Longe do Paraíso, de Todd Haynes

Far From Heaven, EUA, 2002


Julianne Moore e Dennis Haysberg em Longe do Paraíso, de Todd Haynes

Cathy Whitaker vive com seu marido Frank o casamento perfeito. A cena de apresentação de Longe do Paraíso não poderia ser mais declaradamente reveladora: uma cidade perfeita, um carro perfeito, um jardim perfeito, dois filhos lindos, as múltiplas tarefas de uma dedicada mãe de família no final dos anos 50. Tamanha dedicação não poderia passar despercebida pela publicidade nem pela crônica local: Cathy é a sra. Magnatech, garota-propaganda da empresa para a qual seu marido trabalha. Uma garota-propaganda é um exemplo, é um objeto de desejo: ser a sra. Magnatech é alcançar o posto mais almejado de uma sociedade, o triunfo final que comprova a felicidade do lar e o sucesso na construção de um casamento perfeito. Mas ser garota-propaganda diz também – e talvez acima de tudo – respeito à imagem: não basta simplesmente ser um exemplo, é preciso acima de tudo parecê-lo. Nisso, Cathy parece ser mais bem sucedida ainda: sabe a resposta precisa para cada comentário possivelmente constrangedor, conduz com habilidade toda situação delicada em que ela (ou o marido) se encontra. Ao espetáculo que todas as pessoas da sociedade esperam e exigem dela, Cathy responde com um filme perfeito, uma performance magistral ornamentada de flores e sentimentos corretos.

E Longe do Paraíso é menos um filme sobre Cathy do que um filme de Cathy: da direção de arte construída a partir das flores como leitmotif à fotografia apoiada nas cores quentes e numa palheta fifties (fabuloso trabalho de Ed Lachman), a mise-en-scène do filme constrói-se em paralelo de sentimentos com a personalidade e com o papel social de sua heroína. Paralelos, mas que não se confundem. Longe do Paraíso faz questão de trabalhar sempre um tom acima, seja na interpretação dos atores – declamada e posada demais para os códigos do cinema feito hoje –, seja na cenografia milimetricamente exagerada e conotativa. Mas também, e talvez principalmente, pelos efeitos de dissonância criados entre a imagem (tanto a do filme, deslumbrante, quanto a imagem pública – roupas, maquiagem, cabelo, reputação – da personagem de Cathy) e a situação sentimental das pessoas que vemos na tela, de uma miséria existencial incapaz de ser purgada por nós, espectadores, em nada do que vemos na tela. Naturalmente, cria-se um curioso efeito de distanciamento, não muito distante do brechtiano – de fato, os dois Dennis, Quaid e Haysberg, jamais utilizam táticas de interiorização, preferindo portar-se mais como casos do que como personagens –, mas que é incorporado por todos os elementos expressivos do filme, e não só pela atuação: da utilização da música de Elmer Bernstein à tentativa de remake de um melodrama sirkiano, tudo parece em momentos diversos nos jogar fora e dentro da trama, nos emocionar e depois (ou antes) perspectivar aquilo que estamos vendo.

Naturalmente, estamos diante de um filme-conceito. A tentativa de Todd Haynes com Longe do Paraíso não é uma estratégia reacionária de trazer novamente às telas o valor estético de um cinema como se fazia antigamente. A tática aqui é a do dispositivo: apropriar-se de um repertório temático e estilístico hoje considerado ultrapassado ou demodé – os melodramas de Douglas Sirk, especialmente Tudo Que o Céu Permite e Imitação da Vida – para trazer questionamentos sobre a sociedade americana de hoje (o racismo, o homossexualismo, o amor interracial) e sobre qualquer grupamento em todos os tempos (as pressões de grupo, a impossibilidade de um lugar – mais existencial que geográfico – para dar vazão aos sentimentos mais verdadeiros). Pois Todd Haynes – seus filmes pregressos e seus próximos projetos (entre os quais um filme sobre Bob Dylan onde o compositor será interpretado por sete (!) atores de origens étnicas as mais variadas) o confirmam – é menos um esteta do que um provocador, e seu interesse é menos restituir uma certa experiência de cinema do que problematizar um determinado estado de coisas social que envolve questões políticas (o papel da mulher, do negro, do homossexual na sociedade) mas também – e, talvez, principalmente – questões estéticas: retomar a linguagem do melodrama é repensar a imagem que a América fez de si mesma durante o boom da sociedade de consumo e da cultura dos gadgets, e como vendeu essa imagem para o resto do globo. Afirmar que esse mundo vendido há 50 anos é um mundo "longe do paraíso" – por reprimir os únicos sentimentos que são significativos, por vender uma imagem falsa de perfeição, por fazer um povo inteiro intronizar imperativos morais fortes demais para serem sustentados – parece ser a verdadeira preocupação do filme de Todd Haynes.

Questão de imagem: já em 1987, Haynes realizava o média-metragem Superstar: The Karen Carpenter Story, "interpretado" unicamente por bonecas Barbie. O que estava em jogo não era fazer uma biopic sobre a cantora e baterista dos Carpenters, mas mostrar o quanto a anorexia é um mal que surge mais por pressões sociais para tentar se adequar a uma certa imagem do que por uma paranóia estúpida de pessoas de cabeça fraca. Hoje, 15 anos depois, as Barbies, imagem-padrão da mulher, dão lugar a uma linda cidadezinha com lindos jardins e pessoas lindas – a imagem-padrão do bem-estar à americana, ainda hoje –, mas a temática que interessa a Todd Haynes não parece ter mudado um só momento: em todos os seus filmes, a questão é sempre saber que aquela imagem-padrão de beleza que nos é dada serve apenas para construir a ficção de uma perfeição inexistente e aprisionante. Seus protagonistas são vítimas: Karen morre por intronizar na anorexia todas as obrigações femininas da época, a heroína de A Salvo adoece (fisicamente e depois mentalmente) não por praticar excessos mas por viver na normalidade, e por fim Cathy não consegue encontrar sua felicidade porque o amor que vive é incapaz de realizar-se naquele lugar, naquele tempo. God bless America, land of the free.

Um melodrama sirkiano nos dias de hoje. Haveria muito a se preocupar, caso o diretor fosse outro. Todas as recentes tentativas de apropriar-se de repertórios já desgastados para tentar reatualizá-los ia do estéril (os recentes filmes dos irmãos Coen) ao infame (Enfermeira Betty). Naturalmente isso acontecia porque os diretores julgavam que, por manusear perfeitamente todos os códigos não por convicção estética mas por estarem apenas se apropriando deles com fins de referência, nascia um sentimento de superioridade da mise-en-scène em relação aos códigos-fonte que minava toda a possibilidade de interesse nas propostas dos realizadores. Em Longe do Paraíso há também algum sentimento lacunar em relação ao melodrama dos anos 50. Mas dessa vez esse sentimento não decorre de nenhum cinismo em relação ao conjunto de filmes emulados, e sim de diferença na proposta e no tempo: enquanto os melodramas exigiam a imersão total do espectador na tela para que funcionasse o efeito estético, Todd Haynes precisa fazer com que esse elo seja rompido nos momentos certos – a cena em que as colegas da filha de Cathy se afastam dela, com uma encenação e disposição de lugares inteiramente conotativa, jamais poderia estar num filme de Sirk. Na superfície podem acreditar que Haynes seja simplesmente um contador de histórias, mas hoje ele muito mais para "o cineasta mais militante da América".

Longe do Paraíso é tudo isso, mas é também uma surpreendente história de amor, em que dois sentimentos têm atuações tão decisivas quanto Julianne Moore e Dennis Haysberg: a fúria dos desejos e a decorrente tentativa de contenção. Da primeira vez que Cathy encontra com Raymond, é um mal-entendido (ela vê um estranho, negro, em seu jardim; vai lá e descobre que é apenas o novo jardineiro). Da segunda vez, é por uma coincidência: seu lenço voa e cai nos fundos da casa. Raymond, solícito, carinhoso e solitário (sua esposa falacera anos atrás), dá a Cathy toda a atenção que ela necessita naquele momento. Vivenciando um momento em que a ficção da mulher-exemplo acaba de ser rompida (ela presencia um marido nos braços de outro homem, em seu escritório), ela precisa aprender com Raymond o que é ser outro num mundo que só parece suportar uma determinada forma de vida (branca, heterossexual, feliz e consumindo). Surge então um amor que não pode ser dito, expresso e muito menos consumado: eles não podem ser vistos juntos num bar para brancos ou num restaurante para negros, na frente da casa de Raymond ou na rua, diante de pessoas dispostas a proteger a dama a partir do momento que ele toque-a no braço.

Cathy é "nice to negroes", diz a matéria da jornalista gorda e bonachona que vai entrevistá-la para o jornal local. No início do filme, isso é considerado digno de louvor. E desde que os negros mantenham seu lugar – ou seja, que não almejem estar em igualdade com os brancos –, tudo parece ótimo. Não há ameaça racial na cidade porque, como diz um dos personagens do filme, "nem temos negros aqui" (a frase é dita diante de um criado negro). Mas basta um rumor para que o "nice to negroes" lhe seja jogado na cara por um marido furioso. Cathy, no entanto, passará de benfeitora (no que tudo isso tem de paternalizante) de negros a admiradora, e por fim há de ultrapassar a barreira que a sociedade lhe impõe, e se apaixonará por Raymond. No dia em que seu novo amado partirá da cidade definitivamente – porque os brancos não fazem mais negócios com ele e os negros lhe apedrejam as janelas –, é o lenço lilás que a faz lembrar de vê-lo partir. O instante do adeus é breve, as palavras de esperança são logo conjuradas pela impossibilidade da união, o final é triste, mas ao menos por um instante na vida Cathy Whitaker conseguiu voar em liberdade, como seu lenço, direto para os braços do homem que ama. Nesse instante, ao menos, Cathy conseguiu enxergar aquilo que ela só tinha vislumbrado – as únicas palavras de amor que ela havia proferido foram "Você é tão bonito", depois de tê-lo demitido –: a beleza não está numa tábua de adequações e no jogo de quem-é-quem social, mas nas intensidades das relações que se criam. Tanto a dor pessoal da protagonista quanto a miséria existencial da sociedade que lhe rodeia terminam emolduradas por belas flores brancas.

Ruy Gardnier