Nenhum a menos,
de Zhang Yikmou



(Not One Less), China, 1998

Sem o intermédio de Keep Cool, penúltimo filme de Zhang Yimou que ainda não foi exibido no Brasil, fica difícil entender a passagem de um Tempos de Viver tão autêntico para um Nenhum a Menos tão esquemático. Mas seria um engano avaliar esse Nenhum a Menos ou pela obra anterior de Yimou ou à luz do prêmio ganho em Veneza (Leão de Ouro, em detrimento dos filmes melhores de Kiarostami e Jang Sun Woo). Pois o filme situa-se num lugar complicado do ambiente cinéfilo contemporâneo, conjugando dois tipos de filmes que surgiram em contraposição um ao outro: o cinema neo-realista, quase documentário e da simplicidade, de um lado; e o cinema previsível hollywoodiano, das estruturas conhecidas, do modo único de produção, de outro. Do primeiro lado vemos a simplicidade das locações, a utilização de atores não-profissionais, etc. Mas é do segundo que vem o tom dominante do filme: timing de roteiro, manipulação de sentimentos, música insuportavelmente repetitiva, fim reconciliador e pelego: em poucas palavras, tudo que constitui em sua pior acepção a fórmula tão em voga de espetáculo. Mas nem nisso Nenhum a Menos é inovador. Filmes como Central do Brasil e A Vida É Bela também mexem com essas duas formas tendendo claramente para o modelo dos estêites. E seria inútil evitar a comparação, pois há diversas semelhanças. Pois a história de uma menininha de 13 anos, professora-substituta que deve manter todos os alunos na sala de aula a despeito de sua competência como professora e das agruras do vilarejo (falta de comida, de dinheiro, de lugar para dormir, muita pobreza enfim), que vai à cidade grande para resgatar uma ovelha perdida, tem muito a ver com as conduções dos dois Josués a um mundo de sonhos. Nos três filmes, também, a colocação da infância como local privilegiado da falta de reflexão, dos automatismos "humanos", da metáfora perfeita para a humanidade (metáfora, aliás, muito semelhante à de Forrest Gump). Resta ainda um desagradável sentimento de derrota quando vemos, num momento catártico do filme, as crianças arrecadando dinheiro para compartilharem um golinho da ambrosia que é a Coca-Cola. Ou quando a televisão, ao final do filme, é vista como a redentora global, a pacificadora social, algo entre a Porta da Esperança de Sílvio Santos (os desejos são atendidos ou não) e o Programa do Ratinho (os sentimentos patéticos sendo mostrados em primeiro plano). Ao fim do filme, a legenda dá a medida da 'mensagem' do filme: quando ela fala da situação de pobreza das vilas camponesas da China e da dificuldade das escolas, tudo que ressoa é a solução encontrada pelo filme, qual seja: difusão midiática de um problema e resposta caridosa dos consumidores. Zhang Yimou afasta todo um problema social de uma macroesfera política e transforma a questão social num trabalho de boa-vontade. Isso poderia ser passável para um filme feito nos EUA (que é para quem o filme deve ter sido feito; no mais, sempre houve ocidentalização na estética de Zhang Yimou), afinal eles realmente vivem numa sociedade de consumo. O que torna as coisas piores é que na China, como no Brasil, o consumo não é questão de uma sociedade, mas de uma ou duas classes. Tanto pior para nós, tanto melhor para Yimou. O que surpreende, nos dois casos, é a típica submissão do Terceiro Mundo à ideologia (estética, ética, [a-]política) do Primeiro.

Ruy Gardnier