As Férias do Sr. Hulot,
de Jacques Tati


Les Vacances de M. Hulot, França, 1953, Preto e Branco

 

Nosso querido Hulot

Se o meio do cinema é a realidade física como tal, torna-se desafiador filmá-la sem pré-estilização mas de modo a obter um resultado com estilo. Por mais que mobilize um variado repertório de elementos pró-fílmicos (figurino, iluminação, maquiagem), Jacques Tati filma o espaço exatamente como este se apresenta previamente. E seus filmes, no entanto, estão impregnados de uma marca pessoal inconfundível, que abarca desde a caracterização do inesquecível Sr. Hulot, eternamente desajeitado e bem-intencionado, até as incontáveis piadas sonoras e os recorrentes comentários cômicos sobre a múltipla relação estética/funcionalidade do modo de vida moderno - incluindo sua arquitetura, seu ritmo, seu design, sua hierarquia de valores (nada raros sãos os personagens de Tati que se perdem em longas exposições sobre seus objetos de consumo ou de interesse).

As comédias de Jacques Tati não excluem um perfil de crônica sentimental, quer se trate da região de veraneio de As Férias do Sr. Hulot, quer se trate da vida automatizada e paradoxalmente caótica na grande cidade de Playtime e Trafic. É admirável a riqueza de sua construção de atmosfera, de um sentimento de tempo indissociável do espaço que o recepciona. Assim sendo, a ambiência experimentada em As Férias do Sr. Hulot é típica de um local de praia, com seu andamento produzido pela alternância entre situações extremamente movimentadas e longos marasmos. Da mesma forma como nos filmes de Tati o tempo é capturado quase que em estado "natural", à diferença do tempo abstrato construído pela decupagem clássica, o espaço é preferencialmente mantido em integridade física e constitutiva. Sua predileção por planos abertos e sua magistral utilização do formato panorâmico, como em Playtime, confirmam o interesse pela representação do espaço conservando não só sua condição original, mas também sua especificidade material e rítmica. Playtime joga com a transparência dos edifícios e com o vai e vem e a simultaneidade das ações cotidianas tão-somente porque a arquitetura e a vida modernas assim o permitem. E As Férias do Sr. Hulot já começa com os desencontros entre trem e passageiros porque tal jogo é suscitado pela própria organização do espaço na plataforma de embarque. A estilização do mundo pela mímica.

A maleabilidade do corpo e a preservação da continuidade sensível do espaço cômico (sempre a relacionar os personagens com o meio, as pessoas e os objetos circundantes), no cinema de Tati, traduzem mais do que a filiação a regras básicas da comédia cinematográfica: carreiam, a exemplo da manipulação da atenção do espectador através do uso criativo do som (como na magnífica cena do pingue-pongue), uma extraordinária pesquisa, embora sutil, das possibilidades de linguagem. A prova da consistência desse trabalho está nos ecos que ainda provoca no cinema contemporâneo, seja na obra do cineasta taiwanês Tsai Ming-liang, seja em algumas cenas protagonizadas pelo ator Bill Murray (de clássicos como Feitiço do Tempo e Nosso Querido Bob) no recente Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola.

Mas, independentemente de toda capacidade de As Férias do Sr. Hulot enriquecer a linguagem cinematográfica, é muito difícil não apreciar o filme mesmo que ignorando suas contribuições formais. Seria preciso não se afetar com a chegada desastrosa de Hulot ao hotel, não se enternecer com sua ingênua tentativa de aproximação com os outros hóspedes, os quais o desprezam em sua maioria, talvez por não enxergarem que ele, o solícito desajeitado, era o único ali capaz de retirá-los de seus lazeres burocráticos e transportá-los a algo mais esfuziante - uma explosão de encanto, como no espetáculo pirotécnico acidentalmente desencadeado (Hulot é nosso "herói por acaso"). Seria preciso também não achar graça, não se entreter com as ótimas gags do filme, além de não perceber a magnitude do personagem criado por Tati: incômodo para alguns, amigo de poucos, secretamente admirado (o marido tímido que nele projeta a fantasia de fuga a seu casamento mofado), integrado à criançada enquanto o hotel melancolicamente se esvazia - o fato é que Hulot em nenhuma hipótese passa despercebido. Não gostar de As Férias do Sr. Hulot, ao que tudo indica, é uma tarefa das mais difíceis.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

Filmografia:

Oscar, Champion de Tennis, 1932
Gai Dimanche, 1935
L'École des Facteurs, 1947
Jour de Fête, 1949
As Férias de M. Hulot, 1953
Meu Tio, 1958
Playtime, 1967
As Aventuras de M. Hulot no Tráfego Louco, 1971
Parade (TV), 1974

"Eu gostaria que o espectador sentisse que de alguma forma ele é parte do espetáculo, que há, deve haver, um diálogo entre ele e o diretor; em uma palavra, o que eu quero é um intercâmbio humano."

"Foi então que tive a idéia de apresentar M. Hulot, personagem de uma independência completa, de um desinteresse absoluto e de quem a distração, que é seu principal defeito, em nossa época funcional faz um inadaptado."

"O cinema é uma caneta, papel e horas a observar o mundo e seus habitantes."