutenant (O Tenente Sedutor)
1932 Broken Lullaby (Não Matarás)
1932 One Hour With You (Uma Hora Contigo)
1932 Trouble In Paradise (Ladrão de Alcova)
1932 If I Had A Million (Se Eu Tivesse um Milhão)
1933 Design For Living (Sócios do Amor)
1934 The Merry Widow (A Viúva Alegre)
1937 Angel (Anjo)
1938 Bluebeard’s Eighth Wife (A Oitava Esposa do Barba Azul)
1939 Ninotchka (Ninotchka)
1940 The Shop Around The Corner (A Loja da Esquina)
1941 That Uncertain Feeling (Que Sabe Você do Amor?)
1942 To Be Or Not To Be (Ser ou Não Ser)
1943 Heaven Can Wait (O Diabo Disse Não)
1946 Cluny Brown (O Pecado de Cluny
Brown)
1948 That Lady In Ermine (A Condessa
se Rende) [depois da morte de Lubitsch, finalizado por Otto Preminger]
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