M - O Vampiro de Düsseldorf,
de Fritz Lang


M, Alemanha, 1931, P&B

1. Nós sabemos quem são os responsáveis. Como um genial filme recente, Sobre Meninos e Lobos de Clint Eastwood, M – O Vampiro de Düsseldorf estrutura o "mal-estar na cultura" a partir de uma pista falsa: um criminoso deixa a cidade em pânico assassinando meninas. A intriga que aí se instaura segue o curso de uma investigação, feita paralelamente pelos homens da justiça e pelos homens da máfia. Nos dois filmes, supõe-se inicialmente que, uma vez o criminoso encontrado, a sociedade voltará a viver livre de temores. A construção narrativa, no entanto, ao nos impulsionar cada vez menos na trama policial e nos mergulhar na profunda mesquinharia da paranóia popular, revela ao longo do caminho que não são os casos excepcionais (os crimes hediondos) que fazem a miséria da sociedade, mas sim um terrível campo do não-dito, do medo e do julgamento apressado que não se cristaliza em um ou dois bodes expiatórios: está disseminado em toda parte do tecido social. Em M, a moral da história não é exatamente "Vocês devem vigiar melhor suas crianças", mas "o germe do mal está em cada um de nós". Por mais que o vampiro de Düsseldorf seja uma figura nojenta, a sociedade aqui retratada por Fritz Lang não é menos monstruosa: tanto o tribunal de mafiosos como o cidadão comum, os anônimos das ruas, todos eles tentam projetar seu ódio no primeiro suspeito à mão. A ambigüidade criada pelo filme é perturbadora: os criminosos e as autoridades policiais são apenas duas faces da mesmíssima moeda, como mostra a montagem paralela das reuniões onde se busca soluções para a caça do assassino de crianças.

2. Nem sempre o melhor é mostrar. Ao contrário de alguns filmes recentes (a "visão" de Nicole Kidman em Cold Mountain ou os voyeuristas e abjetos suicídios em As Horas e Mestre dos Mares), Fritz Lang sabe que existe uma lógica de visibilidade/invisibilidade que estrutura a relação com o espectador. Assim, as primeiras aparições do assassino são sempre em forma de vulto ou de presença fora-de-campo. Menos por suspense do que por necessidade: seria um tanto injusto que o espectador tivesse o privilégio da visão onisciente uma vez que a sociedade tenta encontrar o criminoso que para ela (ainda) não tem rosto. O assassino Beckert é primeiro uma sombra, depois um assovio, e por fim um homem filmado de longe e de costas. É só quando os traços da investigação vão ficando mais nítidos – pela organização dos mendigos, pela hipótese acertada de ser um homem que já passou por manicômios – que podemos ver o rosto do infanticida, primeiro de longe e mais tarde de perto (e aqui não podemos deixar de mencionar a extraordinária atuação de Peter Lorre). A adequação entre aquilo que podemos ver e aquilo que a comunidade sabe (ou seja, o que ela pode "ver") é uma das forças motrizes que fazem de M um marco na história do cinema.

3. Cinema, questão de arquitetura. Já foi dito mil vezes que Fritz Lang é o cineasta que mais sabe captar a geometria das construções arquitetônicas e compor o espaço de forma que todos os ambientes filmados se façam sentir com uma atmosfera e um ritmo muito particulares. Quando apela para o gigantismo, peca um pouco pela falta de gosto – o próprio cineasta considerava Metropolis um de seus filmes mais fracos –, mas quando utiliza a arquitetura para demarcar psicológica e socialmente a vida de seus personagens, Fritz Lang é um cineasta imenso. Do cortiço com o qual o filme começa – para enfatizar a penúria material e a origem do desamparo de Elsie Beckmann – até o condomínio em que o assassino é descoberto, passando naturalmente pelas ruas de uma cidade grande tão feérica, encantada (pelas vitrines, pelo vendedor de balões... quase um parque de diversões), quanto realisticamente construída (os postes em que se vê o anúncio de recompensa pela captura do infanticida). O gosto pela arquitetura em Fritz Lang, como disse Tom Gunning, aumenta a sensação de que o comportamento das pessoas responde a determinados padrões de conduta e de convivência dados exteriormente (ou seja, sem primazia da consciência ou do livre-arbítrio). Da vertigem da sra. Beckmann quando olha para baixo das escadas procurando sua filha à sensação de labirinto nas cenas de escada do condomínio, Lang consegue extrair de seu espaço cênico exatamente o que quer.

4. Som+imagem. Em 1931, o cinema sonoro mal tinha completado quatro anos. Entretanto, as possibilidades que Lang consegue extrair do som em seu primeiro filme falado beiram o inacreditável do ponto de vista da expressividade. Talvez pela primeira vez na história do cinema, o som é empregado sistematicamente para aumentar o espaço c6enico do filme para fora do campo. Por exemplo: quando a pobre Elsie Beckmann caminha a esmo na saída do colégio ainda sem ter encontrado seu algoz, ela quase é atropelada por um automóvel, mas sabemos da existência do veículo antes que ele apareça na tela graças ao artifício da buzina (hoje isso é o óbvio ululante em matéria de edição sonora, mas alguém tinha que começar a fazer...). O som em M é tão privilegiado que o próprio assassino é descoberto não pelo olhar, mas por um som que emite (um assovio). E descoberto por um cego... Ainda é preciso que se diga, M contém um dos planos mais incríveis da história do cinema: associação dos mendigos, a câmera vai caminhando para frente, focaliza as mesas em que os mendigos separam os restos recolhidos, jogam cartas, e depois sobe um andar e ultrapassa a janela, instalando-se no escritório em que os líderes do crime organizado montam um plano para caçar o assassino de crianças.

5. Fuga para o oeste. Convém lembrar que M é realizado menos de um ano depois do primeiro sinal da força do nascente Partido Nacional-Socialista (107 cadeiras no Reichstag) e um ano antes da ascensão de Hitler ao poder. Assim, a paranóia disseminada na população e a animosidade gratuita podem e devem ser vistos como comentários sobre uma sociedade depauperada prestes a embarcar na embriaguez de um pangermanismo renascido. M não foi bem visto pelas autoridades do Partido, mas como Lang já havia feito o dístico O Anel dos Nibelungos ("o" mito de pureza da Alemanha por excelência) e o ultra-romântico Metropolis, era muito querido pelos emergentes no poder. A ponto de Goebbels, líder do Partido e ministro da Informação nazista, tê-lo convidado a presidir o cinema alemão. Fritz Lang não era nenhum filósofo, mas também não precisava sê-lo para saber o que viria em seguida: na mesma noite, saiu da Alemanha com as roupas do corpo em direção à França, e depois aos Estados Unidos.

Ruy Gardnier


"Quando filmo superproduções, me interesso principalmente nas emoções das pessoas, nas reações do público. Foi o que aconteceu na Alemanha com M - O Vampiro de Düsseldorf. Porque num filme de aventuras ou num filme de bandidos, como Mabuse ou Os Espiões, só há pura sensação, o desenvolvimento dos personagens não existe. Mas, em M, comecei alguma coisa muito nova para mim, coisa essa que eu continuei em Fúria. M e Fúria são, acredito, os filmes que eu prefiro. Existem outros também, alguns que eu filmei os Estados Unidos, como Almas Perversas, Um Retrato de Mulher ou No Silêncio de uma Cidade. São todos filmes baseados numa crítica social. Naturalmente eu prefiro isso, pois acredito que a crítica é uma coisa fundamental para um cineasta."

"Quando faço um filme, tento traduzir uma emoção."

"Já roubei coisas de outros diretores e fico muito contente e orgulhoso se alguém me rouba alguma coisa. Que significa isso, roubar? É pegar uma idéia que nos agrada e tentar tornar ela sua."

"Eu nunca fui expressionista."