FÚRIA EM DUAS RODAS
Joseph Khan, Torque, EUA, 2004

Quando a Contracampo opta por defender certos produtos industriais hollywoodianos (como As Panteras Detonando ou Exterminador do Futuro 3), geralmente os leitores estranham num primeiro momento, mais acostumados (ou quase viciados) a procurar suas informações "críticas" sobre cinema em meios de comunicação que tentam opor quase sempre conteúdo e forma, ou mais diretamente diversão e reflexão. Mais do que isso: quando se elogia um filme como o de McG por conta de sua hiperexplosão de signos e seus significados, e sua negação da trama narrativa como obrigatoriedade de estrutura dramática, o leitor pode discutir que se isso por si só faz de uma obra um belo filme, trata-se de uma fórmula que depende menos de quem a produz do que de que ela simplesmente exista. Por isso mesmo, é oportuna a estréia de Fúria em Duas Rodas, para que voltemos ao filme de McG podendo opô-lo a um filme que facilite a comparação com ele.

Desde o primeiro plano deste Torque, o espectador está avisado que não vai assistir um típico produto hollywoodiano clássico, principalmente porque o filme faz questão de chamar a atenção para si mesmo e para sua realização em cada fotograma projetado – ao contrário da regra sagrada da invisibilidade do processo de realização. Não há no filme de Joseph Kahn um só plano que não seja auto-consciente, sendo que alguns beiram o mais radical abstracionismo cromático e um esgarçamento quase completo do tecido do cinema de ação. Kahn mistura a sua formação em videoclipes com os clichês da publicidade, e no meio do caminho presta sinceras homenagens à estrutura dramática dos cartoons (melhor seria dizer, dos mangás). Quando leva esta sua opção ao máximo, como nas sequências do final do filme, Kahn cria uma ópera audiovisual impossível de ser negada no seu fascínio puramente estético (especialmente na disputa entre as duas mulheres, onde a inserção de marcas publicitárias no cinema parece estar sendo satirizada, de tão explorada; e na cena da perseguição final pela cidade, onde todo resquício de lógica ou leis da física são jogadas fora por uma sequência que, de tão mexida em computador, de fato parece mais um anime do que uma cena de ação ao vivo).

Só que aí entra a diferença de Kahn para McG: embora Kahn exercite este seu fascínio pelo balé audiovisual, seu filme não parece ter a clareza de propósito de Panteras Detonando. Faltam a ele tanto o humor cáustico e referencial de McG (nos momentos em que parece acreditar na seriedade de seu filme – seja pela trama, seja pelos personagens) quanto a coragem de afrontar o espectador como o filme das "meninas superpoderosas" fazia. Kahn está mais preocupado em ser "cool" do que qualquer coisa, e aí sátira e pretensão se misturam demais, o que nunca acontecia em Panteras – que claramente não pretendia nada além de se divertir (até mais do que divertir o espectador). Já Kahn e o produtor Neal H. Moritz (que, não custa lembrar, é o "dono" das séries Triplo X e Velozes e Furiosos – e desde já se qualifica como a criança crescida que mais gosta de destruir veículos e dirigir rápído na Hollywood atual) parecem sempre dúbios quanto ao material de que tratam: será que eles assumem o caráter arquetípico e hiper-clichê de todas as imagens que usam (cenas como a da chegada ao circo dos motoqueiros, com as mulheres de biquínis e camisetas molhadas, indicam que sim); ou será que acreditam plenamente em alguma novidade que elas tragam (as cenas de ação indicam isso)?

O que é fato indiscutível é que Torque quer ser um filme cool por sua forma; Panteras Detonando era cool pelo seu ar blasé, distanciado e cínico com tudo a que se referia. O mais estranho e possível é pensar nele como mais uma adaptação do mercado a um "confronto" com seu modelo: se Panteras deixava nu o rei ao indicar uma completa saturação dos modelos de filme de ação, ou de seu tratamento audiovisual em pleno início do século XXI, Torque parece pegar esta saturação como dado para propôr nova ordenação deste universo, novamente inserido nos modelos de produção anterior (especialmente no seu diálogo com merchandising, venda de estilo de vida, etc). Por isso, mesmo com vários momentos isolados de inegável interesse, fica o claro cheiro de passo atrás.


Eduardo Valente