Paralelas e Transversais
Amarelo manga, de Cláudio Assis
Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes

Amarelo Manga, Brasil, 2002 e Lisbela e o Prisioneiro, Brasil, 2003

Há uma impressionante seqüência de coincidências que ligam as histórias destes dois filmes de forma muitas vezes surpreendente, e que realmente parecem exigir este olhar simultâneo para ambos. Talvez o mais óbvio seja que ambos se passam em Pernambuco (um no Recife, o outro em cidades do interior), e são de fato dirigidos por pernambucanos, ainda que um deles esteja retirado do estado há algum tempo enquanto o outro ainda é um “local”. Por este motivo, inclusive, Amarelo Manga é considerado um filme “pernambucano”, enquanto Lisbela não. O que nos leva ao ponto seguinte de interesse: um dos filmes é resultado de um concurso de BO (baixo orçamento), enquanto o outro é uma grande produção desde sempre ligada a Globo Filmes. Neste sentido, poderiam representar um painel da diversidade de propostas de produção do Brasil hoje, mas talvez Cláudio Assis (a ver na entrevista dele na Contracampo 52) possa discordar disso (assim como nós), e argumentar que seu filme foi feito na raça e como foi possível, enquanto o outro recebeu apoios (inclusive locais, em Pernambuco) que um filme como o dele não conseguiu. Então, mais que retrato de diversidade, talvez os filmes retratem uma desigualdade de condições oferecidas.

O que nos leva ao ponto seguinte de interesse na trajetória em paralelo: embora Amarelo Manga tenha estreado de fato há quase um ano, no Festival do Rio, seu lançamento comercial foi separado do de Lisbela por apenas uma semana. Com isso, os dois filmes tiveram seu contato com o público ao mesmo tempo e, cada um a sua maneira, conseguiram sucesso em capitalizar suas estruturas de lançamento das melhores maneiras (enquanto escrevemos aqui a distância entre o 1,9 milhão de espectadores do filme de Arraes para os quase 70 mil do de Assis é equivalente à diferença entre suas condições de produção e lançamento, mas ambos estão com bons resultados entro de suas realidades diversas). No lançamento foram trabalhados certos conceitos onde o filme de Assis seria visto como uma radical intervenção do cinema na realidade do povo brasileiro, enquanto o de Arraes seria uma escapista fantasia comercial-televisiva. E aí, finalmente, chegamos ao ponto de nosso interesse neste texto: se estas imagens serviram muito aos filmes em termos comerciais, e parte da imprensa (inclusive crítica) as comprou sem discussão, nosso objetivo é matizar um pouco melhor os dois lados e ver que, nem tanto isso, nem tanto aquilo, muito pelo contrário. Antes que se imprima a lenda como fato.

A perversão é uma das mais inteligentes formas de pudor

 “O pudor é uma das formas mais inteligentes de perversão”. Quem diz isso em Amarelo Manga é o próprio diretor, Cláudio Assis, numa rápida cena onde aparece como pseudo-figurante. Ora, uma vez que saibamos que ele aparece em cena só para dizer esta frase no ouvido de uma personagem, temos que acreditar na importância que ela tenha para o filme (tanto que ele a repetiu em algumas entrevistas no lançamento). A idéia por trás da frase, diga-se, é muito interessante. Mas, assistindo a seu filme e, acima de tudo, a algumas reações a ele (de crítica ou público) nos resta crer no exato contrário desta afirmação. Amarelo Manga se orgulha de seu “fedor”, por assim dizer, de um olhar para o Brasil que passa, obrigatoriamente, pela negação do cinema “bonitinho”. Aí, temos uma posição até mesmo necessária dentro do cinema nacional recente. Só que há que se ver que aproximação é esta que o filme busca para quebrar esta relação do espectador com o seu país. Ao optar por um certo enfoque, Assis toma caminhos no mínimo contraditórios que acabam tornando o filme em si bastante aquém dos impactos desejados como projeto de cinema (embora o filme como “fato social” tenha funcionado na chave acima, numa inteligentíssima utilização do que há de mais canhestro e raso na própria imprensa cultural).

Para começar precisamos olhar para sua estrutura narrativa. Pode-se ver Amarelo Manga como uma narrativa circular que começa e termina com duas idéias. Primeiro, pelas falas repetidas pela personagem de Leona Cavalli, a de que se trata de “apenas mais um dia” entre tantos outros na vida daqueles personagens e daquele ambiente. E, segundo, sua ficção sendo cercada por duas idas documentais às ruas do Recife (o que também acontece uma ou duas vezes durante o filme), a de que se refere diretamente a um olhar sobre um meio social com fortes bases na realidade. No meio disso, uma série de personagens ficcionais, interligados por dois ambientes principais (um hotel-pardieiro e um bar), vivendo situações onde aflora constantemente uma certa patologia dos desejos. A primeira idéia é, na verdade, negada pelo roteiro do filme: afinal, sendo “apenas mais um dia” o filme tem uma série de acontecimentos finalizantes (mortes, trocas completas de personalidade, confrontamentos físicos com lacerações, separações). Como não é de se supor que estas coisas acontecem todos os dias com aqueles personagens, vemos que o filme não se interessa pelo enfoque da “rotina”, ao menos não pela via da rotina dos personagens em si. Há que se ligar, portanto, a primeira idéia com a segunda, e pensar que se está afirmando ali que é apenas mais um dia na vida daquela cidade, e aí a ligação documental com o que vemos tornaria-se essencial ao filme. Neste ponto, a primeira conclusão a que se pode chegar da união dos dois pólos é a de que o documental está sendo usado, então, como validação da ficção, ou seja: estas histórias são histórias como muitas outras que acontecem com nosso povo, com a gente comum do Brasil, e que o cinema está negando-se a contar.

Aí é que as idéias começam a ficar confusas, porque a chave na qual são encenadas estas histórias é muito mais ligada a uma construção de uma dramaturgia nacional do que a um “realismo”: o filme tem muito do uso das perversões dos homens comuns da dramaturgia (ou de uma certa dramaturgia, seria melhor) de Nelson Rodrigues, o que faz todo sentido, visto que o roteirista (Hilton Lacerda) é um admirador confesso da obra deste. Em especial, seja pelo trabalho cromático, seja pela própria filmagem de Assis e Walter Carvalho, seja pelo uso constante dos palavrões e xingamentos, das obras filmadas a partir de Nelson Rodrigues pelo cinema brasileiro nos anos 70. Até aí tudo bem, afinal trata-se de manancial riquíssimo. Só que Nelson Rodrigues construiu quase todo seu universo (onde poderia facilmente estar qualquer um dos personagens ficcionais de Amarelo Manga) dentro de um ambiente social bem distinto, o das classes médias cariocas, especialmente as suburbanas. Aonde este imaginário ficcional que pode se relacionar com um ambiente e tempo tão diferentes se encaixaria, então, como expressão direta destas imagens das ruas, que mostram os menos favorecidos, os esquecidos? Não é jamais de nosso interesse aqui, diga-se, dizer que o “povo” (seja lá o que seja isto) só possa ser encenado numa chave, a realista-naturalista, muito pelo contrário. Mas o que se quer é entender qual a relação entre esta dramaturgia que, como vimos acima, como estrutura dramática em si não tem nada que a torne um específico de uma certa classe social (poderíamos ver as mesmas perversões encenadas entre mega-empresários paulistanos com orgias, mulheres pudicas se tornando libidinosas, etc) com a dita obsessão do filme em voltar ao “povo nas ruas”. Em que, afinal, estas imagens documentais, que de tão importantes abrem e fecham o filme, servem à ficção de Amarelo Manga, ou vice-versa?

Em última instância, nos parece, em nada. Porque não há nada, estruturalmente, em Amarelo Manga que ligue aqueles personagens de forma indissociável àquele ambiente onde vivem, e em especial, ao seu contexto social. Há, de fato, uma completa separação entre os personagens efetivamente “ficcionais” (e aqui não importa quem entre os figurantes era do local ou quem encenou ser do local, já que por “ficcional” nos referimos aos que têm importância na ficção engendrada)  e os não-ficcionais, e daí vem o grande incômodo do filme. Da encenação francamente “teatral” de muitas cenas (desde as falas dos personagens para a câmera até diálogos como o de Dunga e Aurora depois da morte de Bianor) ao uso mesmo de caras conhecidas e bastante externas àquele ambiente, o resultado é que nunca ligamos aqueles personagens a um contexto social-geográfico e sim, como dissemos, muito mais a uma tradição dramatúrgico-ficcional que em nada nos remete ao ambiente (ao contrário, por exemplo, de um Plínio Marcos).

O maior exemplo desta fissão entre ficção e documental no filme é o da família que aparece sentada na sala do Texas Hotel, vendo televisão. Nunca é dado àquelas figuras, que até mesmo pela autenticidade de sua presença física (em oposição, por exemplo, aos atores interpretando figuras claramente teatrais) surgem como expressões efetivamente “populares”, o direito à fabulação, a serem fabuladas, ou mesmo a serem mais do que estátuas de um dito “povo”. O que representam exatamente estas figuras? A alienação de uma camada pobre a ver TV (ou depois na Igreja)? Pois, se é simples assim, Amarelo Manga estigmatiza tanto o seu “povo” quanto qualquer filme do Cinema Novo (na sua característica mais negativa) ou quanto qualquer filme que mostre o povo como “depósito ético” da nação. O movimento que realmente importa, que é o de se aproximar deste povo e quebrar esta estátua, sentir de fato seu cheiro, torná-lo algo mais que esfinges silenciosas que a câmera vê com distantes olhos documentais, o filme nunca faz. Não é dado a este “povo” o direito a uma existência individual fora dos limites da dramaturgia teatral e distante. Mantém-se o mesmo distante respeito (e mesmo medo) deste grupo como agente ficcional que é a marca maior do cinema brasileiro, junto com a estigmatização. E, se o filme não faz isso, fica a dúvida: o que ele faz de tão diferente assim, de tão chocante assim?

Bom, podemos procurar hipóteses. Primeiro, ele fala muito palavrão. Como falar palavrão é sinal de rebeldia só para as vovós mais carolas, precisamos desconsiderar esta hipótese sob risco de acharmos que o filme é um pré-adolescente que aprende o prazer de falar “porra” na sala de jantar em pleno Natal pra ver a vovó ralhar com ele. O filme é bem mais do que isso. Então, pensemos em outra hipótese: ele mostra “imagens desagradáveis”, como tiros num cadáver, uma buceta em primeiro plano, a penetração de um ânus por uma escova. Hmmm... Se pensamos no cinema de um Todd Solondz ou de um Larry Clark, por exemplo, vemos que a exibição de tais perversões na tela está longe de ser algo de tão inovador assim, ao contrário, pode ser extremamente conservador. Como Assis problematiza menos seus personagens do que os acima, damos a ele o benefício nesta parte: seu filme não chega a ser conservador como estes. Mas, também não ganha nenhum ponto por esta exibição de fatos que, voltando a ele, o cinema brasileiro dos anos 70 já tematizou com galhardia. Aí, finalmente, reparamos: o grande momento de choque mesmo em Amarelo Manga é a agonia e morte de um boi em primeiríssimo plano. Ora, no momento em que um assunto de interesse maior como “problema” para ecologistas e vegetarianos se torna a grande imagem que choca (e ainda assim não confiando na imagem em si, apela-se para uma guitarra distorcida por cima dela), vemos que o filme em si faz muito pouco no que realmente importa: confrontar um estado de coisas que é muito maior do que só o cinema visto pelas vovós do Espaço Unibanco, um estado de coisas que é, afinal, essencialmente sócio-econômico. E, nesta seara, Amarelo Manga é silencioso. Por trás de sua “perversão”, acaba sendo um filme extremamente pudico nos confrontos que realmente importa. É um exemplar de cinema em muito estranho ao cinema nacional de hoje, o que é bom, mas nas suas ambições vai pouco longe.

Que não se pense, porém, que esta análise quer dizer que seja um filme sem vários méritos ou interesse. Amarelo Manga possui força sim na sua encenação, força que vêm dos seus diálogos bem escritos, dos seus atores, muitas vezes da encenação. Só que este texto não é, afinal, a reação somente ao filme por si, e sim uma tentativa de problematizar ao mesmo tempo a imagem já criada pela mídia, ou pelo discurso de seu próprio diretor (embora não seja, diga-se, uma crítica deste discurso ou desta mídia, assunto que por si não nos é de interesse específico, mas sim crítica do filme –indo, afinal, a ele em busca dos sintomas- só que a partir destas). O filme possui, acima de tudo, a imensa qualidade de exercitar uma autêntica voz de fora dos eixos do Sudeste no cinema nacional e a qualidade de conseguir fazer um cinema barato e ao mesmo tempo de diálogo popular. Só que se assumido como um “filme popular” como havia nos anos 70, quando poderia ser de enorme e amplo diálogo. O grande problema é que, lançado como filme independente nos anos 2000, fadado portanto a diálogo direto apenas com as elites dos Espaços Unibancos que vão ao cinema, o filme se preocupa mais em ser “contra” alguma coisa do que em simplesmente afirmar o que é. E nisso, mais uma vez, acaba usando o “povo” como massa de manobra para um choque que tem muito pouco de revolucionário (no sentido autêntico do termo), e tanto mais de chocante (no sentido aburguesado do termo).

 O imaginário como real

 Lisbela e o Prisioneiro certamente não tem nada de revolucionário. Muito pelo contrário, uma vez que um dos temas principais do filme é justamente a sua utilização da linguagem mais do que estabelecida e digerida do cinema americano (numa tradição que não começa nele nem pára nele, mas onde ele surge como símbolo indelével) como fonte dramatúrgica essencial. Porém, o que Lisbela tem de sobra é clareza de propósitos: ao usar esta fonte, faz movimento duplo de brincar com ela, sabendo ao mesmo tempo (e reproduzindo) da eficácia do seu modelo no contato com o público. É um exemplo absolutamente contemporâneo do conceito de “cinema popular”, onde a noção de “povo” não serve mais apenas como retrato de uma certa classe social e sim de um imaginário audiovisual cuja formação é muito semelhante independente das classes, uma vez que a TV está em quase todos os ambientes sociais e o cinema americano em todas as TVs. Assim, ao tornar a projeção dos desejos de sua personagem principal um imaginário construído nas casas de todos os brasileiros, Lisbela tenta se relacionar diretamente com o que seja o “brasileiro” por algo que é, de fato, tão real quanto as “ruas”, mas geralmente ignorado como tal pelas teorias sociais mais ortodoxas: a fabulação.

Fabular se torna, aqui, o centro da narrativa. Construir uma narrativa de sua própria vida a partir dos modelos absorvidos é o movimento central de Lisbela, que analisa sua vida pela chave dos filmes que assiste e a constrói como espetáculo. Porém, quem constrói sua vida, de fato, não é Lisbela, e sim Guel Arraes e os roteiristas. E, ao deixar às claras constantemente esta chave de construção ficcional onde Lisbela funciona ela mesma como reveladora dos bastidores de realização do filme que protagoniza (usando para isso os filmes a que assiste), Arraes constrói uma complexa teia de identificação e distanciamento do espectador com o que assiste, mostrando as fragilidades desta construção e ao mesmo tempo a força de sua fabulação. Neste sentido, pode-se dizer que Lisbela é muito mais “real” (se deixamos de lado a ortodoxia onde a realidade de uma vida se resumiria ao aspecto físico dela) no que revela do povo brasileiro, pela via da exposição do seu imaginário, do que Amarelo Manga consegue no seu contato “documental”. E podemos sim falar das especificidades de um imaginário “brasileiro”, em oposição a um imaginário coletivo universal construído pelo cinema americano, que o filme poderia evocar. Porque além das imagens clássicas da dramaturgia evocada (o vilão, o mocinho, a mocinha, os alívios cômicos, etc), há em Lisbela, utilizados como clichês assim como as categorias citadas, o malandro picareta de bom coração, o matador de aluguel religioso, o “jeitinho carioca” como projeção do desejo do nordestino, a sexualidade, em suma, uma mistura de elementos tipicamente nacionais dentro da estrutura dramatúrgica importada.

Em muitos textos o cinema de Arraes foi criticado por se colocar de forma “acrítica” em relação a este imaginário, reproduzindo em muito uma linguagem televisiva típica sem qualquer contextualização desta. A meu ver, no entanto, este é o movimento final de distanciamento que Arraes realiza, e que é tão sutil quanto rico: no Brasil a dramaturgia do cinema clássico já está completamente misturada à construção ficcional da dramaturgia televisiva. Assim, absorver os elementos desta à sua construção é tão parte do que seja tornar nacional esta história quanto as características listadas acima que tornam o imaginário eminentemente nacional (sem ignorar nem de longe que esta dramaturgia televisiva é a fonte de formação do profissional do audiovisual Arraes, pelo menos no que tange a ficção). Além do quê, há por trás destes comentários um preconceito absolutamente tolo do que seja a tal “linguagem televisiva” ou a “linguagem cinematográfica”, segundo a qual duração de planos determina uma ou outra. Isso é tão simplório e tosco que nem vale discutir. Cinema e televisão se distanciam em inúmeros outros pontos mais importantes como construção de linguagem, enquanto se unem em vários outros como produtos audiovisuais. Lisbela, não resta dúvida, é cinematográfico até a medula, sem precisar por isso negar a televisão no assunto em que toca.

É interessante observar, ainda a título de leitura cruzada dos filmes, como em Lisbela se reproduz o mesmo efeito de Amarelo Manga: em todas as cenas que usam figurantes, os personagens da trama ficcional urdida parecem completamente deslocados do “espaço real” que os cerca (e aqui se fala muito menos de uma caracterização física do que de uma inserção mesmo no seu entorno). Só que em Lisbela isso pode ser entendido com perfeição dentro do que o filme tematiza. Afinal, Lisbela, Leléu e afins são tão projeções (assumidas como tal do início ao fim) para a platéia quanto os personagens dos filmes-dentro-do-filme o são para Lisbela. Que sejam então figuras compreendidas dentro da mesma chave do “regionalismo global” (da Rede Globo - este sim problemático porque nunca assumido como construção) faz completo sentido. Não importa tanto se Arraes assim o fez para fazer sucesso ou por esta construção de sentido, uma vez que o que importa é o resultado prático na assistência ao filme: seus personagens escapam ao seu entorno, mas sua fabulação nunca aspira ser mais do que isso, enquanto os personagens de Assis brigam o tempo todo com a tentativa de inseri-los numa dita “realidade”.

Finalmente, no caminho contrário ao feito acima, cabe dizer que, com todo seu interesse, Lisbela está longe de ser filme sem falhas. Na verdade, a falha maior talvez seja comum aos dois filmes: fascinado com sua própria construção, Lisbela em partes deixa de ser efetivo como fábula para ser apenas “ixperto” (a pronúncia carioca se faz necessária). Com isso, a volta ao filme americano se repete pelo menos 3 ou 4 vezes a mais do que o necessário para a compreensão e andamento da trama, os personagens falam piadas rápidas e inteligentes pelo menos duas vezes mais do que o desejável para simplesmente funcionarem e serem graciosos de fato e a história se deixa envolver em si mesma ao ponto de ter uma bela barriga no seu terceiro quarto onde dá voltas demais em torno do próprio rabo. Este, aliás, é dos poucos defeitos que Jorge Furtado tem demonstrado: a tendência a roteirizar demais. Fascinado como sempre foi com os jogos metalingüísticos, e trabalhando com parceiro igualmente partidário deste fascínio, acabam trabalhando mais a seu favor como criadores do que o do filme como fruição. Isso impede em momentos que Lisbela atinja todos os resultados que muitas vezes promete, e diminui um pouco o impacto dos que de fato atinge – mas que ainda são mais do que suficientes para fazer dele um filme dos mais interessantes e complexos no cinema nacional hoje.

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 Um esclarecimento final faz-se necessário: estética e política não deve nunca ser separados, isso é essencial na história da visão de Contracampo sobre o cinema. Não existe “opção acidental” e isso é bem claro. No entanto, por outro lado, estética e política não podem ser misturados ao ponto da perda de referências entre um e outro. Não nos escapa nem por um instante o que Amarelo Manga representa de importante enquanto possibilidade de produção, enquanto impulso inicial, acima de tudo enquanto abertura de caminhos democráticos e urgentes de acesso aos meios do cinema, assim como não nos escapa nem por um segundo o quanto Lisbela está no lado oposto deste espectro. Defender o BOs, o cinema de estreantes, a produção fora dos eixos, a independência verdadeira, sempre foi preocupação nossa como intervenção política, e sempre será; assim como atacar as outras formas de domínio de mercado, de distribuição diferenciada, de monopolização cultural, etc. Nada disso escapa a ninguém aqui, e levantamos as bandeiras desde sempre. Mas, os filmes são os filmes são os filmes. Tentar enxergar sua construção dramática, seu resultado estético e ideológico pelos filtros da política de produção simplesmente é aceitar uma imposição que o cinema, como obra de arte e não só como produto, não pode ter. Misturemos as coisas sim, quando assim se precisa. Não misturemos as coisas quando não se colocam aí para isso. O jogo dos estigmas não pode colar nunca, nem como análise de personagens, nem de diretores ou filmes. Sob risco de continuarmos brigando com os moinhos de vento errados por toda a eternidade.

Eduardo Valente