O Invasor,
de Beto Brant

Brasil, 2001


Durante a sessão de O Invasor, o espectador mais atento tem o desejo de questionar uma série de coisa sobre o filme. A começar por um certo esquematismo que marca as personagens de Marco Ricca e Alexandre Borges (no velho sistema do "tira bom-tira mau", mesmo não sendo policiais), e passando por uma tendência histriônica do roteiro e da linha de encenação entre atores e câmera que cria alguns momentos (principalmente do mesmo Ricca e de Paulo Miklos) francamente desnecessários onde parece que não se confia muito na capacidade do espectador de captar os personagens sem que eles sejam levados ao extremo. Também se deve questionar a escalação de alguns rostos (como o de Malu Mader, principalmente) cuja presença popstar acaba se revelando mais distrativa do que a personagem pediria para ser realmente crível. Estes são alguns de vários pequenos possíveis senões que o espectador pode levantar.

Porém, se este mesmo espectador esteve e está atento ao que se produz no cinema brasileiro atual, ele vai se sentir imediatamente desencorajado a fazê-lo. Mais do que desencorajado até, se ele realmente acompanha o cinema nacional com afinco, simplesmente sentirá que não pode criar um parâmetro de crítica ao filme por um motivo bem simples: não há padrão de comparação. Porque todo filme precisa ser julgado no contato com outros filmes que o cercam e que o relativizam. Neste caso O invasor escapa a este processo porque, afinal, com que filme compará-lo? Como dizer "ah, aqui ele podia ser melhor", "ali tal e tal filme foram mais sutis ou inteligentes", se ele está completamente sozinho no panorama atual do cinema nacional? Queríamos muito poder ter outros 20 filmes para compará-lo e que o tornassem "apenas mais um filme". Como não há, ele torna-se extraordinário e imprescindível.

E o motivo para ser isso é bastante simples: ele é sobre o Brasil de hoje. E tem urgência em sê-lo, em colocar na tela a vivência que aflige o espectador com o que ele sente nas ruas, com as contradições que ele vive, em conflito, angustiado, confuso como deve ser qualquer filme que tenta falar do que o cerca quando é óbvio que não há distanciamento para tal, mas ao mesmo tempo não se consegue ser de outra forma. E, talvez o que mais o torne diferente da produção nacional é que ele o faz sem querer somente fazê-lo. Ou seja, ele é sim um "conto exemplar" sobre a sociedade brasileira em 2001, mas antes de ser exemplar ele é um conto. Se a realidade surge nele, discutida e onipresente, não é porque ele se pretende a priori como um tratado sobre ela, mas sim porque ela é tão forte que torna-se inescapável. O mundo exterior invade a trama pretensamente "policial" assim como o faz o personagem de Paulo Miklos, pois o verdadeiro "invasor" do filme é o Brasil. Brasil que cisma em surgir nos cantos de cada plano, que cisma em pressionar e assombrar os personagens, que queriam apenas ser isso, personagens. Sempre foi esta a grandeza maior do cinema americano: nos seus bons e maus filmes, nos mais comerciais aos mais reflexivos, sempre deixava em primeiro plano os Estados Unidos da época de sua realização de forma quase transparente, mesmo que fosse pelas bordas das imagens e sons.

É por isso que a principal leitura possível de O invasor é necessariamente alegórica e sócio-histórica, ainda que ele não seja "sobre" isso, mas sim sobre seus personagens e os seus pequenos dramas. No início, quando Marco Ricca e Alexandre Borges estão urdindo a trama que vai desencadear todo o drama, o filme parece preso a um excesso esquemático que quase o sufoca, entre o bom rapaz atormentado e o menino mau e sem escrúpulos. Parece ser mais um do tanto que já vimos, no máximo um asséptico mea culpa da burguesia assombrada. Mas, quando o personagem de Miklos "invade" esta trama que não é dele, se dá a mágica do filme. A múltipla interpretação deste conceito de "invasor" nos parece mais interessante até mesmo neste sentido dramatúrgico: não era para aquele personagem ter presença nesta trama de amizades, traições e ambições entre nossa "realeza". Ele seria o seu Rosencrantz ou o seu Guildenstern, ou seja, simplesmente o braço que executa uma ação mas não possui direito a diálogos. Tudo no filme até aquele momento indicava isso (tanto que inteligentemente Brant não mostrava nem o rosto do personagem).

Mas, símbolo de uma necessária alteração na dramaturgia e de uma situação social nacional, o fato é que não se consegue mais deixá-lo de lado simplesmente "cumprindo sua função". Ele quer mais. Ele passou tempo demais assistindo a filmes, novelas e comerciais na TV que vendiam para ele a realidade a qual ele não tinha direito. Pois hoje ele deseja ser aquilo que lhe foi vendido como o "ideal a ser atingido". Ele também acha que merece um pedaço da torta, e quem vai negá-lo? O mais fascinante índice da atualidade deste retrato é que a luta de classes nele encontra-se transmutada. Ou seja, não se trata mais de um confronto, o personagem de Miklos não quer derrubar a ordem burguesa para se instalar revolucionariamente no poder. Ele quer apenas passar a ser burguês também. O que se percebe nisso é que a propaganda materialista cria um novo ser, um novo excluído, que não odeia tanto aquele que o oprime por oprimi-lo, mas sim por impedi-lo de ser como ele. Se dada a chance, ele não busca "justiça social", e sim ascensão pessoal. Tornar-se um dos "escolhidos", forçando a porta.

Quando o personagem de Miklos "invade" e toma conta da narrativa do filme, o que está em questão não é sua "pequena invasão" da vida daqueles personagens. Mas sim a enorme invasão na dramaturgia do cinema brasileiro que ele representa. Ou seja: não podemos mais apenas urdir as mesmas estúpidas tramas baseadas em psicologismos que movem personagens mediocremente desenvolvidos. O Brasil não tem espaço para esta assepsia, ele quer ser ouvido, quer ser visto, e se não será dado este espaço para ele, ele o invade.

E a grandeza maior do filme ao fazer isso é justamente a de tornar não só o personagem de Miklos, como o universo que ele representa, "o outro". Talvez esta seja a principal diferença do filme de Brant: ele não ignora a realidade brasileira, mas também não pretende filmá-la como se fosse um dos "manos". Ele não pretende solucionar e qualificar de cima para baixo uma situação muito mais complexa do que poderia conseguir, tanto quando não a pode mais negar. Fica claro no filme, e esta é uma enorme qualidade, que o universo do cineasta é o universo dos personagens da camada mais abastada da sociedade: academias de ginástica, boates, apartamentos e empresas nos Jardins. Ali a câmera "está em casa". Invadida pela periferia que a cerca, ela até se vê obrigada a fazer duas incursões a este outro universo, mas em ambas assume um tipo de olhar igualmente "invasor". Sabe que não decodifica os códigos visuais e de linguagem daquele espaço, e limita-se a ser os olhos dos personagens ricos que se aventuram por lá (nos casos, primeiro o de Mariana Ximenes e depois o de Marco Ricca). Não nega, por não mais poder negar, este universo da periferia, mas sabe que ali é ele o invasor. O cinema brasileiro ainda é o invasor de sua própria realidade, e precisa assumir isso. Tal e qual os personagens neste filme, o contato com este "universo paralelo" precisa ser forçado porque ele não mais respeitará o silêncio a que foi condenado.

Neste sentido há duas sequências efetivamente magistrais que por si só estão acima de toda a produção recente nacional. Inclusive por serem movimentos opostos e complementares. Primeiro, a "invasão real" da periferia ao centro da trama, representada pela presença de Sabotage, que na "vida real" é não só um rapper mas também um ex-detento e traficante de drogas. Na cena, ele entra pelo escritório de Ricca e Borges e manda uma de suas rimas, e a filmagem é exemplar e no ponto, pela forma como os dois reagem, completamente embasbacados, incomodados e sem saber como lidar com aquele dado novo. Ali se escreve um pedaço desta nossa história. A outra cena é já quase no final, o "passeio" de Ricca pela periferia que cerca os grande centro, a riqueza. Um travelling incomodamente longo onde não só o ambiente o violenta, estranho a ele como qualquer selva amazônica seria, como a trilha sonora também grita nos seus ouvidos pela boca do Pavilhão 9: "A bomba vai explodir/ ninguém vai te acudir/ sociedade destrói sua vida/ capitalismo máquina suicida". Estas duas sequências da interpenetração dos "Brasis" já valeriam mais do que tantos filmes.

E é por ser o primeiro filme a tematizar esta fissura entre a realidade e o nosso olhar sobre ela que O invasor está acima de tudo que se fez recentemente no cinema nacional. Esta fissura deveria ser o principal tema do nosso cinema, simplesmente por ser a principal marca característica nacional. Neste sentido, o filme desejava apenas ser um pequeno trabalho, um conto, um olhar, mas adquire sentido muito maior. Adquire a capacidade de demonstrar que um "novo cinema" se faz necessário, algo que se teorizava muito mas não se via na prática. Um cinema jovem, mas um cinema acima de tudo urgente. Um cinema de "baixo orçamento", um cinema de pequenos personagens e pequenos temas, mas de enorme relevância. O Brasil precisa aprender a se questionar de novo, a se olhar de novo. Se o cinema brasileiro ainda aspira a qualquer relevância, esta é sua única opção para fugir da assepsia que ameaça sufocá-lo. Porque a única certeza é: a bomba vai explodir.

Eduardo Valente