Procurando Nemo,
de Andrew Stanton e Lee Unkrich

Finding Nemo, EUA, 2003


Logo depois da sessão de Procurando Nemo, minha namorada, postulante a antropóloga, talvez influenciada pelas centenas de páginas sobre esquimós e povos africanos que tem lido para a prova de mestrado que em breve fará, brindou-me com um comentário que, confesso, me deixou orgulhoso: "É sensacional como o pai muda de nome várias vezes, para cada situação de que ele toma parte".

Procurando Nemo é sobre isso mesmo, sobre ritos de passagem, sobre o amadurecimento e a conquista de posições em uma cultura. E é particularmente interessante que o procedimento tenha sido invertido: a busca pelo pai, no desenho animado, é a busca pelo filho. Com isso, quem tem que amadurecer é o mais velho. Quem já tem em si a sabedoria é o mais novo. Quem passa por ritos de passagem é aquele que já tem a história em si. Mas ao ser um filme sobre essas passagens e sobre o amadurecimento, Nemo, um filme infantil, é, claro, um filme sobre a experiência. E nunca a experiência acumulada, mas a experiência a ter. O pai absteve-se da história, recusou-se ao experimento.

Seu próprio nome-epíteto, Marlim, renega sua dimensão experiencial, como bem lembra um outro personagem: "Um peixe esportivo". Marlim não tem nada de esportivo. Sua classificação é ainda mais cruel (e por isso mesmo, mais anedótica): é um peixe-palhaço... Que não tem nada de engraçado. Ironia mesma com a maneira irresponsável como as aparências enganam. O filme poderia até ter um peixe-boi como personagem. Seria o paroxismo da ironia (não nos esqueçamos nunca que o mamífero aquático nem é peixe e nem é boi). Há até uma brincadeira kantiana no filme, um jogo entre sistema e objeto que, no final, faz o peixe-palhaço querer ser mesmo engraçado. A companheira de jornada de Marlim, por sua vez, soma-se a ele em sua recusa da vivência, mas por uma determinação: é amnésica. Não se lembra do que lhe acontece proximamente. A memória traiu a ambos. Ele porque se fez eremita do tempo, ela porque foi dele privada.

Mas eis que temos o conflito pai e filho, a luta pelo poder sobre o tempo, tão típica, tão cara ao cinema, em manifestações habitualmente beligerantes, em obras tão díspares quanto o recente e tecnológico Hulk, de Ang Lee, ou o bergmaniano As melhores intenções, de Bille August (talvez seu único grande filme). O jovem, distante da morte por sua juventude, o adulto, com a morte a espreitar por sua condição de participante da vida adulta. O jovem é sedento pela experiência que comprova a cada momento sua condição de distante da morte pelo constante desafio a ela. O adulto simplesmente dotado do desejo de conservar o jovem para sempre jovem, para sempre protegido, para sempre aprisionado. E é ele, o pai, quem tem que ser posto à prova. É Abraão diante do altar do sacrifício, a entregar Isaac. Mas é um Abraão despido do poder, que tem que se destituir de toda sua relação com a origem, fazer-se tábula rasa e preencher-se de sentido. Daí as mudanças de nome (tão bem observadas pela moça, devo lembrar): ele, por exemplo, deixa de ser Marlim e vira, para as tartarugas, "O da água-viva", aquele que passou pela prova de fogo dos seres marinhos que provocam queimaduras. Neste processo, vira mito. Suas façanhas na busca por Nemo correm os sete mares. Marlim é um menino cujos primeiros feitos são celebrados por toda a tribo. E a cultura que o cerca, a do fluxo, a do mar, celebra sua produção como integrante de sua história a cada conquista.

Nisso tudo, salta aos olhos a aparente determinação que se impõe a essa fábula. Afinal, a batalha entre pai e filho foi interrompida pela própria dimensão salvacionista da jornada que o pai empreende. É o pai que reencontra o filho. O filho, por sua vez, em seu ato por liberdade, recebe em conseqüência, o aprisionamento (em um aquário). Nele, também passa a integrar outra tribo, e a ganhar outro nome, "Minhoca". Mas é justamente nisso que o desenho animado melhor assume sua dimensão mais típica de conto moral e, ao mesmo tempo, surpreende como filme da Disney: pai e filho se tornam um só. Igualam-se na celebração do tempo. No final das contas, Procurando Nemo é um filme sobre o medo da morte, porque é um filme sobre o medo da vida. Entre os peixes, de vida tão curta, e as tartarugas, que vivem 150 anos, a experiência é a do valor da própria experiência, para dar sentido ao tempo, cuja conversão em história dá sentido a cada um.

Alexandre Werneck