A Comédia de Deus,
de João César Monteiro


A Comédia de Deus, Portugal/França, 1965, 105', p&b


João César Monteiro

Deus é português...

... Mas Deus morreu. João César Monteiro, o João de Deus, morreu no dia 3 de fevereiro de 2003, um dia após seu 64º aniversário. Safado, egocêntrico, louco, pouco dado às conveniências dos tapinhas nas costas, Monteiro nunca esteve no Panteão dos grandes diretores, aqueles que a cada filme estão em Cannes ou, mesmo quando não estão, arrumam de ser júri em algum outro rincão. Tampouco tornou-se uma unanimidade entre os admiradores da sétima arte: seu cinema é ácido demais para tolerar gostos uníssonos, demasiado sincero para que os cultores do bom gosto médio consigam assistir a seus filmes sem torcer o nariz. Morre como viveu: loucamente adorado por alguns poucos que compartilham seu modo sui generis de vida (e de cinema, uma vez que seu cinema está inapelavelmente imbricado na vida) e ignorado ou incompreendido pela grande maioria.

Iconoclasta, furioso, pornográfico até por jamais deixar a mente falar mais do que o corpo, seu cinema foi muito comparado com o de Buñuel. Entretanto, ao menos do ponto de vista da criação, jamais poderia haver cineastas tão diferentes. Se Buñuel cresceu em meio católico e foi dentro desse meio que ele se revoltou contra a moralidade dos círculos eclesiásticos e sociais, Monteiro foi educado "no seio de uma família fortemente dominada pelo espírito, chamemos assim, da 1 ª República", querendo com isso denotar o anticlericalismo familiar. O espírito da galhofa jamais o deixou, e os padres também não pararam de ser alvos. Em As Bodas de Deus, de 1999, João de Deus recebia uma esmola e um conselho de uma freira: "Não gaste tudo em bebidas"; como não tinha o que fazer com o dinheiro (tinha achado uma mala cheia de dólares), passou a esmola a um mendigo, naturalmente fazendo-lhe sermão: "Não vá gastar tudo em freiras".

Monteiro começou no cinema em 1968, com um documentário em curta-metragem chamado Sophia de Mello Breyner Andresen, sobre a poetisa portuguesa. O primeiro longa veio rápido, dois anos depois: Quem Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço. Ao longo dos anos 70-80, realizou dez longas-metragens que não fizeram estardalhaço para além das fronteiras portuguesas e continuam invisíveis até hoje, seja no Brasil, na França ou nos Estados Unidos. Entre os títulos desse período estão Fragmentos de um Filme-Esmola: A Sagrada Família (1972), Que Farei com Esta Espada? (1975) e O Rico e o Pobre (1979).

Em 1989 vem a consagração internacional, com o prêmio Leão de Prata dado ao filme Recordações da Casa Amarela no Festival de Veneza. O filme marca o nascimento de João de Deus, o personagem que Monteiro iria representar em diversos de seus filmes seguintes (para o trabalho de ator usava o pseudônimo de Max Monteiro). Espécie de alter ego do próprio autor, João de Deus é um ermitão, um solitário com obsessões muito particulares e nada apreciáveis socialmente. Em A Comédia de Deus, por exemplo, coleciona pentelhos femininos, que consegue depois de banhar ninfetas em leite e depois escorrer o líquido num funil. A figura magricela, esguia, chupada de tão raquítica de Monteiro, aliada ao olhar cínico e à expressividade de empáfia que depreende da ausência de gestos no rosto (quase um Keaton nesse sentido), fazem de João de Deus um personagem fantasmagórico, tão sombrio quanto risível, admirável pelo estilo e pela clareza de suas convicções.

O prêmio em Veneza não deu, contudo, o novo gás a sua carreira que era esperado. Depois de outro filme absolutamente invisível (O Último Mergulho, 1992), foi só com A Comédia de Deus, em 1996, que conseguiu o reconhecimento mundial como um grande diretor. O filme circulou o mundo, fez sensação onde foi exibido (inclusive no Rio, no Estação Botafogo 1, lotando a sessão numa mostra de cinema português) e rendeu um bom séquito de admiradores. Além de ganhar prêmios nos festivais de Veneza (Grande Prêmio do Júri, CinemAvvenire) e Dunquerque (Grande Prêmio e melhor ator), o filme foi eleito entre os 10 melhores do ano pela revista francesa Cahiers du Cinéma.

As peripécias de João de Deus continuam em As Bodas de Deus, realizado três anos mais tarde. A insanidade de Monteiro, contudo, não se atenua ou afrouxa. Só a primeira seqüência do filme já é digna de nota: João de Deus, com uma camisa da seleção brasileiro (a de Ronaldinho), senta-se num banco em frente a um rio; sente vontade de fazer as necessidades e, utilizando uma folha para esconder do espectador suas partes pudendas, urina ao pé de uma árvore; volta ao banco para seu banquete, bebe um pouco de vinho, joga a taça e a garrafa no rio; abre suas sardinhas em lata, coloca uma na boca e joga o resto no rio. Na seqüência seguinte, do nada, ele acha uma mala cheia de dólares no meio da floresta. E a vida continua...

Branca de Neve, de 2000, leva o cinismo e o escárnio às raias do insuportável. Baseado num grande poema do escritor suíço Robert Walser, o filme apresenta uma possível continuação para a fábula da Branca de Neve. E, surpresa!, descobrimos que a história do conto de fadas era um tanto mentirosa, a madrasta não era tão malvada e o príncipe, no fundo, era muito moralista. O mais curioso, contudo, foi a maneira com a qual Monteiro decidiu fazer o filme: absolutamente sem imagens, com a tela toda preta enquanto decorrem os diálogos. Imagens, só entre as cenas (uns 4, 5 segundos por vez) e nos créditos iniciais. Perguntado por jornalistas por que teria feito o filme daquela forma, disse que o único lugar do set em que dava para pendurar o casaco era em frente à câmera.

Monteiro morreu de mal com o público português, que repudiou fortemente o humor selvagem e o dispositivo experimental de Branca de Neve (em termos de radicalidade de dispositivo em humor, só comparável ao happening de Andy Kaufman lendo O Grande Gatsby inteirinho num show seu). Realizado com incentivos do estado português, o filme foi alvo fácil para a classe média portuguesa, que naturalmente prefere histórias de água com açúcar a experiências artísticas mais vigorosas – e tanto pior, já que se precisa de um mínimo de atividade mental para cogitar o que fazer com tanta tela preta ao longo de 70 minutos.

Consta em alguns veículos de informação que Vai e Vem, o último projeto de Monteiro, chegara a ser dado por terminado antes de sua morte. Façamos figa, então, para que venha a última forma de contato com esse realizador tão particular, essa rebeldia tão adolescente e ao mesmo tempo desencantada, essa lubricidade tão ácida e ainda assim tão charmosa. Antes de Vai e Vem, Monteiro planejava realizar uma adaptação de A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade. O projeto foi temporariamente cancelado, e com a morte do diretor, dá-se por definitivamente fechado. Uma pena. Mas deixemos o próprio Deus falar de morte. Ou melhor, não falar: "A morte é silenciosa. Não tenho nada a dizer sobre a morte." Grande Monteiro.

Ruy Gardnier

Devido à longa duração do filme e da data (sábado de carnaval), não houve debate.

A Comédia de Deus
A Comédia de Dues, 1995, cor, 170’
Direção: João César Monteiro
Roteiro: João César Monteiro
Fotografia: Mário Barroso
Montagem: Carla Bogalheiro
Elenco: Max Monteiro/João César Monteiro (João de Deus), Claudia Teixeira (Joaninha), Manuela de Freitas (Judite), Raquel Ascensão (Rosarinho).

Homenagem ao recém-falecido cineasta português, dono de uma das obras mais radicalmente libertárias do cinema recente. Seu personagem/alter-ego João de Deus é o anti-herói por natureza: um sátiro, um tarado, mas antes de tudo um amante da vida.

Filmografia de João César Monteiro

1968 Sophia de Mello Breyner Andresen - Curta Metragem
1970 Quem Espera Por Sapatos de Defunto Morre Descalço
1972 Fragmentos de um Filme-Esmola: A Sagrada Família
1975 Amor de Mãe
1975 Que Farei com Esta Espada?
1978 Veredas
1979 O Amor das Três Romãs
1979 Os Dois Soldados
1979 O Rico e o Pobre
1982 Silvestre
1986 À Flor do Mar
1989 Recordações da Casa Amarela
1992 O Último Mergulho
1995 O Bestiário - Curta Metragem
1995 A Comédia de Deus
1995 Lettera Amorosa - Curta Metragem
1995 Passeio com Johnny Guitar - Curta Metragem
1997 Le Bassin de John Wayne
1999 As Bodas de Deus
2000 Branca de Neve
2003 Vai e Vem

Livros

Morituri Te Salutant (1974, & ETC) - Textos publicados na & ETC, Tempo e Modo, Diário de Lisboa
Uma Semana Noutra Cidade (2000, & ETC)

Citações de João César Monteiro:

Perguntam-me o que é que eu fazia na vida e, quando lhes disse que era cineasta, olharam-me cheios de desconfiança. Se calhar - ocorre-me agora - deveria ter apenas respondido que faço filmes. Realmente, assim não se pode conversar. Se me perguntam o que faço, porque raio hei-de responder o que sou?

O cinema não tem consolo. Porque é película, e a película nem sequer é tão saborosa como um gelado (sorvete). É uma matéria físico-química, mais salgada do lado da emulsão porque tem ácidos - isto quando se põe a língua. Não sei se dá saúde. Mas não traz felicidade. E ainda por cima nesta idade já não excita muito o egozinho. O que é que eu gostava de ser? Gostava de não ser cineasta, não ser artista, ser gente simples, passando despercebidamente pelo grande magma social. Isto pressupõe uma certa inveja: não é a inveja de não ser um grande cineasta como o Murnau, é a inveja de não ser afável e simpático como o marido da minha porteira. Não consigo ser. Porque mexo em coisas que têm a ver com a criação, com a arte.

O amor é uma coisa bastante embaraçosa. Pelo menos da forma como eu o entendo: como algo de absoluto. As coisas que aprendemos na vida podiam levar-nos a relativizar o amor. Isso se eu tivesse algum bom senso na cabeça. Não é o caso. Há uma teimosia em entender o amor como coisa absoluta. Sendo absoluta, não é possível. Ficamos com a idéia.