Juventude Transviada,
de Nicholas Ray

Rebel Without A Cause, EUA, 111', Cor, CinemaScope (1:2,35)
Primeiramente,
para além de todo julgamento estético, Juventude Transviada
é um marco na arte contemporânea. É a primeira vez
na história das formas sensíveis de expressão em
que existe uma fissura irremediável entre os filhos e seus pais,
entre jovens e velhos, de forma que é completamente impossível
a um compreender o outro. É possível fazer toda uma história
dos desenvolvimentos culturais da segunda metade do século XX baseado
apenas nessa fissura: foi ela que deu o rock’n’roll, os movimentos de
Maio de 68 na França, a luta contra o Vietnã nos Estados
Unidos, toda espécie de organizações de contracultura
e, ainda com reflexos hoje, a liberalização dos costumes
sexuais e de comportamento. Juventude Transviada, é certo,
prefigura muito pouco disso: trata apenas da história de três
adolescentes frágeis – mas que são fortes o suficiente para
saber que não podem suportar o mundo em que vivem – que tentam,
em conjunto, suprir as necessidades um do outro. Necessidades estas –
inclusive a necessidade de paternidade – que não poderia ser suprida
pelo cuidado ou pelo amor dos próprios pais. Juventude Transviada
é o primeiro documento artístico de uma época que
problematiza o fim do elo que ligava uma geração a outra,
e talvez o primeiro objeto que mereça ser procurado quando tentamos
entender o porquê de hoje o "mundo jovem" ter se transformado
não só numa idade privilegiada no meio das outras, mas por
ser hoje "a" idade propriamente dita, a idade que movimenta
a economia através do consumo de música, de cinema, da indústria
de fitness, etc.
No entanto,
Juventude Transviada não é apenas um documento, mas
também um filme que caminha estilisticamente com suas próprias
pernas, realizado por um dos poetas mais intensos de sua geração:
Nicholas Ray.
Nascido
em 1911 mas só tendo começado a fazer cinema depois do término
da Segunda Grande Guerra – seu primeiro filme data de 1948 –, Nicholas
Ray se torna rápido um diretor com marcas distintivas fortes. É
um mundo de heróis frágeis, palpáveis, que tentam
sobreviver num mundo cuja chave de decifração eles não
detêm. Nesse mundo, a onipresente violência física
e mental convive com a possibilidade de uma paixão arrebatadora
e irrestrita. Em Cinzas Que Queimam, de 1951, a estrutura básica
de Juventude Transviada está montada: um policial citadino,
nitidamente afetado pelo desencanto e pelo ambiente em que vive, passa
a agredir violentamente os criminosos que persegue. Depois do enésimo
caso de violência acima do aceitável, ele é conduzido
a uma investigação no campo onde encontrará uma mulher
por quem se apaixonará, mesmo que isso implique reconsiderar sua
relação com a violência e seu poder auto-destrutivo.
O talento e a fluência de Nicholas Ray para filmar essas cenas extremas,
tanto os arroubos de violência quanto os delicados momentos da paixão
nascente, não fascinou de primeira a crítica americana,
mas encantou os então jovens críticos da revista Cahiers
du Cinéma, que trataram de classificá-lo como o mais importante
cineasta do pós-guerra (Éric Rohmer, em sua crítica
de Juventude Transviada, Cahiers nº59). Godard acreditava ser Ray
a expressão pura do cinema: "Depois de assistir a Johnny
Guitar ou Juventude Transviada, impossível não
dizer que trata-se de algo feito exclusivamente pelo cinema, algo que
seria inútil no romance, no teatro, mas que na tela grande resulta
em algo fantasticamente belo" (Cahiers nº68).
Em Juventude
Transviada, Nicholas Ray encontra um ator perfeito para designar
todos os estados de espírito com os quais mais gosta de trabalhar:
James Dean é ao mesmo tempo um rosto de bebê abandonado pela
vida e, inversamente, a possibilidade de uma explosão de violência
quando menos se espera. A passagem da faixa etária de seus protagonistas
de adultos para adolescentes também ajuda a problematizar melhor
alguns problemas dramáticos que sempre estiveram no escopo de Ray.
Mal ou bem, os protagonistas mais importantes de Nicholas Ray, de 1949
a 1955, são adultos abandonados, Sterling Hayden, Humphrey Bogart
ou Robert Ryan. Juventude Transviada observa a origem desse abandono,
o momento que separa seus heróis solitários e trágicos
do resto dos "homens de bem", e o motivo: uma sensibilidade
diferente, uma dificuldade em aceitar o ritmo e os jogos dessa sociedade,
uma instabilidade quase química que impede a vida sedentária
e assentada da idade adulta.
Outro
aspecto decisivo no estilo de Nicholas Ray é a força suprema
que os ambientes exercem nas cenas. Numa cinematografia como a americana,
acostumada com um estilo de cenografia neutro e uma direção
de arte naturalista (Wyler, Huston), Ray explode toda a verossimilhança
dos lugares e das vestimentas servindo-se deles mais para conotar a situação
dos personagens do que para mostrar semelhança com o mundo real.
As locações são evocativas e não saem da cabeça
fácil: a neve e a casa solitária em Cinzas Que Queimam,
a casa de Joan Crawford em Johnny Guitar, a mansão para
onde os três heróis de Juventude Transviada fogem.
Em Johnny Guitar e Juventude Transviada, ainda se acrescenta
outra camada expressiva: a cor. Cineasta famoso por trabalhar com baixos
orçamentos, Nicholas Ray pôde em seu melhor período
filmar poucos filmes em cor. E seu uso é primoroso: cores aberrantes
que rimam com os estados de espírito de seus personagens, seja
as tonalidades da face de Joan Crawford (ainda e sempre Johnny Guitar)
ou a jaqueta vermelha de James Dean nesse Juventude Transviada.
Nicholas Ray nunca primou pelos meios termos em seus filmes. Sorte nossa:
sentimos a emoção por inteiro.
Ruy Gardnier
Filmografia
de Nicholas Ray
1948 They Live By Night (Amarga Esperança)
1948 A Woman’s Secret (A Vida Íntima de uma Mulher)
1949 Knock On Any Door (O Crime Não Compensa)
1950 In A Lonely Place (No Silêncio da Noite)
1950 Born To Be Bad (Alma Sem Pudor)
1951 Flying Leathernecks (Horizonte de Glórias)
1951 On Dangerous Ground (Cinzas Que Queimam)
1952 The Lusty Men (Paixão de Bravo)
1954 Johnny Guitar (Johnny Guitar)
1955 Run For Cover (Fora das Grades)
1955 Rebel Without A Cause (Juventude Transviada)
1955 Hot Blood (Sangue Ardente)
1956 Bigger Than Life (Delírio de Loucura)
1956 The True Story Of Jesse James (Quem Foi Jesse James?)
1956 Amère Victoire / Bitter Victory (Amargo Triunfo)
1958 Wind Across The Everglades (Jornada Tétrica)
1958 Party Girl (A Bela do Bas-Fond)
1960 The Savage Innocents (Sangue Sobre a Neve)
1961 King Of Kings (Rei dos Reis)
1963 55 Days in Peking (55 Dias em Pequim)
1973 You Can’t Go Home Again
1974 Wet Dreams (episódio)
(sobre
o mal existir em cada um)
"Acredito que isso vem do sentimento segundo o qual nenhum ser
humano, homem ou mulher, é sempre bom ou mal. O essencial em toda
representação da vida é que o espectador, quando
assiste, tenha o sentimento de que, nas mesmas circunstâncias, faria
a mesma coisa que o personagem faz se estivesse na pele dele, sejam esses
atos bons ou maus. As fraquezas do personagem devem ser humanas, pois
se elas o são, os espectadores podem reconhecer nelas suas próprias
fraquezas"
( sobre
a violência de seus personagens)
"Existe violência em todos os meus personagens. Em todos
nós, ela existe em potência. (...) É por isso que
eu prefiro os não-conformistas: o não-conformista é
muito mais sadio do que aquele que por toda sua vida regula seu cotidiano,
pois é aquele mais apto, no momento menos previsível, a
explodir e matar o primeiro que aparecer"
(Nicholas Ray, entrevista concedida a Charles Bitsch, Cahiers du Cinéma
89, novembro de 1958.
Sinopse:
Como seu filho Jimmy acaba arranjando confusão em todos os
colégios em que é matriculado, os Stark vivem mudando de
cidade em cidade para livrar o filho das más influências.
Mas, recém-chegado à nova cidade, Jimmy já é
levado para a delegacia por bebedeira e vadiagem. Lá ele conhece
Judy, uma adolescente que não consegue mais conviver pacificamente
com seu pai. A empatia entre os dois jovens é mútua. No
dia seguinte, na escola, Jimmy desperta ciúmes em Buzz, namorado
de Judy, e é chamado para resolver a rivalidade num racha de carros
que acaba tendo um desenlace fatal. Assustados, Jimmy e Judy escondem-se
com o menino Plato numa mansão abandonada, onde tentarão
conviver como uma família, na ausência de outra.
Direção: Nicholas Ray Roteiro: Stewart Stern, Irving Shulman,
com argumento de Nicholas Ray Fotografia: Ernest Haller Montagem: William
Ziegler Música: Leonard Rosenman Produção: David
Weisbart Elenco: James Dean (Jimmy Stark), Natalie Wood (Judy), Sal Mineo
(Plato), Jim Backus (pai de Jim), Ann Doran (mãe de Jim), William
Hopper (pai de Judy), Rochelle Hudson (mãe de Judy), Corey Allen
(Buzz), Dennis Hopper (Goon), Nick Adams (Moose).
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