Flamenco,
de Carlos Saura
Flamenco,
Espanha, 1996
Para
os que acreditam que a função da crítica é
tão somente servir de indicativo se devemos ou não ir ao
cinema, resolvamos logo a parada: vão ver Flamenco! Para
os outros, que crêem como a Contracampo que a crítica deve
estabelecer um diálogo com o espectador de forma a engrandecer
a experiência de ver um filme, podendo principalmente ser lida após
a assistência do mesmo, continuem lendo. Isso porque é completamente
impossível se tratar de Flamenco sem que se comece pelo
plano final. Não é um filme de suspense, que faça
tanta diferença assim saber como termina mas ainda assim há
os que não gostam de saber, então que fiquem avisados.
Isso
dito, o plano final de Flamenco é uma das maiores sacadas
de Saura, que fecha completamente o sentido de seu filme, para os que
ainda não tenham entendido. Porque pode-se facilmente chamá-lo
de "teatro filmado", o que seria um profundo absurdo, ou ainda de filme
de "variedades", com números musicais e coreografados. Pois bem,
é o plano final que dissipa qualquer possibilidade de leitura como
esta. Após filmar durante quase duas horas vários artistas
e companhias apresentando a música e dança flamenca, a câmera
de Saura (ou seria melhor dizer, de Vittorio Storaro) sobe para revelar
as estruturas do galpão onde tudo aquilo foi filmado. Mas, ela
não se contenta com este movimento, e segue subindo, rumo a uma
janela quase no teto, e por ela sai, como que mergulhando na cidade lá
fora. É um plano que diz muito, provando que linguagem é
discurso. Com ele, Saura afirma: isto que vocês viram até
agora é um microcosmo daquilo lá fora, da Espanha. Vejam
nossas ruas, entendam nosso povo. O flamenco pode ajudar, mas sozinho
não consegue resumir tamanha complexidade.
O
plano por si só vale um filme, mas ele somente é o ponto
final em duas horas do mais puro êxtase, da completa magia que é
assistir a perfeita simbiose entre cineasta e fotógrafo, entre
criador e obra, entre artistas e a câmera. Porque o que poderia
soar simples ou até mesmo redutor (cineasta filma manifestação
artística) é tornado sublime pelo olho de Storaro misturado
ao conhecimento de Saura do que filme. Porque se pensamos no trabalho
da dobradinha em Tango vemos a diferença: neste último,
Saura não está no terreno que tanto o apaixona e que lhe
permitiu criar a trilogia de Carmen, Bodas de Sangue e Amor
Bruxo. Por isso, o filme "argentino" soava muitas vezes apenas estético,
com pouca alma, e sua história não chegava a funcionar.
Em Flamenco (anterior a Tango, é bom que se diga),
Saura demonstra que não precisa de trama ficcional. O flamenco
por si só é composto de drama o suficiente para sustentar
um filme.
Mas,
é óbvio que precisaria ser um crítico muito besta
para falar do filme como se fosse uma realização meritosa
de cineasta e fotógrafo somente. O fato é que os artistas
em cena não são menos do que excepcionais. A cada número
aumenta o desejo de que o filme dure para sempre, de que depois de um
venha sempre outro, tamanha a variedade de emoções contida
nas apresentações. O flamenco é sofrido, dolorido,
humano acima de tudo. Os rostos de seus cantores, os corpos de seus bailarinos,
a expressão de seus músicos são as maiores revelações
do sublime da arte e do ser humano. E a grande virtude de Storaro aliás
está aí. Ao contrário do que acontece muitas vezes
em Tango ou em Goya, aqui seu trabalho estético não
existe para ser mostrado, mas para acentuar e detalhar as nuances das
performances perante as lentes, seja em closes, em movimentos, em planos
gerais. Com sua lente, ele revela cada sentimento, cada emoção
dos artistas focados.
E,
acima de tudo, o flamenco possui a força de uma civilização
por trás de si, é representação folclórica
no que esta palavra possa ter de mais característico. Cada movimento
daqueles vem embrulhado em História, em narrativa, em paixão,
em orgulho, em completa representação de um povo. Ainda
bem que Saura não veio ao Brasil filmar o nosso samba. Porque fazer
bons filmes com esta característica pedem um conhecimento que ele
não teria (ele mesmo disse isso). Mas o que está nos campos
de futebol e nas escolas de samba brasileiras, por exemplo, é material
tão rico de expressão quanto os artistas do flamenco de
Saura. Tomara que alguém algum dia faça jus a eles com um
filme tão excepcionalmente belo, intrinsecamente cinematográfico
sem deixar de ser completamente teatral como é este brilhante Flamenco.
Eduardo
Valente
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