Fogo Sagrado,
de Jane Campion


Holy Smoke, EUA, 1999

Jane Campion é a cineasta do desejo. Todos os seus filmes tratam de um mesmo assunto: o desejo e como ele se interpenetra nas relações, nas construções e nas próprias definições do ser humano, sobretudo da mulher. De fato, dentro do discurso - que não poderia ser chamado "feminista", mas sim "feminino", em um sentido de forma nenhuma depreciativo - de Campion parece habitar a afirmação de que é a partir do desejo feminino - da falta mesma lacaniana - que se dão os fatos da História, das micro-histórias que compõem a macro.

Foi assim em Um Anjo em Minha Mesa, foi assim em The Piano, foi assim na adaptação da obra de Henry James, Retrato de uma Mulher. Desta vez, neste Fogo Sagrado (Holy Smoke, 1999), Jane Campion, resolve ir ao limite dessa discussão e resolve se aventurar em um desafio particularmente melindroso: propor uma teoria antropológica com um filme. Não que isso seja impossível, mas os obstáculos são enormes e conseguir produzir um pensamento sério a este respeito é uma tarefa hercúlea.

Pois bem, como antropóloga, a cineasta Jane Campion foi feliz: de fato, seu filme enuncia uma proposta teórica: a da redução das diferenças culturais ao estatuto do desejo. Nesse sentido, seu filme é consideravelmente moderno. Ele separa a natureza da cultura, diz que existe uma natureza humana, regida pelo desejo e que as construções culturais são produto do embate entre as instâncias naturais. No filme, ocidentalismo e orientalismo se convertem na mesma fenomenologia do exótico, na mesma ordem de olhar de estranhamento: tudo é estranho.

O problema é que Campion, antes de antropóloga, é cineasta, e trilhou um caminho ainda mais melindroso para fazer conter em seu filme sua teoria. Para representar o estranhamento (com relação ao) oriental, ela escolheu a tradicional imagem "diferente" da Índia. Para representar o estranhamento (com relação ao) ocidental, ela escolheu a estética de sua terra.

Fogo Sagrado é o primeiro filme "australiano" de Campion. Ela fazia filmes "universais" (ou seja, filmes relativamente tradicionais), nunca havia se aventurado na estética que vem caracterizando o cinema de seu país: fotografia de cores quentes, trama melodramática, roteiro que não se resolve entre o drama e a comédia e, sobretudo, um fio estético claro: o kitsch.

E é isso que dificulta o filme: fazer conviver no mesmo espaço a observação do que se digere facilmente como discurso antropológico, que é o olhar "estranhado" sobre o hindu é de fácil digestão, mas quando ela coloca a cafonice da sociedade (e da cinematografia) australiana para passar pelo mesmo crivo, tudo fica mais complicado. Dizer que "o ocidental é tão esquisito quanto o oriental", não porque sejam um estranho aos olhos do outro, porque temos que democratizar e relativizar estruturalisticamente o discurso e perguntar quem dita essas posições é uma tarefa. A que Campion resolveu realizar é a de dizer que ambos são estranhamento, porque ambos são construções particulares do desejo. Ela chega a dizer isso, mas a um preço estético talvez alto demais. Não basta ter o que dizer, contribui muito (não só para a compreensão, mas sobretudo para a adesão) a forma como se diz.

Jane Campion conseguiu fazer um filme e nele expressar uma boa questão, mas sua eficiência esbarra na certa antipatia com que as coisas se arrumam. Fez um filme necessário (neste mundo em que a inteligência teórica poucas vezes visita a arte), mas dificilmente agradável (em qualquer sentido que o termo possa ter). Ele rende um artigo teórico, mas não rende boas observações como filme.

Alexandre Werneck