Bar Esperança,
de Hugo Carvana


Brasil, 1982. 118’. Cor

 

vida, arte mambembe

O cinema brasileiro quase nunca tendeu para o confessional e tampouco foi um prodígio no que diz respeito à naturalidade. Fica difícil imaginar um brasileiro fazendo filmes como Love Streams (Cassavetes, 1984) ou La Maman et la Putain (Jean Eustache, 1975), onde diretor e filme parecem tão colados que é quase impossível demarcar onde termina a vida e começa o filme. Então que espécie de coincidência ou acaso do destino nos consegue entregar, entre o fim dos anos 70 até meados dos 80, uma série de obras maiores em que o cinema nada mais é do que o reflexo trabalhado da vida? Enquanto David Neves radicaliza suas propostas de simplicidade para fazer a obra-prima que é Muito Prazer (1980) ou a pérola Fulaninha (1984), Carlos Reichenbach abandona um pouco a faceta bufona de seu trabalho nos 70 para realizar anatomias da relação homem/mulher em filmes como Amor Palavra Prostituta (1980) e Extremos do Prazer (1983), para por fim desencadear seu frente-a-frente com o cinema em Filme Demência (1985). Quanto a Hugo Carvana, a se julgar por seus filmes anteriores (Vai Trabalhar Vagabundo, 1973, Se Segura, Malandro, 1977), era possível esperar graça e talento, mas jamais a força de entrega e o mergulho na vida que vemos em Bar Esperança (1982).

Primeiro, a geografia. Somos de cara apresentados ao bar que dá título ao filme. Esperança é o nome da dona, mas é também uma espécie de insígnia existencial das pessoas que o freqüentam: artistas bem-sucedidos, vendedores de badulaques, jornalistas empacados, atores pseudo-visionários ou garanhões oportunistas, todos comungam diariamente no Esperança como espécie de última casamata do princípio de prazer num mundo cada vez mais dominado pelas relações mercantis e pela banalização da arte (métier de quase todos os que freqüentam o bar). A cenografia do local exprime tudo isso em alguma medida: apertado o suficiente para causar caos (não víamos tanta profusão e confusão de personagens em um mesmo cenário desde Playtime de Jacques Tati) mas ao mesmo tempo aconchegante para ser considerado a segunda casa dos freqüentadores, ornamentado com as composições vitrais coloridas dos bares "de antigamente", mas adequando-as às luzes de néon, espécie de marca estética dos anos 80 (Coppola, Beineix) e hoje símbolo de afetação decadente.

Depois, os personagens. A segunda seqüência do filme apresenta dois dos freqüentadores do Esperança em seus hábitos diurnos, o trabalho. Zeca (Hugo Carvana) é um roteirista de televisão que, por falta de orientação de seu patrão – que só sabe dizer "está uma merda, está uma merda" –, acaba dedicando a maior parte de sua vida a reescrever histórias pelas quais ele não tem interesse existencial nenhum. Ana (Marília Pêra), esposa de Zeca, é uma importante estrela de telenovela. Mas, apesar de interpretar uma personagem que despertou o ódio público, ela ainda não é uma estrela de primeira grandeza na dramaturgia brasileira. A vida nos bastidores da televisão é vista como um verdadeiro inferno cheio de suplícios. Arrivismo é a palavra de ordem – como a roteirista que elogia Zeca para depois criticá-lo na frente de um superior –, e as condições de trabalho são incrivelmente precárias – a ponto dos atores comerem comida de cena porque as filmagens não respeitam o horário de almoço. Zeca se demite, Ana precisa continuar porque alguém há de alimentar os filhos e sustentar a casa. Outros persoangens surgem para matizar a questão compromisso/liberdade: Nina (Louise Cardoso), uma atriz porraloca que quer montar uma peça grandiloqüente com os índios na selva, ou Ivan Guerra (Nélson Dantas), jornalista melhor amigo de Zeca que tenta jogá-lo de volta no mundo da responsabilidade. Passarinho (Antônio Pedro), por sua vez, só bebe uísque (supõe-se que ele consiga um bom dinheiro para comprá-lo aos borbotões diariamente) e tece comentários mordazes acerca de tudo que acontece no bar.

Por fim, a vida íntima. Depois da vida pública, o ambiente interno. Ana e Zeca têm dois filhos e um apartamento. Mas a situação é insustentável. A demissão de Zeca da televisão é a última gota para a explosão de Ana, que mesmo amando o marido chuta-o para fora de casa, dando fim ao casamento. O término da relação fornece o tom emocional do filme, o sentimento de alguma coisa muito intensa que se quebra por contingências externas (especificamente o mundo do trabalho, a arte não-gratificante) e os cacos que é preciso recolher para fazer da vida algo de estimulante que faça valer a pena viver um dia atrás do outro. Bar Esperança é, entre outras coisas, um filme sobre a dificuldade de viver juntos. Ao casal Ana-Zeca, o filme constrói em espelho Cabelinho-Cotinha (Paulo César Pereio-Sylvia Bandeira), um casal pronto para dar errado que ao final consegue se unir da maneira mais inesperada possível. A palavra final, porém, não é dada pela reintegração do casal ao final, mas pela onipresente música de Caetano Veloso, "Meu Bem, Meu Mal" (disco que Hugo Carvana coloca no momento da discussão que porá um fim ao casamento): "Onde o que eu sou se afoga/Meu fumo e minha ioga/Você é minha droga/Paixão e carnaval/Meu zen, meu bem, meu mal". O amor é aquilo que excita e desaponta, ambos intensamente.

Filme desigual, como a vida e como qualquer relação a dois, Bar Esperança nos encanta e apaixona por seus magníficos momentos fortes, que fazem relevar os poucos fracos (no supermercado, p.ex.) e, como todo canto à beleza e às contingências da vida, tem uma força que ultrapassa a tela e nos remete de volta a nós mesmos.

Ruy Gardnier

 

Bar Esperança

Direção: Hugo Carvana

Argumento e Roteiro: Hugo Carvana, Armando Costa, Euclides Marinho, Martha Alencar e Denise Bandeira

Fotografia: Edgar Moura

Montagem: Lael Rodrigues

Música: Tomás Improta, com a canção "Meu Bem Meu Mal", de Caetano Veloso

Direção de Produção: Luiz Carlos Lacerda

Produção Executiva: Carlos Alberto Diniz

Elenco: Marília Pêra (Ana), Hugo Carvana (Zeca), Paulo César Pereio (Cabelinho), Sylvia Bandeira (Cotinha), Antônio Pedro (Passarinho), Nélson Dantas (Ivan), Louise Cardoso (Nina), Anselmo Vasconcelos (Valfrido), Thelma Reston (Esperança), Luiz Fernando Guimarães (Tuca), Daniel Filho (Arnaldo), Jonas Torres (Yuri), Oswaldo Loureiro (Baby), Maria Gladys, Wilson Grey, Carlos Gregório, Tessy Callado, Denise Bandeira, Paschoal Villaboim, Luiza Marcier

Filmografia de Hugo Carvana

1973 Vai Trabalhar, Vagabundo
1977 Se Segura, Malandro
1982 Bar Esperança (O Último Que Fecha)
1991 Vai Trabalhar Vagabundo II – A Volta
1996 O Homem Nu
2003 Apolônio Brasil, o Herói da Alegria