Náufrago,
de Robert Zemeckis


Cast Away, EUA, 2000

A bem da verdade existem dois Náufragos e isso deve ser dito logo de saída. Existe o retrato de um homem perdido numa ilha, após um acidente de avião, isolado da humanidade por 5 anos. E existe uma história que nos conta a vida deste homem, antes e após a ilha. O filme na ilha é muito, muito bom. O filme fora dela é muito, muito ruim, imperdoável mesmo. Como eu já defendi que tudo que se precisa saber de um filme estão nos primeiros e nos últimos cinco minutos, só posso dizer que Náufrago não é um bom filme. (Aliás, porque o filme se chama Náufrago na tradução, se não há qualquer naufrágio? Cast Away quer dizer isolado, perdido, mas náufrago?? Hmmmm...)

O início do filme é de preocupar: nele se percebe desde os primeiros planos um merchandising absurdo de uma marca, a Fedex. Mas tão absurdo que parece brincadeira. Não é, fica claro no final. Depois, uma linha de história que parece também ser uma brincadeira de tão afrontosa: um americano, em plena Rússia, ensinando os preceitos da eficiência capitalista. Tudo bem, até um certo ponto esta posição é ironizada ao longo do filme. Mas se o diretor não defende de todo seu protagonista, suas críticas aos russos não é menos ofensiva, preconceituosa, estúpida mesmo. O fato é que tudo no início é dispensável, irritante, grudento. Então, há o final, que retoma o clima do início, e que parece mais uma vez uma brincadeira. A cena final, então, cria uma significação católica de penitência em favor de uma missão maior, onde o penitenciado encontra a salvação pelas mãos de um anjo, que chega a ser sinistra. Coisa muito ruim mesmo.

Mas, no meio, tem um filme fascinante, que é o que de fato motivava o diretor, mas que ele não teve a coragem nem a decência de explorar a fundo, ou de julgar independente de tamanho equívoco como este prólogo e epílogo. Este "filme dentro do filme" começa com uma das mais impressionantes seqüências do cinema moderno, a do acidente de avião. Num cinema onde os efeitos visuais tornam tudo de fantástico banal, a forma como é filmada esta cena consegue trazer de volta a sensação de horror e magia do "cinema de sensações". É a primeira cena de acidente de avião que eu me lembro de assistir e ter a sincera sensação de que deve ser assim mesmo. Ele opta por filmar tudo de dentro da aeronave, quase em primeira pessoa, e o desconforto e verdadeiro pavor são indescritíveis. É o cinema americano na sua maior capacidade de comover pela técnica. É tão chocante, em especial comparado com o soporífero início, que é impossível não reforçar a idéia desta separação em dois filmes. Tanto mais, que a passagem desta fase do filme para o tal final é marcada por outra seqüência igualmente impressionante, de profundo poder catártico: a do resgate no mar. Estas duas seqüências fazem de todo resto uma bobagem, e são demonstração do que há de específico ainda hoje no cinema hollywoodiano como linguagem que fascina completamente.

A passagem do personagem pela ilha, embora não alcance o clímax destas duas cenas, é muito bem construída, e se nela não se explora mais a fundo os temas propostos, é porque seria impossível penetrar no pavor desta situação num filme como este. Há alguns indícios de como se fazer um filme mais angustiante do que este no filme português Tarde Demais, cujo título já indica sua disposição mais trágica do que o americano. Na ilha, ao invés de investir na questão do pavor e da solidão, embora elas apareçam em momentos, o propósito do diretor é, de alguma forma, refazer naquele personagem a trajetória da raça humana. Ou seja, é como se ele levasse o Homem de volta ao mais básico: sem tecnologia, sem meios materiais, apenas ele e o meio ambiente. Como comer? Como beber? Como se proteger das intempéries da natureza? Como curar ferimentos? Como fazer fogo? Como lutar pela vida? Ele tenta provar como as menores coisas que nos parecem tão simples no dia a dia são conquistas seculares do Homem. Nesta tentativa, ele é bem sucedido. Há cenas absolutamente fascinantes na ilha, além da ilha em si mesmo, que é fotografada magistralmente, criando uma sensação que mistura a beleza e o medo do infinito da natureza (ressaltando-se horizontes, imensidão do mar, gigantescas pedras).

De fato, o filme é tão impressionante (ainda que não perfeito, volte-se a destacar) nesta passagem pela ilha que causa profunda revolta o início e o fim. É a lei de Hollywood, mas porque? Porque estragar algo tão fascinante? O público não é tão bobo assim, e fica claro que seu interesse e fascínio é despertado pela ilha, tão somente pela ilha. Na volta dele à civilização ainda poderia se explorar questões grandiosas, a começar por como um homem pode conceber voltar ao mundo moderno após precisar sobreviver naquelas circunstâncias por 5 anos. Mas, o filme toma a posição estúpida de que tudo é uma questão de amor e romance. Se você tiver uma mulher, isso que importa. As contradições enlouquecedoras são esquecidas, a piração e a insanidade que obrigatoriamente o assolaram naquela ilha, esquecidas. Tudo está bem, se você tem alguém para te abraçar. Talvez (não me parece que sim, porém) as platéias fiquem mais reconfortadas em saber disso. Mas, o fato é que o filme perde a chance de ser algo de importante na história do cinema, para ser apenas mais um banal estatuto da narrativa hollywoodiana. Pena.

Eduardo Valente