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Bruno Dumont
Olá! Olá, Sidney
A tragédia é originalmente grega e Raduan Nassar sorve nas primeiras obras desse gênero inspiração para sua história. Apesar dos pesares, nas tragédias a Vida se apresenta em seu incessante movimento, fazendo que o que esteja por vir, venha. É o império do inesperado, do acaso. Eros e Psiqué, Kaos e Cosmos, ordem e desordem, o simbólico e o diabólico, forças impetuosas, combustíveis do delírio humano, enchem os fotogramas de Lavoura Arcaica com imagens arrastadas e pesadas em função de uma montagem que peca pelo excesso, no afã de retratar com fidelidade o ambiente caótico da mente de André (Selton Melo): a quantidade de imagens com foco no primeiro plano e desfocadas no fundo chega a embriagar mesmo; é um bacanal com muito vinho e muita lente macro; a tela está cheia. Muitos planos fechados. Essa avalhanche de imagens desfocadas podem ser dramáticas e até ser um bom recurso para retratar o clima da narrativa, mas não chegam a ser poéticas apenas por essa aparência. A transposição da narrativa escrita com a pena do escritor para aquela escrita com a câmera de Luiz Fernando de Carvalho tem seus méritos. Depois de assistir a Lavoura Arcaica você poderá chegar à conclusão que o livro homônimo de Raduan Nassar é muito bom. (Não se sinta culpado por isso nem se martirize por desejar sair correndo para um "round" com seu pai - ou o equivalente - ou para aquela trepada adiada com sua "irmã" ou o que isso possa simbolizar). Calma! "A paciência é a maior de todas as virtudes". Trazer a força da narrativa literária para os 24 quadros por segundo do cinema não é tarefa tranqüila. Poucos conseguiram com êxito. E uma empreitada dessas já pode ser considerada exitosa se funciona para abrir os apetites. E abre. Na saída do filme, o desejo também pode se manifestar como um desejo de leitura; outros, instantaneamente, desejam o cheiro e o gosto de um bom expresso com creme, pão de queijo e brownie. Outros, inconscientemente, sem saber muito o porquê, assumem o olhar de um caçador que está pronto para capturar uma pombinha, dominá-la e depois devolvê-la à liberdade do vôo. Uma coisa é certa: quem está vivo sai de Lavoura querendo "traçar" alguém. Não como o pai (Raul Cortez) que preso aos grilhões da letra morta do discurso religioso, encontra-se, repentinamente dominado, diabolicamente, pelo seu próprio instrumento de trabalho. Mas, antes, "traçar" como André, o filho, que vive, simbólica e integralmente, o calor insuportável de sua constante paixão incestuosa. O roteiro é denso e resulta em três longas horas de filme que, além de cansativas, me deixaram com os músculos das pernas endurecidos. Isso pode ter outra explicação. Talvez seja porque eu tenha passado o filme todo teso como André, cuja eloqüencia teatral pode ser resumida na paráfrase: "Eu sou o 'punheteiro' da minha própria história". Enfim, Lavoura Arcaica é "muito-muito-demais", mas não chega a ser muito bom. Muito boa no filme é a cena em que Ana (Simone Spoladore), escapulindo da fúria castradora de sua mãe e de suas irmãs, dança para o seu destino trágico enfeitada pelos apetrechos colecionados pelo irmão. Fez o filme valer a pena. A pena de Raduan Nassar. Guttenberg Lopes (por e-mail)
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