Os Cowboys de Leningrado Vão para a América, de Aki Kaurismäki

Leningrad Cowboys Go America, Suécia/Finlândia, 1989, 78', cor


Os Cowboys de Leningrado Vão para a América, de Aki Kaurismäki

Quando o silêncio vale mais do que mil palavras

Os filmes de Aki Kaurismäki partem sempre de situações dramáticas muito simples. Simplórias, até. De uma feita, é um grupo de músicos russos que, por cômicas injunções do destino, começa a tocar rock’n’roll e deixa a fria estepe soviética para tentar o estrelato no Estados Unidos. De outra, é um homem que perde toda sua memória e deve recomeçar novamente do zero num mundo onde os códigos sociais se desenvolvem mais e mais no sentido de pedir a cada indivíduo mais esforço da memória (para o trabalho, para decorar os produtos a serem consumidos, para "fidelizar-se" com marcas) e de pontos fixos para o Estado (carteiras de identidade, de motorista, contas em banco, etc.). Mas o mais impressionante não é isso. O que mais choca e emociona é como esses dispositivos ficcionais tão básicos, que abrem espaço para comédias melancólicas com retoques de nonsense – porém sempre fortemente afetuosas – criam situações tão arquetípicas e relevantes sobre o mundo contemporâneo que é difícil não se deixar levar por uma delas. Sejam elas histórias de aculturação de um conjunto de pessoas conduzidas por um kapò ditatorial e estúpido ou o relato de um amnésico que só tem a sinceridade e a ternura num mundo que não aceita esses valores como moeda de troca.

Dentre seus filmes – pouquíssimos dos quais entraram em cartaz, alguns tendo sido exibidos em mostras e festivais, nenhum tendo sido lançado em vídeo –, talvez um deles guarde melhor do que os outros a chave de decifração da estética por trás do cinema de Kaurismäki. É Juha (1999), filme em preto-e-branco, sem diálogos, com intertítulos à maneira de um filme mudo dos anos 20. Não é lá nenhuma obra-prima, mas freqüentemente os cineastas (e artistas de uma forma geral) entregam mais fortemente suas obsessões e preferências, desnudam sua arte, em obras mais modestas do que em seus momentos mais fortes.

Em Juha, Kurismäki não se apropria do cinema mudo na base do pastiche/homenagem e da autoconsciência caros ao cinema contemporâneo, mais chegado ao "pós-moderno". O cinema mudo é para ele, antes de tudo, um objetivo a alcançar, especificamente por uma peculiaridade que o cinema pós-mudo foi se esquecendo de notar: sem a palavra, as situações básicas narradas pelos filmes são tão gerais que alcançam um grau de comunicação e uma universalidade grandes, criando fácil e rapidamente a empatia e a identificação com o espectador.

Se em Juha ele copia a estética do cinema mudo como forma de homenagem, em seus outros filmes ele se apropria desse universo simbólico para extrair certas sensações que nada têm a ver com esse cinema. Um belo exemplo é o mutismo de seus personagens: condição técnica do cinema mudo, em Kaurismäki os sujeitos calados, monossilábicos, evasivos, não são uma forma exótica e in de reverenciar o cinema do passado e ao mesmo tempo fazer graça a partir dele. Essa característica é antes uma maneira de seus personagens reagirem, de forma quase autista, aos imperativos prolixos e tagarelas da "era comuicacional". Se essa tal "era" existe, os personagens de Kaurismäki definitivamente não pertencem a ela. Se a simples existência desses personagens parece rejeitar em bloco a idéia de que é pela palavra que se dá o acesso à liberdade democrática (idéia defendida por filósofos contemporâneos como Rorty ou Habermas), é porque Kaurismäki parece remontar a um estágio primordial (e, por isso, perene) em que uma palavra é, antes de tudo, uma prática de poder, uma tentativa de subjugar o outro, de falar por ele, de cassar-lhe a voz. E, de fato, em seus filmes, quando se abre a boca é para manter, estabelecer ou defender um poder (ditatorial, por vezes).

Se no âmbito político o mutismo representa uma opção – não render-se ao jogo da palavra que submete o próximo –, no âmbito dramático esse artifício cria momentos muito fortes, algo entre uma hilaridade triste (já que desnuda as relações de poder da palavra ao mesmo tempo em que faz rir de sua gratuidade) e a suspensão de sentido (nonsense), marca registrada do cineasta, que acaba povoando seus filmes com uma graça desajeitada e um charme démodé um tanto apaixonantes. Uma melancolia ácida que se repete ao longo dos filmes – alguns se ressentem disso – mas que nunca é puramente gratuita, forçada. É antes uma maneira de ver o mundo – e fazer arte a partir dele – do que repetir a mesma fórmula à exaustão.

Os Cowboys de Leningrado Vão Para a América inaugura a participação dos mitológicos (e hilários) Leningrad Cowboys na filmografia de longa-metragem dos irmãos Kaurismäki (Aki faria ainda Os Cowboys de Leningrado Encontram Moisés e Mika os colocaria numa pequena participação em Absolutamente Los Angeles). O filme foi rodado no fim dos anos 80, período de turbulências e indefinições quanto ao futuro político e à reinserção da União Soviética na economia de mercado. "Ir para América", assim, representa uma fina ironia diante das opções que se abririam ao governo soviético dois anos depois. Representa, também, por outro lado, uma certa ironia frente aos Estados Unidos e a seus tão propalados ideais, como o mito do "self made man", a idéia de que no país há chances e oportunidades para todos, etc. Ironia, por fim, e talvez a mais válida para os dias de hoje, é como um grupo de pessoas de um distante rincão de um país com relativamente poucas informações sobre o estrangeiro acabe indo para os Estados Unidos tocar rock´n´roll. Os teóricos mais apocalípticos de nosso tempo vêem nisso uma temeridade, e sentem medo de que uma futura rede global de informações vá no fim formatar todas as nacionalidades e transformá-las em simulacros de uma só cultura (a americana). Kaurismäki, por sua vez, parece ser mais cauteloso. Ele dá uma parada para pensar, e joga seu olhar jocoso sem prematuramente defender qualquer bandeira. "Formatação? Quem sabe... Mas olhe como ela é curiosa", poderia dizer. Em Kaurismäki, ao contrário das teorias globais, a História não se movimenta através dos gestos decisivos dos grandes nomes, mas antes por gestos ínfimos, aleatórios e imprevisíveis dos pequenos, dos incontáveis, dos ilustres anônimos.

Mesmo tendo sido realizado num momento bastante preciso da história européia (não esquecer que, sendo finlandês, o filme lhe interessa enquanto europeu), não é lá muito justo afirmar que Os Cowboys de Leningrado seja um filme datado. Embora seja centrado no momento do fim da experiência soviética, o filme ainda traz questões que fazem a atualidade da nova época. E isso sem contar com o estilo de Aki Kaurismäki, que é algo que não parece envelhecer mal. O Homem Sem Passado que o diga.

Ruy Gardnier

Apresentação: Eduardo Valente

Os Cowboys de Leningrado vão para a América
Leningrad Cowboys Go America, 1989, Finlândia/Suécia, cor, 78'
Direção e Roteiro: Aki Kaurismäki
Fotografia: Timo Salminen
Montagem: Raija Talvio
Música original: Mauri Sumén
Elenco: Matti Pelonpää (Vladimir), Kari Väänänen (o Idiota), Sakke Järvenpää, Heiki Keskinen, Pimme Korhonen, Sakkari Kuosmanen, Puka Oinonen, Silu Seppälä, Mauri Sumén, Mato Valtonen, Pekka Virtanen (Os Cowboys).

Filmografia de Aki Kaurismäki:

1981 Saimaa-ilmiö (The Saimaa Gesture) - co-dirigido por Mika Kaurismäki
1983 Rikos ja rangaistus (Crime e Castigo)
1985 Calamari Union
1986 Sombras no Paraíso (Varjoja paratiisissa)
1986 Rocky VI - curta-metragem
1987 Hamlet vai à Luta (Hamlet liikemaailmassa)
1987 Thru the Wire - curta-metragem
1888 Ariel
1989 Os Cowboys de Leningrado Vão Para a América (Leningrad Cowboys Go America)
1989 Likaiset kadet (Dirty Hands) - filme para TV
1990 A Mocinha da Fábrica de Fósforos (Tulitikkutehtaan tyttö)
1991 Contratei um Matador Profissional (I Hired a Contract Killer)
1991 Those Were the Days - curta-metragem
1992 Boheemielämää (La vie de bohème)
1992 These Boots - curta-metragem
1993 Total Balalaika Show
1993 Os Cowboys de Leningrado Encontram Moisés (Leningrad Cowboys Meet Moses)
1994 Se Cuida, Tatiana (Pidä huivista kiini, Tatjana)
1996 Nuvens Passageiras (Kauas pilvet karkaavat)
1998 Juha
2002 O Homem sem Passado (Mies vailla menneisyyttä)

Citações de Aki Kaurismäki:

"Se os Estados Unidos não querem um iraniano, duvido que tenham qualquer utilidade para um finlandês. Nem petróleo nós temos..." (declaração dada ao recusar o convite para comparecer ao Festival de Cinema de Nova York, depois que Abbas Kiarostami teve seu visto negado)

"Se você afina um filme em um tom minimalista, o acender de um fósforo torna-se dramático".

"A vida serve para que criemos uma moral pessoal que nos permita respeitar a natureza, respeitar o ser humano e, por consequência, seguir essa moral."