Ghost Dog ,
de Jim Jarmusch



Ghost Dog — The Way Of The Samurai, EUA, 1999


O amigo e a discípula vêem o duelo de Ghost Dog

Ghost Dog é um filme ligado ao passado. Isso não quer dizer de forma alguma que seja um filme nostálgico, ultrapassado nem saudosista. Isso significa apenas que Ghost Dog é um filme que preza, acima de tudo, a tradição. A tradição se manifesta de várias formas no filme, como veremos, mas certamente, o código de conduta é o mais óbvio e forte. Não somente porque o "Caminho do Samurai" é descrito em palavras na tela como um manual ilustrativo do filme, mas porque os seus personagens todos têm o seu código pessoal, intransferível e, acima de tudo, indispensável às suas vidas. Num tempo em que aparentemente não há mais possibilidade de se ter códigos, ética pessoal ou um credo realmente pessoal e importante, Ghost Dog é um filme ligado ao passado. Não por acaso, quase no final, o personagem principal diz que "são animais quase extintos". Esta frase é de importância ímpar para a compreensão do filme, pois o tema básico está aí: a queda (sem decadência) de modelos de comportamento ligado a condutas pessoais que dificilmente sobrevivem hoje. E ainda assim, a passagem da tocha adiante... Mas isso nós veremos mais tarde.

Jarmusch é um diretor que pensa nos projetos de seu filmes de uma forma completa. Assim, todos os aspectos técnicos, diálogos, situações, ações e citações (importantíssimas no cinema dele) se voltam para um tema principal. Há uma unidade de pensamento que atravessa o filme. Por isso, pode-se dizer, trata-se de um diretor rigoroso, em um filme rigoroso. Neste sentido, na Hollywood de hoje, especialmente no ramo dos chamados "filmes de ação", onde se poderia (a meu ver se não erroneamente, no mínimo, redutoramente) classificar Ghost Dog, Jarmusch é um animal em extinção. E não se pense que esta não é propositadamente uma das significações possíveis do filme. Uma metáfora que vale para o cinema, e não por acaso as citações e os gostos pessoais de Jarmusch remetem a uma tradição de filiação muito semelhante ao código samurai do seu personagem principal. Seu mestre maior para este filme talvez até esteja no Japão também, Seijun Suzuki. Como se pode perceber as camadas de possível correlação que se pode criar a partir de Ghost Dog são inúmeras, daí sua importância.

O filme todo se estrutura em torno de um duelo: Ghost Dog, o matador profissional solitário que segue fielmente uma tradição de pensamento baseada no código dos samurais, perseguido pela máfia de origem italiana que o contratou para um serviço (entre eles está o homem que salvou a vida de Ghost Dog, e que por isso ele considera seu mestre). O conflito do filme todo se polariza entre estes dois lados. Lados que se enfrentam, mas que se respeitam. Lados que tem códigos próprios de conduta, que retirados da sua vivência podem parecer completamente sem sentido, mas que sem o qual ambos não podem viver. A forma como Jarmusch caracteriza a existência desse código e as razões de sua queda no mundo moderno variam de lado a lado.

A ligação do Ghost Dog com seu código é mais explícita, até por ele "dominar" a ação com a leitura de trechos de seu manual que parecem exemplificar as situações do filme. Além disso, Jarmusch nos garante muitas cenas mostrando todo o ritual deste "samurai" moderno, com a montagem das armas, com seu processo de trabalho no arrombamento de carros, com seu treino com a katana e com os pombos. É claro que o samurai de Jarmusch anda de carros modernos, escuta CDs, usa armas de fogo, afinal a força da palavra do código samurai não está nos objetos mas sim na conduta. No entanto, ele não se comunica por meios modernos, apenas com pombos. Anacronismo?? Não, apenas uma forma inteligente de ser mais etéreo e de difícil acesso, além de mostrar seu contato primal com as forças naturais (o que será reforçado com a presença de um cachorro, pássaros e um urso ao longo do filme).

Mas na verdade talvez os mais fascinantes personagens sejam os gângsters. São mafiosos decadentes como os que já nos acostumamos a ver nos filmes como Donnie Brasco, Máfia no Divã, e até mesmo no Bons Companheiros e Cassino (de tema muito semelhante quanto à extinção da raça) de Scorsese. Até aí haveria pouca novidade. A grande sacada de Jarmusch é carregar nas tintas da decadência para o público, mas ao mesmo tempo dar um componente de "ilusão" e quase sonho da parte dos mafiosos mesmo, que não percebem nunca o patético de sua situação. Isso não para torná-los cômicos como a maioria da platéia parece considerar, mas para torná-los dignificados e unos, pois eles só podem se reconhecer como pessoas enquanto seguirem aquele código que sempre reconheceram como válido, mesmo que hoje ele seja tão medieval quanto, digamos, um samurai japonês.

Assim, toda comédia destes personagens, proposital, está em nós, e nunca neles. Eles não riem. Os outros personagens não riem. Há uma grande dignidade na sua conduta. Eles aceitam tudo (seja a morte de um parente, seja a necessidade de se sacrificar) como parte de sua ética. O grande chefe, magistralmente vivido por Henry Silva, reconhece a "poesia da guerra" que existe em Ghost Dog, a respeita e admira. Quando ele o vai matar, sua única reação é abotoar o paletó, para morrer de forma digna. Não há choro, nem manha, faz parte do ciclo. E mais, Ghost Dog os dá dignidade na morte, como o personagem de Vinny indica em outra frase genial, quando ele diz: "ele está nos matando como verdadeiros gângsters", ou seja, aquela perseguição e eliminação de um a um deles é a única forma de trazê-los na morte o respeito que eles não recebiam em vida, quando lhes era cobrado o aluguel de forma humilhante, quando eram achacados por orientais, numa breve e inexplicada cena que parece indicar que os mafiosos são oprimidos por gangues mais fortes e "contemporâneas". A relação que permeia todo o filme, entre Ghost Dog e os mafiosos, é uma de respeito e admiração, reconhecimento do valor do adversário. Além desta dignidade há o reconhecimento de serem espécies em extinção. No primeiro encontro de Ghost Dog e seu "mestre", o mafioso Louie, o primeiro diz: "tudo parece estar mudando à nossa volta Louie, nada mais faz sentido". Outra frase que significa muito mais do que aparenta e dá o tom do filme.

Tendo na sua estrutura, personagens, roteiro e diálogos tamanha crença na importância da tradição e dos "modelos", da conduta de acordo a uma ética própria, é claro que Ghost Dog não poderia na sua forma fugir disso tudo. Jarmusch é um cineasta pós-moderno no sentido de que assistiu muito cinema, se embebeu de tudo que viu e leu e ouviu de melhor no mundo para formar seu imaginário. Assim, quando vai realizar seu filme, ou neste caso, seu tratado sobre a tradição, não poderia fugir de fazer reverência e citação a muitos mestres e presenças importantes. É o seu código samurai. De forma nenhuma cai na bobeira das citações gratuitas e auto-centradas. São citações vitais ao filme, e acima de tudo, ao tema do filme que está justamente na importância da tradição. Assim, desde cenas tiradas diretamente de Suzuki e seus quase surrealistas filmes de gângster, passando por Rashomon, o Frankenstein de Mary Shelley, o western explicitado de Matar ou Morrer, o Pulp Fiction do colega Tarantino, os cartoons, absolutamente primais e espelhos de comportamento dos personagens, numa ligação que Suzuki adoraria ter feito, todos os tipos de citações surgem, sempre diretamente ligados a trama, e acima de tudo necessários para que a equação forma e conteúdo façam sentido.

Da mesma forma se porta perante a trilha sonora, outra área de muito interesse para Jarmusch. Seu Ghost Dog tem no Japão antigo a sua inspiração, mas é claro que é um homem norte americano negro, e que por isso não pode fugir de outras tradições que os samurais jamais poderiam imaginar. No caso, a música negra que ele ouve em cada carro que furta para realizar seus trabalhos. Todas as principais vertentes formadoras do som negro americano são ouvidas ali, o jazz, o reggae, o hip-hop, o soul. Talvez falte apenas o blues dar sua cara. Em cada cena, em cada ação, em cada som Jarmusch cria então significados. Um exemplo banal é quando Ghost Dog pára para trocar as placas do carro roubado. Algo que podia ser apenas descritivo. No entanto, reparando bem, vemos que ele tira a placa do "Industrial State" (nos EUA, cada estado tem um "lema", um "slogan" nas placas de carro), o Estado Industrial ao qual ele não se filia de jeito nenhum, e a substitui pela do "Highway State", o Estado das Estradas, dos Caminhos, do qual ele certamente faz parte. São detalhes no todo desimportantes como este, mas que dão noção do rigor e do cuidado do diretor que dão força ao filme.

Até aí, muito se disse que poderia provar a excelência do trabalho de Jarmusch. No entanto, se bem notado, tudo que se descreveu até agora poderia indicar um diretor educado, cuidadoso e talentoso, mas um filme apenas saudosista e que, ao negar o presente e o futuro em troca de uma nostalgia do passado, mostre-se negativo e não construtivo. Não é o caso, e nem poderia ser para quem conhece o diretor. Dentro de todo esse rigor há o espaço necessário a afirmação do futuro e do presente sim. Só que o que se deseja é que eles não surjam em detrimento do passado e das tradições. Se em O Leopardo os aristocratas decadentes percebiam o momento de mudar para que tudo ficasse igual, em Ghost Dog o código do samurai nos indica que devemos buscar o melhor em cada geração.

Para isso Jarmusch faz uso de três personagens e de um componente do filme. O componente é a já citada trilha sonora. Ela dá sempre a contemporaneidade necessária às ações, sem ir contra elas. O rapper RZA compôs todas as músicas do filme, e elas têm um caráter quase de mantra que dão o ritmo da respiração, do movimento do Ghost Dog, seja ao ensaiar com a katana, seja ao dirigir pelas ruas. É uma trilha que nos segura no presente sem entrar em conflito nunca com o personagem e suas tradiçoes. A trilha se une á fotografia extremamente contrastada de Robby Muller, e o uso constante de fusões e fades para criar no filme o ritmo do movimento e do pensamento do Ghost Dog. Quase no fim do filme uma cena que talvez seja a mais metafórica e importante, embora, sem palavras ou função diretamente narrativa. Assim que aparece o texto que indica a necessidade de se viver "o melhor de cada geração", Ghost Dog cruza na rua com um homem negro. Se cumprimentam com respeito, como se houvesse ali uma passagem de cetro. O filme continua normalmente, aquele personagem não mais aparece. Quem prestou real atenção no texto ou conhece algo de música negra americana reconheceu a figura: é o próprio RZA, autor da trilha. Assim, Jarmusch fecha a idéia de passagem da tradição, de manutenção da ética de um código dentro de signos atualizados. O rap dele é uma das formas...

Os outros três personagens são bem mais explícitos: a filha do chefão Vargo, o vendedor de sorvetes e Pearline, a garotinha. A filha de Vargo é que deflagra a trama por estar aonde não poderia. Também é ela quem dá o livro Rashomon a Ghost Dog. Mas seu maior interesse vem mesmo no final. Até lá, ela parece uma personagem assustada e fora de contato com aquela realidade violenta. No final no entanto, ela surge rapidamente, após todos os outros mafiosos terem sido mortos, sentada no carro com a presença física e a segurança de uma chefe de família. É como se a tradição tivesse sido naturalmente passada a ela. Louie, o mestre de Ghost Dog e único que ele não mata, a respeita como tal. Talvez por isso Ghost Dog nunca a mate, pois sabe que nela está a semente do futuro daquela tradição (numa mulher, como não poderia deixar de ser). Os outros dois personagens ligados aos futuro não participam diretamente da trama com os mafiosos. Estão ali apenas como signos deste futuro e da manutenção da tradição, da crença. Ele não fala um apalavra de inglês, e o seu francês não é entendido por ninguém. Ainda assim, comunica-se perfeitamente com Ghost Dog, seu melhor amigo. É a ele que no final Ghost Dog confia a chave da mala de seus instrumentos. Pearline é a figura clássica da discípula, a quem Ghost Dog orienta pelas palavras e pelos livros que lhe dá a ler. A metáfora visual é clara, a figura dela com a merendeira espelha Ghost Dog com a mala. No último plano do filme, (que não poderia acabar de outra forma, afirmativo) ela está sentada na cozinha lendo o livro do Samurai. Sua mãe quer passar e diz: "You´re on the way!!" ("Você está no caminho!!"). O duplo sentido cada um que interprete. Mais uma vez, o futuro é mulher.

Bem, querer descrever mais da maestria e da profundidade de significados de Ghost Dog seria pensar que palavras num papel reproduzem cinema, sons e imagens montados num ritmo. Impossível. Como descrever cenas como a do navio no alto do telhado ou da arma imaginária de Pearline. O que se pode esperar com um texto é que crie nas pessoas a vontade de ver, e talvez de rever, ou ver diferentemente este filme que mostra como é possível hoje seguir um código de conduta cinematográfico onde as tradições são respeitadas para que se crie uma nova geração, onde Jarmusch certamente é parte do que há de melhor.

Eduardo Valente