Drugstore Cowboy,
de Gus Van Sant

EUA, 1989
Os filmes sobre toxicômanos geralmente
escolhem um entre dois caminhos: o da glamourização (do
que Transpotting foi alvo de muitas críticas nos anos 90)
e o da degradação acompanhada de mensagem antidrogas (a
lista é enorme e abarca desde Christiane F. até Réquiem
Para Um Sonho). Raro é ver um filme que - alheio às
lições de moral, à exploração de situações-limite,
à degradação humana ou ao "glamour" junkie pura
e simplesmente - extrai do tema a possibilidade de um trabalho plástica
e dramaticamente coeso, como é o caso de Drugstore Cowboy.
Segundo longa de Gus Van Sant, e primeiro
filme realmente importante de sua carreira, Drugstore Cowboy começa
com a narração off de Bob Hughes (Matt Dillon no
que talvez tenha sido seu melhor papel), que está sendo transportado
numa ambulância. É um começo semelhante aos de outros
filmes de Van Sant, ou seja, com o personagem principal se apresentando
num fato já consumado e iniciando a explicação de
como chegou até ali - o que não implica começar exatamente
do começo: o salto para trás que sua narração
propõe transporta o filme para um dia em que ele e seu bando roubam
uma farmácia de forma eficientemente teatral. Àquela altura,
o supersticioso Bob - líder daquilo que é uma espécie
de "família do barulho" composta por ele, a namorada Dianne e o
casal mais jovem Rick e Nadine - já está calejado: tem um
histórico de prisões e é bastante entendido acerca
da farmacodinâmica das drogas que rouba, consome e vende.
Lá pela metade de Drugstore Cowboy
há um plano extremamente simples que define a sua primeira parte,
e o que era a vida de Bob até então: ele vem andando cambaleante,
a cabeça enfaixada por conta do golpe levado quando furtava remédios
de um hospital, e do outro lado se aproxima um guarda; os dois se encontram
de frente e ficam hesitando entre ir para a direita ou para a esquerda,
até que cada um escolhe seu lado e prossegue. Em sua trajetória
tortuosa, Bob vive esbarrando nas autoridades - e embora sempre acabe
dando um jeito de fugir delas, chega um momento em que decide que é
hora de parar.
Bob não muda de vida por ter sido
invadido por culpa e má consciência: ele simplesmente acredita
que sua sorte acabou, além de ter cansado de viver fugindo da polícia.
Se o que integra a obra de Gus Van Sant é a demonstração
de jovens em busca de um lugar, independente de ser na sociedade ou à
sua margem (e Elephant, último filme seu e recente vencedor
da Palma de Ouro em Cannes, ao que tudo indica, parece focar esse assunto
com precisão ainda maior), aqui assistimos a um rapaz que abandona
a criminalidade para ter um emprego fixo, pagar o aluguel de um quartinho,
viver como homem médio, deixar para trás o jeito impulsivo
com que começara o filme e se tornar um cidadão pacato.
Não é um filme propriamente sobre redenção,
contudo. "Você pode resistir às instituições,
mas não à superstição", diz Bob. A decisão
de uma vida careta e assalariada é mais uma de suas "viagens".
Nessa segunda parte, Van Sant filma a mecanicidade
do trabalho conseguido por Bob numa fábrica praticamente como filmara
o ritual das drogas, com o mesmo cuidado formal e a mesma predileção
por detalhes. Como tal opção estética deixa claro,
os homens adquirem hábitos - e hábitos, não importando
quais sejam, podem ou não se tornar vícios funestos. Portanto,
o filme não está aqui para julgar ninguém.
O surgimento de William S. Burroughs na pele
de um velho padre viciado confere ao filme um ingrediente de luxo: o escritor
não só interpreta muito bem o seu papel como ainda personifica
mais do que apropriadamente a presença da beat-generation
como referência narrativa e estética para Van Sant. Outra
referência estética importante é o surrealismo (mais
até das artes plásticas que do cinema), presente principalmente
nas cenas das alucinações de Bob. Não bastassem algumas
imagens remeterem ao visual surrealista, num determinado momento o personagem
de Matt Dillon ainda discorre sobre estar diante do espelho e enxergar
as próprias costas, possível alusão a um famoso quadro
de Magritte (e as nuvens passando velozmente, recorrência tanto
em Drugstore Cowboy quanto em My Own Private Idaho, já
pareciam pôr em movimento algumas pinturas de Magritte).
Drugstore Cowboy representa mais do
que um excelente estudo de personagem e uma obra que deixa o conteúdo
narrativo se entranhar na sua composição visual sem exageros.
É reconhecidamente um belo filme sobre um tema difícil.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Drugstore Cowboy
Drugstore Cowboy, 1989, cor
Direção: Gus Van Sant
Roteiro: Gus Van Sant e Daniel Yost, baseado no livro de James Fogle
Produção: Karen Murphy e Nick Wechsler
Fotografia: Robert D. Yeoman
Montagem: Mary Bauer e Curtiss Clayton
Música: Eliot Goldenthal
Elenco: Matt Dillon (Bob), Kelly Lynch (Dianne), James LeGros (Rick),
Heather Graham (Nadine), Eric Hull (farmacêutico), Max Perlich (David),
John Kelly (policial), Grace Zabriskie (mãe de Bob), William Burroughs
(padre Tom)
Filmografia de Gus Van Sant:
1985 Mala Noche
1989 Drugstore Cowboy (Drugstore Cowboy)
1991 My Own Privarte Idaho (Garotos de Programa)
1993 Even Cowgirls Get The Blues (Até as Vaqueiras Ficam Tristes)
1995 To Die For (Um Sonho Sem Limites)
1997 Good Will Hunting (Gênio Indomável)
1998 Psycho (Psicose)
2000 Meeting Forrester (Encontrando Forrester)
2002 Gerry (Gerry)
2003 Elephant
Sinopse:
Drogar-se é um trabalho de inteira dedicação e tempo
integral para Bob Hughes. Ele lidera sua esposa Dianne e mais um casal
amigo, Rick e Nadine, numa série de engenhosos e discretos assaltos
a farmácias para pegar remédios de tarja preta. Quando um
acidente fatal mexe com o grupo, Bob decide que precisa se afastar tanto
das drogas como de sua mulher se quiser permanecer vivo.
Citações:
(sobre ter marcado a carreira de vários
atores importantes)
"Não sei se sou eu o responsável.
Quando se dirige um filme, acontecem mil pequenas coisas que a gente não
pode controlar. River Phoenix, Matt Dillon e Nicole Kidman, os meninos
de Elephant, todos tiveram um efeito no resultado final. Quando
Matt chegou no set de Drugstore Cowboy, era uma antiga estrela
adolescente, uma espécie de pin-up para revistas teen dos anos
80. Eu não disse o que ele devia fazer, eu deixei que suas idéias
viessem. Acredito que quando certos atores compreendem isso, sobretudo
pessoas como River, Matt e Nicole, eles se tornam responsáveis
pelo papel, percebem que não estão lá apenas para
executar gestos, e a qualidade do trabalho é perceptível."
(sobre o começo de carreira e a força
do cinema experimental)
"Comecei como pintor, autodidata. A
arte, para mim, foi sempre ligada a uma prática concreta. Depois,
conheci como espectador os filmes de Nova York dos anos 60. Minha idéia
de cinema vem daí. Vi por acaso filmes como os de Jack Smith, Stan
Brakhage, Ron Rice, Jonas Mekas, Warhol... Meus primeiros curtas eram
ao mesmo tempo experimentais e narrativos: a narrativa era experimental,
mas não as imagens. Dava em algo intelectualmente abstrato, mas
visualmente tradicional – um pouco como O Fantasma da Liberdade de
Buñuel."
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