Santo Forte,
de Eduardo Coutinho


Santo Forte, Brasil, 1999

Novos parâmetros para o filme documental

Santo Forte, último filme de Eduardo Coutinho e sua equipe, é um poema na medida em que realiza cada plano com a intensidade de uma necessidade. Essa necessidade visa aproximar diferentes visões de mundos. Essa exatidão, que é menos um comedimento que uma opinião, reflete a preocupação do autor em não cometer excessos grosseiros. Não há excessos em Santo Forte porque não há construção de uma imagem sobre o objeto. Para tanto, Coutinho e sua equipe alteraram caducos parâmetros para a realização de documentários. Mas cuidado: estes 'novos parâmetros' não devem ser confundidos com 'novos padrões'. Os novos parâmetros agem como ato propulsor para uma consciência menos totalizadora. Hoje, o documentário, em sua maioria brutal, reflete um grau de análise e reflexão bastante vulgar e um método de apreensão do objeto que não contempla o intuito desejado. Informar é muito pouco para Coutinho e este Santo Forte. Seus intuitos são bastante diversos do turismo ecológico e dos soporíferos programas antropo-sociológicos a que estamos habituados. Muitos podem se lembrar de Vertov, de Van der Keuken ou mesmo de Flaherty. Mas, sobretudo, não há como não lembrar de Rossellini e sua irritação diante da esterilidade do cinema de ficção. Do seu modo, Coutinho implode as bases dos documentários usuais realizando uma operação criativa que contribui para uma nova compreensão do documentário. Assim, consideramos Santo Forte um filme capital para estabelecer uma compreensão 'necessária' do cinema, visto que a própria função do diretor se dissolve no filme.

Para o russo Dziga Vertov, por exemplo, o cinema é, por definição, documental e a ficção é um equívoco. Para Rosselini o cinema meramente estético, que busca a beleza das tomadas, não tem importância: é um desperdício. Para ambos o cinema é o instrumento mais eficaz para alcançar o conhecimento e estimular a tolerância entre os homens. Muitos jornalistas e o público 'pensante' reiteram seus pudores contra estas idéias, em nome de uma pretensa sabedoria. Consideram os intuitos destes cineastas 'coisa do passado', 'artigo esgotado', 'utopia' ou algo que remeta à impotência ou à poesia (de resto, para a vulgata científica, tudo que é pouco inteligível é 'poético'). De modo que o documentário ainda vive de antigos preconceitos e reduções, tanto na produção e no consumo quanto no comentário especializado. Como pensar o cinema e, sobretudo, o cinema documental sob estas limitações? Sabemos que há um estado do filme documental mas, antes deste estado, há um receptáculo geral que não se restringe ao público, mas açambarca o jornalismo cinematográfico. Este receptáculo faz referência a uma série de exigências que tornam inteligível o documentário: a) uma interpretação prévia; b) uma cadência que permita a 'boa digestão' do assunto; c) uma conclusão em contato direto com aspirações consensuais; d) uma redução do mundo, isto é, aspiração a uma visão total do real.

A interpretação prévia é implícita e o espectador menos atento se satisfaz, pois ela determina um caminho seguro e possivelmente equivocado, do sujeito ao objeto. Deste modo, o cinema age como professor moralista que busca 'conduzir' o espectador sobre uma interpretação já dada. Os documentários científicos e, sobretudo, os políticos são exemplos disto. Mas para bem conduzir uma ‘'alma perdida' é necessário que se realize uma conexão entre a cabeça do espectador e o que se mostra na tela. Quem faz a ponte é a cadência e a disposição dos objetos no tempo e o sentido que eles tomam nesta movimentação. Ao descrever, comentar ou relatar um assunto, o documentário deve se ater a uma lógica comum que se aproxime do objeto, isto é, deve responder por uma linguagem 'adequada'. Deste modo acreditamos que se evita criar uma disposição mais próxima do objeto em troca de uma disposição mais próxima do formato exigido. Esta tendência segue em direção ao consenso mais ou menos geral: para quem gosta dos filmes da Conspiração Filmes, não há porque se preocupar, pois eles nunca mudarão o formato e, a reboque, a interpretação; para os amantes do National Geographic, idem; e assim por diante. De modo que, para a maioria dos documentários, há um mundo à parte disposto para 'apreciação'. Raras exceções buscam o documentário como forma de expressar idéias e promover a tolerância e a criação. É o caso de Santo Forte.

Entendemos que o que faz de Santo Forte um grande filme é a capacidade de nos reportar a uma realidade sem mediações. Não se vale de artifícios porque Coutinho e sua equipe não estão preocupados em estabelecer nenhum caminho prévio. Ao contrário, imputam ao espectador a construção do problema. Cabe à sensibilidade deste espectador, sugerir ao seu imaginário uma idéia sobre a religião e a vida de pessoas cuja realidade social lhe é distante. Tanto me parece um respeito 'antropológico', quanto um respeito prosaico. E é genial que Coutinho saiba suplantar este respeito 'antropológico' e levar a seus filmes uma realidade, de certo modo, impenetrável. Me parece que esta façanha é suportada por dois motivos básicos:

1. Coutinho não pretendeu esgotar o assunto. Ao contrário, buscou extrair de seu objeto uma compreensão imparcial. O espectador se depara com a crueza de cenas do cotidiano. O significado desta crueza ressalta o discurso do entrevistado. A valorização da palavra enfraquece as propriedades 'mágicas' do cinema e realça a poesia do real e do imaginário. Não há uma porta de entrada para a compreensão do objeto, senão pela realidade fotográfica e pela palavra. Se pretendesse esgotar o assunto, Coutinho estabeleceria uma porta de entrada, onde sua interpretação pudesse saracotear no ritmo certo. Não é o caso. E nos valeremos de um conceito de Gilles Deleuze, tamanha a clareza de seu significado. Nos parece que Coutinho faz o 'mapa', ao invés da 'árvore'. A árvore possui uma raiz que determina seus galhos: não há escolha. O mapa depende do espectador: ele tem uma demonstração do 'todo' (sempre incompleto e volátil) e sua necessidade lhe guiará. Me parece um método criativo, que se utiliza do cinema como meio eficaz de conhecimento.

2. O olhar documental, que procura uma explicação positiva do real, é substituído pelo olhar anti-científico, que não pode deixar de ser criativo: ele ronda o objeto e não busca, de forma alguma, características fixas. Antes, se preocupa em pensar as expressões, as palavras, as nuances de um pensamento distante. Portanto, busca olhar o objeto com respeito pelas manifestações naturais do mesmo, sem lhe atribuir nenhum significado total e agressivo. O filme poderia ser organizado em planos mais 'cuidados', onde a evolução dos objetos se explicitaria, e então Coutinho estaria contando uma história sobre o que ele 'acha' daquelas manifestações. Ao contrário, compõe uma anti-ciência, onde a positividade se manifesta às avessas, onde o que é inexato traz para o objeto uma compreensão mais ampla.

Assim, ao invés de explorar uma empregada doméstica e sua dicção um tanto debilitada, Coutinho 'deixa falar', reforçando o caráter poético de seu discurso. Ele poderia ter se aprofundado na miséria em busca de comiseração solidária. De que serviria? Melhor estabelecer uma idéia cinematográfica e ressaltar o conteúdo e a forma do discurso. A câmera parada, sem cortes, nos reporta à favela. Ouvimos aquelas palavras como se estivéssemos batendo papo, participando de uma conversa da qual somos, nós mesmos, objeto. A umbanda é uma religião que habita nosso imaginário, tanto quanto o catolicismo. Somos 'macumbólicos', como ouvi recentemente. Não assistimos em Santo Forte ao dilema dos 'outros', que se debatem entre a miséria e o fanatismo. Somos parte desta história, portamos dúvidas cruéis sobre mistérios insolúveis e fantásticos. De resto, as pessoas que gargalharam na estréia do filme, devido à dicção ou à crença histriônica dos personagens, acreditam do mesmo modo em magia, sobretudo quando Omo lava mais branco e o xampú ceramidas limpa cada fio de seus cabelos. E isso sem possessão, mas através de desenho animado com a mais deslavada pretensão 'científica'.

É admirável passar pela experiência de um filme como Santo Forte, tamanha riqueza de seu conteúdo. Em minha cabeça, urge a pergunta: de que vale a imagem hoje? Me obrigo a acreditar que Santo Forte causou um rombo nas cabeças pensantes da zona sul e, rapidamente, arrefeço. Hoje, o poder da imagem sucumbe à barbárie, à intolerância e promove o aumento das distâncias e do misticismo banal da ciência. O que interessa realmente é a vida, com todas as suas intempéries e complexidades. E também a promoção da criatividade: é fundamental lançar mão dela para apreender o mundo, graças a seu poder de suscitar mudanças.

Bernardo Oliveira

foto:
Claudia Linhares Sanz