A Festa de Margarette,
de Renato Falcão

Brasil, 2002


Quando foi lançado ano passado no circuito dos festivais (começando pelo Cine Ceará, e passando pelo Festival do Rio, Mostra de SP e Festival de Brasília), o filme de Renato Falcão foi pegando de surpresa o público em cada um desses eventos. Realizado quase na "surdina", de forma absolutamente independente (o que, no caso brasileiro, significa sem leis de incentivo), ao longo de alguns anos de trabalho, não se poderia esperar do filme o resultado obtido (ou talvez até mesmo a tentativa ousada). O filme surpreende por quão simples faça parecer sua complexidade, e ao mesmo tempo por quão complexa torne a sua simplicidade.

Explicando um pouco melhor: uma tentativa de retomar o formato narrativo do cinema mudo num longa metragem é sempre extremamente corajosa (tínhamos exemplos como a homenagem recente do curta Mr. Abracadabra, mas o curta é o formato mais ligado aos experimentos estéticos). Corajosa pela complexidade envolvida na montagem dessa narrativa uma vez que, dominada no início do século (até por ser a única forma conhecida até então), tal técnica desde então não tem sido praticada de fato. E, como todo exercício, apenas a prática leva ao sucesso. Não é nada fácil fazer com que uma história seja contada apenas por imagens e trilha, sem diálogos, mas mais do que isso: retomar o tipo de comicidade quase ingênua que este formato pede é um risco muito grande. Até que ponto platéias estão dispostas a compactuar com ele é uma primeira pergunta. Uma segunda, e talvez até mais importante, é como dominar as áreas da atuação, fotografia e montagem (incluída aí a decupagem, que une um pouco estas duas áreas técnicas), de forma que o filme tenha o ritmo, a linguagem, a sensação correta desta forma narrativa, sem ser nem repetitiva nem completamente equivocada. Trata-se de complexa operação, e é a esta que atribuímos a surpresa com a simplicidade com que Falcão soluciona - e devemos de fato personalizar a questão, uma vez que ele é diretor, fotógrafo e montador do filme! Antes de qualquer outra consideração, é um triunfo que ele estabeleça e mantenha sua narrativa de forma coesa ao longo de toda sua duração. Triunfo também de Hique Gomez, é verdade, especialmente como persona na tela, mas também na trilha que, considerada excessiva por alguns, parece extremamente adequada ao filme. Chama muito a atenção para si, é verdade, mas isso não é desabonador no caso, como também não a faz a principal vitória do projeto.

Mas este mesmo triunfo escondia em sua conquista um risco inerente ao sucesso do filme: que fosse apenas um bem executado e frio exercício formal. É aí que Falcão nos surpreende de novo, desta vez por dar complexidade a uma trama que parece simplória no seu início. O diretor não quer com seu filme retomar qualquer traço de uma certa ingenuidade cinematográfica, pelo contrário. Aos poucos, em sua história vão se insinuando cada vez mais temas e personagens intrínsecos ao Brasil de hoje: surge a exclusão social, a violência policial, o extermínio de menores, a Igreja Universal, os excessos da propaganda e da TV, o consumismo desenfreado. O diretor vai costurando com carinho cada um desses elementos, e torna esta a segunda surpresa do filme: o que parecia uma inofensiva diversão vai adquirindo tons cada vez mais melancólicos (e aí a aproximação ao universo de Chaplin parece muito mais rica que numa simples clonagem de artifícios narrativos). Com seu final duro, quase desesperançado (embora não de todo), o filme prega a sua segunda peça, igualmente bem sucedida. Fecha-se a equação conteúdo/forma, quando o diretor parece nos propor que a realidade que vivemos hoje é tão surreal que parece só fazer sentido como um espetáculo quase circense, tamanho o seu ridículo. Não deixa de ser uma forte posição política, algo inesperado do filme até pelo menos a sua metade.

Estes dois triunfos (narrativo-técnico e de conteúdo), vindos de um cineasta estreante, fazem de A Festa de Margarette uma das mais felizes surpresas do cinema brasileiro num ano já tão positivo quanto foi 2002. Se não é um filme que pretenda marcar época, certamente é um filme que suplanta os desafios que impõe a si mesmo. Uma vitória que, se a maioria dos filmes conseguisse, nos faria todos muito mais felizes.

Eduardo Valente