Tabu,
de Nagisa Oshima


Gohatto, Japão, 2000


Há alguma coisa de profundamente errado em todas as imagens de Tabu. Não porque o novo filme de Nagisa Oshima seja feio, de uma beleza ostentatória ou simplesmente equivocado. Não. É porque Tabu, ao contrário do que todos fizeram questão de falar, não é um filme sobre a homossexualidade, não é um filme sobre um desejo impossível que irrompe num seio militar – ou paramilitar, no caso da milícia do filme –, mas sim um filme sobre a beleza: de forma alguma sobre os poderes benéficos e límpidos dela, mas justamente sobre sua parte soturna, obscura. Tabu exprime a parte excessiva da beleza, tudo aquilo nela que é prejudicial a todo sistema porque o excede em energia, suga dele tudo que pode e se apropria, tal qual vampiro ou sanguessuga ou parasita, de tudo que pode até adquirir o estatuto de peça imprescindível do sistema. A beleza torna-se um vírus. Mas Tabu é antes de tudo o filme que não expõe uma situação, mas um processo: o processo através do qual a beleza, passando inicialmente por baixo de tudo, passa a ser o significante principal, como se fosse da moite para o dia. Tabu é um filme sobre o processo subterrâneo de um vírus amável, a beleza.

Daí a estranha beleza que emerge do próprio filme. Todo feito em estúdios, Nagisa Oshima realiza um filme de época, controlado, sem as explosões de desejo tão costumeiras em seus filmes – ou pelo menos nos poucos filmes dele que os brasileiros até hoje puderam ver. Um risco, então: o academicismo, um determinado número de valores que passa a valer unicamente por seu poder de clichê com o espectador – que poderia se basear numa espécie de regra tácita entre um realizador e o espectador: "eu te entrego uma imagem que já está determinada como bela e você a reconhece da mesma forma, como bela". Mas nada disso em Nagisa Oshima. Tabu é justamente um filme que problematiza na imagem o próprio tema de seu filme, onde forma e conteúdo estão de tal modo interligados, fazendo apenas um, que é impossível reconhecer em cada imagem magnífica, em cada plano maravilhosamente bem filmado, um reflexo da doença da beleza que explode o microssistema de desejos daquele grupo fechado que é o centro das atenções do filme.

Tabu transcorre ne Era Meiji – final do século XIX, começo do século seguinte –, período que dá fim ao xogunato e ao sistema feudal. É chamado o período de modernização do Japão, e um momento de muitas mudanças na sociedade japonesa. Mas a homossexualidade não é encarada lá nem como uma "nova moda" nem como uma prática anti-natural, avessa a pessoas normais. É apenas uma "inclinação estranha", algo que certamente não se entende muito, mas que não acaba com o perfil sério ou viril de nenhum dos homens com essa inclinação. Ao contrário: em toda a narrativa de Tabu, diversos homens deixam-se contaminar, ao menos em pensamento, por essa inclinação. O sexo não é encarado do ponto de vista da reprodução, da procriação, mas da produção de desejo, de um ideal propriamente de beleza que povoa aquele mundo. Se a homossexualidade passa por um circuito subterrâneo, se só se pode falar dela privadamente, é porque ela ameaça a instituição do ponto de vista estratégico: soldados que se tornam amantes podem comportar-se de forma apaixonada numa batalha e comprometer uma ação e a sobrevivência do grupo inteiro. Mas, mesmo subterraneamente, sub-repticiamente, fala-se da estranha inclinação o tempo inteiro em Tabu. Fala-se, até, exclusivamente sobre isso.

É período de escolher novos membros para a milícia Shinsen-gumi. Um deles é Sozaburo Kano (interpretado por Ryuhei Matsuda), jovem de longos cabelos e rosto de menino. O outro é Tashiro. Passa a funcionar entre eles uma espécie de estranha conjunção: o jovem guerreiro luta muito bem, inclusive melhor do que seu companheiro calouro, mas uma luta entre os dois sempre dará a vitória a Tashiro. Não é à toa que uma das cenas mais belas e sensuais do filme seja justamente quando o grande tenente Hijikata, interpretado por Takeshi Kitano em mais uma atuação formidável, repleta de uma serenidade vinda de outro mundo, reconhece que uma luta entre os dois é no fundo uma verdadeira declaração de amor, pois Sozaburo sempre deixará a vitória a seu colaga. Pois, por trás de todo conteúdo explícito, de todas as falas que mencionam a inclinação homossexual – e, como já se disse, não são poucas –, é o desenhar de uma relação amorosa que está em jogo em Tabu. Mas nem tanto o amor dos dois calouros, mas dois amores fundamentais, que se manifestam na figura de Sozaburo e na do personagem de Kitano.

Sozaburo é um jovem de família rica. Ele não tinha nenhum motivo para estar na milícia, que geralmente abriga jovens de classes baixas que não teriam outro futuro caso não se alistasse. Quando perguntado sobre o porquê de ter entrado na milícia, ele apenas ri. Aos poucos, vamos vendo que seu desejo não é pela coragem, pela virilidade ou pelo status de guerreiro (ele teria mais fama como aristocrata). Sua única intenção, sua única verdadeira afecção é o gosto de matar, e é por iso que ele entra para o Shinsen-gumi. Ele é a fonte da beleza, mas a beleza é degenerada. Degenerada a ponto de disfarçar seus atos assassinos e jogá-los para Tashiro, a quem todas as suspeitas levam.

Mas é do lado do outro amor que Tabu funciona. O filme de Nagisa Oshima é, antes de tudo, sobre o olhar de um homem, Hijikata. Ele deixa-se primeiramente maravilhar pela beleza do novo soldado. Depois, impressiona-se com a inclinação do pupilo e com o amor que ele parece mostrar para Tashiro. Aos poucos, contudo, vai observando a natureza doentia da beleza do jovem, a destruição progressiva de todos os códigos de conduta, de todos os signos. É um olhar contemplativo, como o de Burt Lancaster em O Leopardo, que admira Alain Delon, ou Dirk Bogarde em Morte em Veneza, ambos de Visconti. Mas se em Morte em Veneza a própria natureza da beleza não é problematizada – o ideal ascético da beleza que ele herda de Thomas Mann, uma espécie de ordem no caos do mundo –, em Tabu ele quase nunca deixa de sê-lo. Ao contrário: é a própria beleza que instaura caos, é ela o elemento que desordena o sistema. É tudo isso que observa Hijikata, deslumbrado ao mesmo tempo que terrificado pelo comportamento de Sozaburo. Mas é também Nagisa Oshima, olhando também para o cinema acadêmico japonês, de estúdios e filmes de época. Tabu é tanto mais belo quanto projeta para o ponto de vista da realização em cinema o terrível dilema de Hijikata. É só assim que podemos compreender que, na cena final do filme, Hijikata esteja sozinho com o espectador e uma bela árvore. De um golpe de espada, ele joga-a ao chão. Não se trata de recalcar um desejo homossexual, tampouco de "cortar o mal pela raiz", como uma metáfora fácil bem poderia concluir. É acima de tudo o reconhecimento de que certas belezas ocultam em si um mal insustentável, com o qual é impossível de se viver. Só que esse mal, Hijikata e Oshima incorporam, amam profundamente, mesmo que saibam impossível existir sem que eles corram risco de vida. Sozaburo e Hijikata, a bela árvore e Hijikata/Oshima, o cinema acadêmico e Oshima, principlamente: duplas sulfurosas, onde só um pode sobreviver. Um destila o veneno assassino (oferece uma beleza falsa), outro incorpora o veneno no tecido de seu métier pra torná-lo mais forte. Tabu consegue ganhar a aposta que faz, trabalhar em terreno inimigo: parecendo oferecer um espetáculo acadêmico, parecendo oferecer seu filme mais conservador, Oshima toma uma espada e subverte por seu discurso todo o conjunto de signos do cinema de academia. Tabu, subterrâneo e subversivo.

Ruy Gardnier